Acórdão nº 620/12.0T2AND.C1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 02 de Julho de 2015

Magistrado ResponsávelLOPES DO REGO
Data da Resolução02 de Julho de 2015
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam em pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça: 1. AA – Companhia de Seguros SPA, instaurou acção declarativa, sob a forma ordinária, contra BB pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de €98.276,72, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento.

Como fundamento, alegou que, tendo celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel com o Réu, este deu causa a um acidente de viação do qual resultou uma vítima mortal. A Autora, como seguradora do responsável pelos danos, em cumprimento de decisão judicial, pagou um total de €98.276,72 em indemnizações ao herdeiro da vítima e ao Centro Nacional de Pensões. Além de culpado no acidente, o Réu abandonou a vítima no local, sem providenciar por socorro, vindo a morte daquela a ocorrer em consequência directa e necessária do abandono e omissão de auxílio, o que confere à Autora o direito de exigir do Réu o que despendeu, nos termos do art. 19º, alínea c) do DL 522/85.

Citado, o Réu excepcionou a prescrição do direito da Autora e, por impugnação, recusou qualquer culpa no acidente, não aceitando também que o facto de ter abandonado o local do acidente tenha contribuído para o decesso da vítima, que foi imediato e em consequência directa do embate. Conclui pela improcedência da acção.

Na réplica, a Autora rebateu a matéria das excepções, concluindo como na petição.

Realizado a audiência final, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu o Réu do pedido, tendo, consequentemente, por prejudicada a apreciação da excepção peremptória de prescrição do invocado direito de regresso ( fls. 276).

2. Inconformada, apelou a Autora, tendo a Relação começado por fixar a matéria de facto relevante, nos seguintes termos: 1. No exercício da sua actividade de seguradora, a A. celebrou com o Réu um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, titulado pela Apólice nº ..., tendo como objecto seguro o veículo Seat Ibiza, de matrícula ...-NJ (alínea A dos factos assentes).

  1. No dia 6 de Abril de 2007, pelas 20,30 h, o Réu conduzia o veículo referido em 1, na Rua Adriano Henriques, Arcos Anadia, (alínea B).

  2. Por conduzir desatento à condução, não se apercebeu da presença de duas pessoas – CC e DD, que se encontravam junto à casa nº 19 (alínea D).

  3. Utilizando a berma da estrada, veio a embater com a parte frontal lateral direita do veículo, mais precisamente com a óptica direita e seu redor, na CC, projectando-a a uma distância de 19 metros (alíneas E e F).

  4. Como consequência do embate descrito, resultaram para a CC lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, toraco-abdominais-pélvicas e do membro superior direito, que foram causa directa da sua morte (alíneas Q e R).

  5. O Réu ficou ciente de que tinha embatido num peão e com perfeito conhecimento de que o embate poderia ter provocado lesões susceptíveis de colocar em perigo a vida ou a integridade física da vítima e que esta poderia necessitar de ajuda imediata, abandonou o local de imediato, sem cuidar de saber do seu estado, nem providenciou por socorro (alíneas S e T).

  6. Uns minutos após o acidente, os Bombeiros e o IEM prestaram assistência médica à vítima, que no entanto veio a falecer às 21,00h desse dia (alíneas bb) e cc) 8. Em consequência do embate, a vítima caiu dentro de um estaleiro, rodeado de muros e cujo acesso se fazia por um portão que se encontrava fechado à chave, só tendo sido possível chegar à vítima após a chegada dos meios de socorro (pontos 8 e 9 da base instrutória).

  7. A vítima CC faleceu no espaço temporal decorrido entre o embate e ser observada pelos bombeiros, cerca de 10 minutos depois (ponto 7 da b.i.).

  8. O acidente em causa deu origem ao Processo Comum singular nº 157/07 do 2º Juízo do Tribunal de Anadia, no qual foi proferida sentença com data de 15-07-2008, transitada em julgado, que condenou o Réu pela prática de um crime de homicídio por negligência p.p. pelo art. 137º/1 do CPenal, na pena de 9 meses de prisão e num crime de omissão de auxílio p.p. pelo art. 200º, do mesmo diploma, na pena de 10 meses de prisão, tendo sido condenado na pena única de 15 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

  9. No âmbito do processo cível instaurado pelo herdeiro da vítima contra a aqui Autora, foi proferida decisão, já transitada em julgado, em cumprimento da qual a Autora pagou a título de indemnização ao demandante cível, EE: €82,016,44 em 03-03-2009; €9.575,27 em 25-07-2011 e €2.289,20 em 31-10-2011.

  10. …e pagou ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social a quantia de €4.395,81 em 03-03-2009.

  11. Passando a dirimir a questão de direito suscitada no recurso da apelação, a Relação – após notar que o acidente a que os autos respeitam ocorreu no dia 06-04-2007, data em que estava em vigor o DL nº 522/85 de 22.12, que regulava o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel –julgou improcedente o recurso com base na seguinte linha argumentativa: A disposição do art. 19º, alínea c), do DL 522/85 inscreve-se no regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação.

    O seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel tem uma função social: proteger de modo sério e efectivo e, portanto o mais possível, as vítimas da circulação rodoviária, proporcionando-lhes um pronto e seguro ressarcimento.

    Ao celebrar um contrato de seguro automóvel, a seguradora, contra o pagamento de uma contrapartida pelo segurado, “o prémio”, assume a obrigação de suportar os danos decorrentes da verificação do sinistro, se este se verificar. O que significa que, quando a seguradora satisfaz a indemnização devida por acidente causado pelo proprietário ou pelo condutor legítimo, está simplesmente a cumprir o contrato.

    É certo que a cobertura do seguro apenas pondera o risco resultante da condução “normal” do veículo.

    Se intervierem factores que alteram essa previsão – condutor não habilitado, condutor etilizado, etc. – o que acontece é que o risco inerente a tal condução excede o risco contratado, o que vale por dizer que já não estaria coberto pelo contrato de seguro.

    Mas porque estamos perante um seguro obrigatório, compreende-se que, mesmo então, seja sempre a Seguradora a responder, em primeira linha, perante as vítimas respectivas.

    É em tais situações que a lógica do sistema faz intervir o mecanismo do “direito de regresso”, por forma a que o risco venha, então, a ser a final, suportado pelo condutor “infractor”, e já não pela Seguradora (cf. Ac. do STJ de 23.11.99, supra citado).

    No caso da alínea c), aqui em questão, surgem como devedores do direito de regresso, o condutor sem habilitação legal, o condutor sob influência do álcool, estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos e o condutor que haja abandonado o sinistrado.

    A condução efectuada em qualquer daquelas circunstâncias e o abandono do sinistrado não são, só por si, causadores de prejuízos.

    Como se escreveu no Acórdão do STJ de 14-01-1997, BMJ 463º, pag.562: “Se o direito de regresso da seguradora não existe em relação a todo e qualquer condutor que provoque por culpa sua o acidente, e porque o direito de regresso se situa dentro do campo das sanções civis reparadoras, a lógica jurídica e o equilíbrio do sistema jurídico importam a adopção da conclusão segundo a qual não deve aquele direito ser estendido a consequências que não têm que ver com as circunstâncias especiais que o motivam.” Isto quer dizer que o direito de regresso apenas deverá abranger os prejuízos que a seguradora suportou e que têm nexo causal com aquelas circunstâncias.

    É que nada justifica que esse direito abranja, também, a parte da indemnização respeitante a danos que sempre se produziriam com ou sem abandono, sendo este de todo irrelevante quanto ao risco assumido.

    O acto de abandono da vítima de acidente de viação, embora seja reprovável no plano da ética e do direito criminal (como sucedeu no caso dos autos em que o Réu foi condenado por um crime de omissão de auxílio), não justifica um benefício para a seguradora, isentando-a da responsabilidade assumida pelo contrato de seguro, quanto aos danos que nada têm a ver com esse abandono.

    Quando o abandono não foi causa determinante de outros danos para além dos causados pelo acidente em si ou do agravamento destes danos, não pode falar-se em agravamento do risco coberto pela apólice.

    Aliás, há casos em que as circunstâncias em que ocorreu o abandono bem podem torná-lo irrelevante, como sucede quando outras pessoas, presentes no local, prestaram imediatos socorros à vitima, ou nos casos de morte imediata, como se observa no Ac. do STJ de 11.02.2003, CJ AcSTJ, I, pag. 87.

    Em suma, o direito de regresso previsto no art. 19º, alínea c) do DL 522/85, apenas deverá abranger os prejuízos que a seguradora suportou e que têm nexo causal com as circunstâncias ali previstas; ou seja, no caso de abandono do sinistrado, o direito de regresso apenas abrange os acrescidos e resultantes do abandono.

    Este o entendimento que temos como mais adequado, foi seguido na sentença e corresponde ao entendimento maioritário da jurisprudência ( para além dos citados, ainda os Acórdãos do STJ de 05-03-1996, BMJ 455º/513, de 28-02-2002, P.02A192 (Afonso de Melo) e de 31-01-2007, P.06A4637 (Urbano Dias), disponíveis em www.dgsi.pt).

    Resta dizer que à luz dos princípios que regem o ónus da prova (art. 342º do C.Civil), sempre caberia à Autora alegar e provar os pressupostos do direito de regresso previsto no art. 19º, al. c), isto é, seguintes conclusões:conclusão 6ª.

    Dito isto, revertamos ao caso ajuizado.

    Que o Recorrido foi culpado do acidente que vitimou a infeliz CC e que abandonou de imediato o local do acidente, é ponto que não oferece dúvidas.

    implesmente, o abandono do local pelo Réu – eticamente reprovável e por que foi condenado penalmente – mostra-se absolutamente indiferente para o decesso da vítima, que sempre ocorreria atento a gravidade...

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