Acórdão nº 325/14.8TTLRA.C1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 26 de Maio de 2015
Magistrado Responsável | ANTÓNIO LEONES DANTAS |
Data da Resolução | 26 de Maio de 2015 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça: I O MINISTÉRIO PÚBLICO instaurou a presente ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, nos termos dos artigos 26.º, n.º 1, al. i), e 186.º-‑K, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho, ambos com as alterações introduzidas pela Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto, contra AA – ..., CRL, pedindo que seja reconhecida a existência de um contrato de trabalho entre a Ré e BB, fixando-se a data do seu início desde, pelo menos, 1 de março de 2011.
Contestou a Ré, pugnando, para além do mais, pela caducidade do direito de ação por parte do Ministério Público, ao que aquele respondeu.
Foi, então, proferido o seguinte despacho: «Da caducidade do direito de o Ministério Público interpor a ação especial de reconhecimento de contrato de trabalho prevista nos arts 186º-K a 186º-R do CPT.
Cabe apreciar a exceção e caducidade suscitada pela requerida.
Conforme resulta dos autos a tramitação dos mesmos sofreu as seguintes vicissitudes: - em 16.04.2014 a ACT remeteu a participação referida no art 15º-A nº 3 da Lei nº 107/2009, de 14 de setembro, ao MºPº do Tribunal do Trabalho de Leiria, a qual aí deu entrada a 21.04.2014.
- em 23.04.2014 o Digno Magistrado do MºPº remeteu a participação recebida nesses serviços novamente para a ACT por se considerar incompetente territorialmente quanto aos factos relativos a trabalhadores residentes fora da área de jurisdição do Tribunal do Trabalho de Leiria; - no seguimento do douto despacho, a ACT efetuou nova participação ao Tribunal de Leiria em 29.04.2014 tendo em conta o trabalhador CC, a qual foi enviada à distribuição em 30-04-2014 (cfr fls 1 dos autos) - conforme fls 25 e ss dos autos, o MºPº apenas deu entrada da p.i. relativa à a presente ação em 15 de maio de 2014, isto é 25 dias após a entrada da 1ª e competente participação.
Refere o art 186º-K do CPT: “Após a receção da participação prevista no nº 3 do art 15º-A da Lei nº 107/2009, de 14 de setembro, o Ministério Público dispõe de 20 dias para intentar tentar a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho”.
Ora, sendo nosso entendimento que a participação a que se refere este preceito legal sempre terá que ser a que 1º deu entrada nos serviços do MºPº, uma vez que é a partir daí que este toma efetivo conhecimento da situação relatada pela ACT, caducou o direito de propor a ação, não existindo qualquer margem de discricionariedade temporal que possa ser concedida ao MºPº neste caso de processo especial e de natureza urgente.
Pelo exposto, declaro procedente a exceção de caducidade do direito de intentar a ação pelo que absolvo a requerida do pedido – art 579º com referência ao art 576º nº 3 do CPC e 328º, 329º, 331º nº 1 e 333º nº 1 do Código Civil.
Sem custas atendendo à isenção de que o MºPº beneficia.
Valor da ação: € 30.000,01.» Inconformado com esta decisão dela apelou o Ministério Público para o Tribunal da Relação de Coimbra, que veio a conhecer do recurso por acórdão de 20 de novembro de 2014, que integrou o seguinte dispositivo: «Termos em que se delibera julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido e ordenando-se a normal e subsequente tramitação dos autos.
Custas no recurso pela ré apelada.» Irresignada com esta decisão dela recorreu a Ré, de revista, para este Supremo Tribunal, integrando nas alegações apresentadas as seguintes conclusões: «1. Pede-se, in casu, revista ao Acórdão proferido pela 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em 20 de novembro de 2014 a fls (?) dos autos, porque se entende ser ilegal e até inconstitucional.
-
Tal Acórdão aplicou normas materialmente inconstitucionais: os artigos 15.º -A da Lei n.º l07/2009, de 14 de agosto e dos 26.° n.º 1 al. i) e 6, e 186.°- K a 186.º -R do Código de Processo do Trabalho.
-
Este novo regime legal (artigos 15.º -A da Lei n.º 107/2009, de 14 de agosto e dos 26.° n.º 1 al. i) e 6, e 186.°- K a 186.º -R do CPT), instituído pela Lei 63/2013, veio permitir a duas entidades do Estado, ACT e Ministério Público, intrometerem-se no âmbito de uma relação de trabalho privada, que pode ou não ser de trabalho subordinado, com o objetivo de obter uma decisão judicial que reconheça tal relação como de trabalho subordinado, visando sujeitá-la, assim, à aplicação da Legislação Laboral.
-
E tal intromissão pode ter lugar - como, aliás, tem acontecido em variadíssimos casos desde a entrada em vigor destes mecanismos - mesmo contra a vontade real e declarada das partes contraentes - não só nas declarações vertidas no(s) contrato(s) escritos formalizado(s), como também contra a vontade processualmente manifestada, seja no próprio processo inspetivo, pelos supostos trabalhadores e empregadores -, seja no processo judicial e, também - como tem acontecido - à revelia do suposto trabalhador, que só toma conhecimento da situação judicial em que se encontra, quando notificado nos termos e para efeitos do artigo 186.º-L, n.º 4, CPT.
-
Esta nova legislação permite tal intrusão (parece-nos ser este o substantivo correto!) em situações em que inexiste qualquer conflito de interesses, sem que exista divergência alguma, entre os contraentes, quanto à natureza do vínculo, sem que exista sequer conduta dissimulada, dando azo a que uma relação contratual legalmente constituída, no quadro da autonomia da vontade privada das partes e da liberdade contratual, e estável, se transforme, por iniciativa do Estado, numa relação aparentemente ilegal e judicialmente controversa; onde não há conflito passa a existir uma efetiva querela judicial, ficcionando-se (abusivamente) um conflito de interesses.
-
A ação de reconhecimento do contrato de trabalho destinar-se-ia, unicamente, à qualificação judicial da natureza laboral de um determinado vínculo e a intenção do Ministério Público ao desencadear esta ação seria, somente, a obtenção de um reconhecimento judicial do vínculo laboral e a fixação da data do seu início, nada mais; a ação não se destinaria, como alguns no seio de Ministério Público já defenderam, ao mero esclarecimento da natureza do vínculo (se contrato de trabalho ou contrato de prestação de serviço); não é esse o fim visado: o Ministério Público ou se convence que a participação integra factos que merecem tal qualificação e pede o reconhecimento do vínculo ou, na dúvida, não deverá solicitar o reconhecimento; a ação não se destinaria meramente a esclarecer, destinar-se-ia a RECONHECER.
-
Interesses abstratos do Estado (interesses tributários do Estado, direitos dos Trabalhadores em geral, cumprimento da Legislação de saúde e higiene no trabalho, etc.) não estão, não podem estar, imediatamente em causa nesta ação, porquanto não são estes os interesses que imediatamente subjazem; para salvaguarda destes interesses, existem outro tipo de procedimentos administrativos e judiciais; 8. Este conjunto de interesses abstratos nunca poderia, evidentemente, sobrepor-se à vontade declarada e executada pelas partes da relação contratual e, até, processualmente manifestada: o Estado não pode - mais a mais no âmbito de legislação meramente adjetiva e processual - pretender impor às partes um regime contratual que elas, declarada e inequivocamente, não desejam, nem executam; 9. Interpretar o sentido e ao âmbito da intervenção do Ministério Público), prevista no artigo 186.º -K, n.º 1 do CPT (e os demais comandos legais reguladores desta ação especial) em sentido contrário (como o faz o Tribunal da Relação de Coimbra), afigura-se, em nossa opinião, inconstitucional por violação do princípio do respeito da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º, CRP), do direito ao desenvolvimento da personalidade - artigos 26.°, n.º l , CRP - na dimensão de liberdade indispensável à autoconformação da identidade, da integridade e conduta do indivíduo (... ) [que] pressupõe a exigência de proibição de ingerências dos poderes públicos - e o direito à iniciativa privada e cooperativa - artigo 61.°, CRP - dos quais decorre o princípio da autonomia da vontade privada e o inerente princípio da liberdade contratual (artigo 405.°, Código Civil).
-
Os comandos integrados pela Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto são de natureza meramente processual ou adjetiva, sendo que não se produziu qualquer modificação no quadro do regime substantivo aplicável à questão da qualificação da natureza de uma relação de trabalho (se subordinada ou se autónoma), nomeadamente não foi, até à data efetuada, paralelamente, qualquer mudança no Código do Trabalho, nem no Código Civil e não se conhece qualquer alteração de paradigma, a este propósito, no seio da Jurisprudência ou da Doutrina.
-
Sendo que o elemento central na determinação da qualificação da natureza do vínculo sempre tem sido a vontade das partes, quer a declarada, quer a executada, isto é, a vontade das partes em instituírem e desenvolverem uma relação de subordinação ou uma relação autónoma e só em situações de crise contratual, nomeadamente quando há divergência real entre as partes, se tem colocado entre nós o problema da qualificação da natureza do vínculo de trabalho; 12. Assim sendo, como se disse na douta sentença proferida - no âmbito do processo n.º 2203/14.1TILSB, Lisboa - Instância Central – l.ª Secção do Trabalho - J5 (processo com objeto similar ao dos presentes autos e nos quais a aqui recorrente prefigura também como Ré), que acompanhamos quase na íntegra e onde se declarou a inconstitucionalidade dos artigos 26.°, n.º 1 , alínea i) e 6, 186.º -K a 186.º -R do Código de Processo de Trabalho, que por consequência não se aplicaram, a questão está em saber se o Estado, através de uma entidade administrativa (ACT) e através do Ministério Público, pode intervir e intrometer-se numa relação jurídica estabelecida entre duas pessoas, relação jurídica de natureza absolutamente privada e relativamente à qual as partes não suscitaram qualquer conflito de interesses nem estão em qualquer litígio, intervenção e intromissão essa em, que lhes impõe...
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO