Acórdão nº 5658/07.7TBALM.L2.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 30 de Outubro de 2014
Magistrado Responsável | JOÃO BERNARDO |
Data da Resolução | 30 de Outubro de 2014 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1 .
AA intentou contra: O Município de Almada; A presente ação declarativa.
Alegou, em síntese, que: Em virtude de contrato verbal celebrado há mais de 100 anos, é “arrendatária/enfiteuta/cultivadora directa” de uma "courela" com edificações, que identifica, das chamadas "Terras da …".
Vem-na possuindo, de modo pacífico, ininterrupto, titulado, de boa-fé e sem qualquer turbação.
E vem pagando a respectiva renda.
O réu comprou aquelas “Terras da …” em 1971/1972.
Pediu, em conformidade: Que se declare ser ela proprietária das parcelas e edificações que refere; Que se condene o réu a reconhecer tal direito e a abster-se de quaisquer atos turbadores do ser exercício.
“Em consequência” que se declare: Ser a autora legítima enfiteuta/rendeira/utilizadora/possuidora dos “seus invocados direitos”: Se condene o réu a reconhecer estes e, “por via desse reconhecimento, a declarar judicialmente a enfiteuse, por usucapião, seguindo-se depois os trâmites legais relativos à extinção da enfiteuse em causa, colocando a autora na situação de pleno proprietário, radicando a propriedade plena no enfiteuta…” …………………….
2 .
Contestou o réu.
Impugnou a generalidade dos factos alegados; Negou expressamente que a autora seja, por si e seus antecessores, arrendatária das referidas terras; Mais referiu que: Sempre se recusou a receber rendas; A autora há muito que não explora quaisquer terras no local denominado "Terras da Costa", tendo entregue a terceiros a exploração dos terrenos mediante o recebimento de rendas.
As "construções edificadas no local" nunca forma autorizadas por ele, réu, que sempre se opôs à sua implantação, sendo, assim, ilegais.
…………………………..
3 .
A ação prosseguiu a sua tramitação, cujos detalhes agora não importam, e, na altura oportuna, foi proferida sentença.
Julgou-se aquela procedente, declarando-se o direito de propriedade da autora sobre a mencionada parcela e condenando-se o réu a reconhecer esse direito.
Entendeu a Sr.ª Juíza, no essencial, que: A autora adquiriu, por usucapião, a enfiteuse; Que, nos termos do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16.3, deu origem ao direito de propriedade a favor dela.
…………………..
4 .
Apelou o réu e com êxito, porquanto o Tribunal da Relação de Lisboa revogou a decisão recorrida, julgando improcedente o pedido da autora, dele absolvendo o réu.
Baseou-se a Relação, fulcralmente, na negação de que estejam verificados os pressupostos da constituição da enfiteuse por usucapião, estando, consequentemente, prejudicada a questão da constitucionalidade daquele Diploma e dos que o alteraram, enquanto aboliram tal direito fazendo reverter a propriedade para o titular do domínio direto.
………………………..
5 .
A folhas 123 e seguintes a autora juntou um Parecer dum Ilustre Professor, com as seguintes conclusões: “I. Com os elementos disponíveis, resta concluir. Assim: 1.ª A enfiteuse apresenta, nos dois últimos milénios, uma feição multifacetada; como traço distintivo, ela contrapõe-se seja à compra e venda (uma vez que pressupõe um domínio desmembrado) seja à locação (uma vez que tem natureza real, tendencialmente perpétua).
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A evolução nacional traduziu-se em incrementar os direitos e a estabilidade do enfiteuta, firmando, desde 1867, a sua perpetuidade.
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Na determinação da natureza enfitêutica de determinada situação, há que privilegiar os indícios materiais, em detrimento das meras qualificações vocabulares que os interessados lhes tenham atribuído.
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Em 1976, um diploma legal extinguiu a enfiteuse de prédios rústicos, radicando a propriedade plena no enfiteuta; trata-se de uma linha expressamente confirmada pela Constituição.
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A mens legislatoris era, naturalmente, a de beneficiar o verdadeiro enfiteuta, fosse qual fosse a designação que se lhe atribuísse.
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No tocante a enfiteuses de pretérito: elas podem ser provadas por qualquer meio, não dependendo nem de forma, nem de registo.
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A enfiteuse pode-se constituir em moldes unilaterais e, designadamente, por usucapião.
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As Leis n° 22/87, de 24 de Junho e n° 108/97, de 16 de Setembro, vieram alterar o diploma de extinção da enfiteuse no sentido de permitirem uma modalidade específica de usucapião.
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Na versão em vigor, tal usucapião opera perante o cultivo remunerado de terra alheia, desde 15 de Março de 1946, contanto que tenham sido feitas determinadas benfeitorias.
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Tal situação é, assim e dentro da margem do legislador, considerada enfitêutica, podendo transmitir-se em vida e por morte, de modo informal.
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Os rendeiros das Terras da … reúnem, claramente, todos os requisitos para poderem invocar a enfiteuse, por usucapião, nos termos explicitados.
Quedará fazer declarar judicialmente tal situação, seguindo-se, depois, os trâmites legais relativos à extinção da enfiteuse em causa.” A folhas 509 e seguintes a ré juntou dois Pareceres.
No primeiro, dum Ilustre Professor, em colaboração com outrem, concluiu-se: Em face de tudo o que anteriormente se disse, permitimo-nos extrair, em seguida, algumas conclusões essenciais, de uma forma tão breve quanto possível, adoptando, para o efeito, o critério que presidiu à arrumação da matéria abordada neste nosso trabalho.
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- DA ANÁLISE DO CASO "SUB JUDICE" AO NÍVEL DO DIREITO CONSTITUCIONAL I - A Constituição da República, desde a sua versão originária, pretendeu, na sequência de legislação pré-constitucional, a liquidação radical dos encargos e obrigações relacionados com a enfiteuse que impendiam sobre o enfiteuta (titular do domínio útil), dando por assente quem podia, ou não, ser considerado como tal, à luz do regime de enfiteuse estatuído nos artigos 1491.º e seguintes, da versão primitiva do Código Civil de 1966.
II - Mesmo no contexto da "Reforma Agrária" recebida pela Constituição, não se vislumbra qualquer abertura para a extensão do âmbito normativo da enfiteuse sobre prédios rústicos a quem não reunia, na data da entrada em vigor do decreto-Lei n° 195-N76, a qualidade de enfiteuta.
III - A Lei n° 108/97 consagra uma perspectiva radicalmente diversa. A julgar pela interpretação que dela fazem alguns autores, ela impõe a extensão do âmbito normativo da disciplina enfitêutica a "domínios de realidade" que nunca estiveram incluídos no programa normativo constitucional.
IV - Da extensão da enfiteuse a outros âmbitos empíricos resulta uma disciplina legal retroactivamente extensiva do âmbito de proibição do regime enfitêutico.
V - Esta nova disciplina é claramente inconstitucional dados os seus efeitos jurídicos: expropriação ou confisco por utilidade particular de direitos de propriedade protegidos pela Constituição.
VI - E protegidos nos termos do regime dos direitos, liberdades e garantias, pois trata-se de garantir o direito de propriedade contra ingerências ablatórias (cf. arts. 17.º e 18.°/3 da CRP).
VII - Em rigor, em vez de se proceder à extinção da enfiteuse procurou-se recortar uma enfiteuse sem extinção, pois procura-se fazer revivescer um instituto jurídico que está constitucionalmente proibido.
VIII - Com efeito, o legislador de 1997 (Lei n° 108/97) introduziu retroactiva e inovadoramente três maldades congénitas: (l) através do alargamento do âmbito normativo e da "realidade" normativa da enfiteuse; (2) através de transmutação de outros institutos jurídicos em enfiteuse (ex: arrendamento de longa duração); (3) através da constituição de regimes enfitêuticos a favor do titular do domínio útil e com completo desprezo dos interesses do titular directo.
IX - Além de proceder a um confisco ou expropriação retroactiva de "propriedade não enfitêutica", o legislador não curou de saber também do regime indemnizatório por privação desta propriedade.
X - Está em manifesta contradição com as actuais regras e princípios constitucionais ficcionar um novo direito real de enfiteuse a fim de legitimar a expropriação do titular de propriedade plena, sem qualquer indemnização.
XI - A criação de figuras à margem da taxatividade ou do "numerus clausus" dos direitos reais, mas com a pretensão dos mesmos efeitos explicitamente tipificados no Código Civil – designadamente a enfiteuse de prédio rústico cultivado por quem não era proprietário, a "enfiteuse iniciada com posse em termos de arrendamento", "equiparação à enfiteuse do arrendamento de longa duração" - é, portanto, duplamente inconstitucional. Por um lado, cria novas figuras desapropriativas sem assento constitucional. Por outro lado, legitima actos ablatórios da propriedade sem qualquer previsão do regime de indemnização (CRP, art. 62.ª/2).
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- DA ANÁLISE DO CASO "SUB JUDICE" NO PLANO DO DIREITO CIVIL I - A existência de uma irremissível dimensão histórico-cultural do Direito constitui, hoje em dia, um tópico pacífico, quer a nível geral, quer no plano do Direito Civil e, dentro deste, dos Direitos Reais (ou Direito das Coisas) em particular.
Todavia, não deve sobrevalorizar-se o relevo desta dimensão, pois, na compreensão das normas vigentes, a História “ajuda e coopera, mas não escraviza”.
II - A “leitura” da História e do jurídico nela quanto à génese, evolução e sentido da enfiteuse no nosso ordenamento permite afirmar que esta apresenta-se, entre nós, pelo menos a partir do Código Civil de 1867 ('Código de Seabra") – se não antes, no essencial, já desde as Ordenações Afonsinas – , como um instituto perfeitamente definido e consolidado, quer a nível conceptual e jurídico, quer mesmo no plano terminológico.
III - E, obviamente, é neste quadro, e só nele, que o caso sub judice deve ser analisado. Pelo que, na nossa opinião e salvo o devido respeito, carece de sentido chamar à liça, a propósito do caso dos autos- e, primo conspectu pelo menos, com o intuito de tirar vantagem disso – e eventuais manifestações, concepções ou denominações remotas da enfiteuse ou com esta de algum modo associadas, que, a terem existido, se encontram há muito perimidas.
IV - Assim, na experiência jurídica portuguesa, a concepção de enfiteuse (emprazamento ou aforamento) que se consagrou – primeiro...
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