Acórdão nº 296/11.2TBAMR.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 24 de Março de 2015

Magistrado ResponsávelGABRIEL CATARINO
Data da Resolução24 de Março de 2015
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)
  1. – Relatório.

AA e BB, casados, intentaram acção declarativa contra CC, pedindo que o réu seja condenado a reconhecer os autores como titulares do direito de propriedade sobre o imóvel descrito no artigo 1.º da petição, a restituir o imóvel livre de pessoas e bens, a abster-se de praticar quaisquer actos que impeçam ou dificultem que os autores gozem de modo pleno e exclusivo as faculdades inerentes ao seu direito de propriedade, a reconstituir a situação existente em momento anterior à sua acção sobre o dito imóvel repondo a vedação, com as dimensões e materiais que a compunham e as terras aí existentes e a restituir aos autores a quantia correspondente à vantagem patrimonial obtida com a intromissão no bem daqueles, importância que ascende, até ao momento, na quantia de € 28.000,00.

Para pedido que formulam, alegam, em síntese, que são proprietários de um prédio rústico, denominado “...”, sito no lugar de ... ou Monte ..., freguesia de ..., ... e que o réu vem usando, desde algum tempo a esta parte, sem título que o legitime, parcela considerável desse prédio, estabelecendo, na parte por ele apossada, um estaleiro de construção civil, contra a vontade dos autores.

Procederam à interpelação do réu, por diversas vezes e formas, para restituir o prédio apossado e bem assim reconstruir a vedação e reparar o muro danificado, tendo-se o ré recusado a efectuar qualquer das impetrações formuladas. Contestou o réu alegando que acordou com os autores em permutar parte de terrenos de que ambos eram proprietários, tendo os autores recebido do prédio do réu uma parcela de terreno com a área de cerca de 1209,50 metros quadrados e o réu do prédio dos autores uma parcela com a área de 862,560 m2. Ambas as partes, na sequência do acordo, delimitaram os prédios com marcos e com uma vedação constituída por rede de arame. Desde então, exerce a posse sobre a parcela de terreno na convicção de que é o proprietário do mesmo.

Acrescenta que, desde o momento em que tomou posse do terreno procedeu à sua limpeza, ao corte de árvores aí existentes, à regularização do pavimento, com recurso a máquinas retroescavadoras, à colocação de gravilha no pavimento, ao aparcamento de viaturas, à construção de u murete na parte em que este terreno confina com a via pública, à construção da vedação junto da via pública, à colocação de um portão para acesso ao mesmo, à colocação, no muro, de contadores da água e da luz, à ampliação dos materiais que necessita para o exercício da sua actividade de construtor civil, trabalhos que os autores presenciaram, sem nunca se oporem à sua realização. Na réplica que opuseram à contestação dos réus, os autores referem que entabularam negociações com vista à venda do prédio, tendo posteriormente avançado com a possibilidade de permuta de parte do prédio, sem que, contudo, tais negócios viessem a ser celebrados. Ainda que se entenda que tal acordo de permuta foi celebrado, o mesmo é nulo por não obedecer à forma exigida por lei. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença – cfr. fls. 121 a 140 – em que foi decidido julgar a acção improcedente, absolvendo o réu dos pedidos formulados.

Em dissídio com o julgado, interpuseram s demandantes recurso de apelação, que por acórdão datado de 12-06-2014, decidiu manter o julgado da primeira instância.

Formada dupla conforme, impulsaram recurso de revista excepcional, que, por douto acórdão da comissão de apreciação preliminar, datado de 13 de Janeiro de 2015 – cfr. fls. 360 a 363 – foi decidido admitir o requestado recurso, com o fundamente em que se verificava uma contradição, sobre a mesma questão (fundamental) de direito, entre o decidido no acórdão recorrido e um acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Janeiro de 2002. Admitida a revista, consta do recurso, o quadro conclusivo que a seguir queda extractado.

I.A. – Quadro Conclusivo.

“i- A admissibilidade da presente revista excepcional tem por fundamento a circunstância de o acórdão recorrido estar em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito; ii- No acórdão-fundamento apreciaram-se as seguintes questões: "a primeira, se existe abuso de " direito no exercício filiado na nulidade do contrato de compra e venda em causa, por inobservância da forma legal; a segunda, se o abuso de direito justifica (ou não) a validade do contrato de compra e venda em causa, apesar da falta de forma legal, a escritura pública; a terceira, consequências da declaração da nulidade do contrato de compra e venda em causa".

iii- Nesse Aresto conclui-se que "o abuso de direito não justifica que se considere válido (subsistente e eficaz) um contrato de compra e venda de bem imobiliário não formalizado por escritura pública" (sublinhado nosso), razão pela qual "o acórdão recorrido não poderá ser mantido ( .. .)" .

iv.- No acórdão recorrido apreciou-se a questão de saber se "não pode ser considerada a figura do abuso de direito no caso da nulidade derivar da falta de forma legar.” v.- Colocada a questão, é desde logo afirmado no Aresto que "é hoje praticamente pacifica a possibilidade de se afastarem os efeitos decorrentes da nulidade por vício de forma através do instituto do abuso de direito"; vi- Descendo ao caso concreto, e considerando ser "razoável admitir que ao actuar como actuaram, os autores criaram no réu a legítima convicção e a confiança de que jamais iriam invocar a nulidade do contrato por falta de forma, para se eximir ao cumprimento da sua parte no contrato e, até, reivindicar a devolução da parte já entregue", entende o Tribunal «a quo» que resulta evidente que "invocar, agora, a nulidade do contrato de permuta, por falta de forma legal, é um evidente abuso de direito, traduzido num venire contra factum proprium e numa injustiça clara que este instituto pretende prevenir. Sendo assim, conclui, e porque as consequências do abuso de direito reflectem-se na paralisação do direito, terá a pretensão dos autores improceder', decidindo, em conformidade, "julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida"; vii.- A questão fundamental de direito tratada num e noutro Acórdãos, e que se demonstrou essencial para determinar o resultado numa e noutra decisões ali proferidas, consistiu em saber se o instituto do abuso de direito, previsto no artigo 334.º, do Código Civil, é susceptível de paralisar os efeitos produzidos pela nulidade decorrente da inobservância de forma prevista para os negócios translativos do direito de propriedade sobre imóveis, concluindo pela negativa o acórdão-fundamento e pela positiva, como sabido, o acórdão ora recorrido, o que consubstancia uma oposição directa (e não apenas implícita ou pressuposta) entre os dois acórdãos, pondo " em perigo, pela falta de uniformidade jurisprudencial em que se traduzem as decisões, a certeza na aplicação do direito; viii.- A oposição entre os Acórdãos verificou-se à luz de um quadro normativo substancialmente idêntico, conformado, essencialmente, pelos artigos 220.º, 289.º, 334.º, 875.º (na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho) e 939.º, do Código Civil, e 80.º (na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho) do Código do Notariado; ix.- Entendem os recorrentes que a interpretação conforme ao Direito constituído, i.e., das normas legais à luz das quais deve ser decidido o caso concreto, é aquela da qual se conclui que o instituto do abuso de direito é insusceptível de paralisar os efeitos decorrentes da nulidade, consubstanciada na inobservância da forma legal prescrita, de um negócio translativo do direito de propriedade sobre imóvel, pelo, nesse sentido, é evidente a sua adesão à posição que é sustentada no acórdão-fundamento; x.- Outra interpretação não consente o disposto nos artigos 220.º, 286.º, 289.º, 875.º e 939.º do Código Civil; xi.- Se os efeitos decorrentes da nulidade consubstanciada na inobservância da forma na celebração de negócios jurídicos translativos do direito de propriedade sobre imóveis pudessem ser paralisados por efeito do instituto do abuso de direito, tal significaria um convite à inobservância da forma legal, certo que bastaria o decorrer de um certo, e quiçá curto, lapso de tempo para que a transmissão de propriedade, embora inválida na sua génese, não mais pudesse ser posta em causa, uma vez que a invocação da nulidade, ou a reivindicação da propriedade corresponderia sempre, ou quase sempre, a um abuso de direito. i.e., qual seria o força do imperativo contido na norma legal, que obriga(va) à celebração por escritura pública de negócios que tivessem por objecto a propriedade de bens imóveis, se, embora correndo o risco de o mesmo ser declarado nulo, mas poupando, no caminho, custos consideráveis (que decorreriam da formalização do negócio), iguais efeitos se poderão obter, a jusante, por via directa da boa fé; xii.- As razões que fundamentam aquele conjunto de normas, designadamente, os interesses públicos que as pelas mesmas se visam defender, estão num plano de tal modo elevado que o legislador consente aos próprios "autores" do vício, aqueles que conscientemente não observaram a forma prescrita, a invocação da nulidade daí decorrente - cfr., artigo 286.º°. Ademais, precavendo a hipótese de não ser exercida, por qualquer motivo (inconveniência, desconhecimento,..), pelas pessoas legitimadas, estabeleceu ainda o legislador que a mesma pode ser conhecida, de ofício, pelo tribunal.

xiii.- Todas estas circunstâncias dão ao intérprete indícios seguros de que a nulidade, ou a produção seus efeitos, decorrente da não observância da forma legalmente prescrita não podem ser paralisados pelo instituto da boa-fé; xiv.- A posição sustentada pelo acórdão recorrido não encontra nos textos legais em que se apoia o mínimo de correspondência, pelo que é ilegítima semelhante interpretação; xv.- É inexistente no processo a alegação...

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