Acórdão nº 1550/06.0TBSTR.E1.S2 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 30 de Novembro de 2017

Magistrado ResponsávelFERNANDA ISABEL PEREIRA
Data da Resolução30 de Novembro de 2017
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Tribunal Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório: AA propôs, em 7 de Junho de 2006, a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, contra BB, pedindo a sua condenação no pagamento do quantia de € 91.870,64, acrescida de juros de mora desde a data da citação até pagamento, com fundamento no incumprimento de um contrato-promessa de «transmissão de estabelecimento comercial» celebrado por ambos em finais de Dezembro de 2004.

Para fundamentar a sua pretensão alegou, em suma, que aquele contrato visava a transmissão para o autor do estabelecimento comercial de revenda de gás da ré, com o respectivo equipamento, mobiliário, veículos e stock de garrafas de gás, pela quantia de € 174.579,26, tendo sido formalizado, em Março de 2005, através de um contrato-promessa, nos termos do qual pagou à ré a quantia de 40.000,000€, a título de sinal e princípio de pagamento, obrigando-se a efectuar um reforço de € 20.000,00, em 14 de Junho de 2005, e a pagar do remanescente do preço - € 114.579,26 - logo que obtivesse empréstimo bancário ou até 31 de Dezembro do mesmo ano, quantias que lhe seriam restituídas em singelo pela ré se a CC não autorizasse o negócio.

Mais alegou que a partir de 15 de Março de 2005 os clientes do estabelecimento começaram a ser fornecidos por um antigo funcionário do mesmo, praticando preços mais baixos, o que diminuiu as receitas do estabelecimento e o impossibilitou de pagar o reforço do sinal, e que foi sucessivamente interpelado pela ré, por cartas, para efectuar o pagamento em falta, na última das quais, datada de 19 de Julho de 2005, lhe comunicou que se o mesmo não fosse efectuado até ao dia 25 de Julho de 2005 perderia o interesse na prestação e consideraria incumprida a obrigação.

Porém, no dia 20 de Julho de 2005, durante a noite, a ré invadiu o estabelecimento, retirou dali o computador e as pastas dos clientes, apropriou-se da mercadoria existente e dos critérios sobre clientes, impedindo o autor de lá entrar e dizendo que o contrato ficava sem efeito a partir dali, conduta que configura o incumprimento do contrato pela ré e lhe confere o direito a receber desta o dobro do sinal entregue (€ 80.00,000), bem como o valor da mercadoria que adquiriu (€ 2.941,24) e dos créditos sobre clientes resultantes de revendas de gás que fez enquanto esteve na posse do estabelecimento (€ 8.929,40).

A ré contestou por impugnação, alegando que prometeu vender ao autor os direitos de revendedor, ou seja, transmitir-lhe a sua posição contratual no contrato celebrado com a CC, bem como os bens elencados no contrato-promessa, que o autor incumpriu culposamente ao não efectuar o pagamento do reforço do sinal na data acordada nem posteriormente, apesar das cartas que lhe enviou, pugnando pela improcedência da acção.

Deduziu reconvenção com fundamento em que o incumprimento do autor a levou a perder interesse no contrato prometido e a resolver o contrato-promessa por carta de 26 de Julho de 2005, pedindo a condenação do autor no pagamento de indemnização por danos patrimoniais no montante de € 127.879,26, resultantes do não recebimento do reforço do sinal e do remanescente do preço acordado. Subsidiariamente, pediu a condenação do autor na perda do sinal prestado, no valor de € 40.00,00, e no pagamento de indemnização no montante de € 15.000,00 por danos não patrimoniais resultantes da ofensa do seu bom nome e reputação, comercial e pessoal.

O autor apresentou réplica, na qual impugnou a factualidade alegada pela ré relativa ao incumprimento definitivo do contrato-promessa e consequente perda de interesse da ré no cumprimento em face da mora no pagamento do reforço do sinal, alegando ter pago à ré, desde que tomou posse do estabelecimento, uma renda mensal de € 250,00 como contrapartida pelo gozo do estabelecimento prometido transmitir.

Pediu ainda a condenação da ré como litigante de má-fé, em multa e indemnização no valor de € 2.000,00, acrescida dos honorários ao mandatário e custas.

A ré apresentou tréplica, pugnando pela improcedência do pedido de condenação como litigante de má-fé.

No saneador foi rejeitada a reconvenção quanto aos pedidos de condenação do autor no pagamento da quantia de € 127.679,26 pela perda do valor do negócio e de indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 15.000,00 e admitida quanto ao mais.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte teor: «(…) julgo:

  1. Esta acção totalmente procedente e condeno a ré a pagar ao autor a quantia de € 91.870,64 (noventa e um mil oitocentos e setenta euros sessenta e quatro cêntimos), acrescida de juros moratórios vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, calculados à taxa legal; b) O pedido reconvencional totalmente improcedente e dele absolvo o autor; c) Improcedente o pedido de condenação da ré como litigante de má-fé».

    A ré, inconformada, interpôs recurso de apelação.

    O Tribunal da Relação de … proferiu acórdão de não admissão do recurso com fundamento em que as conclusões apresentadas eram absolutamente deficientes, deficiência insusceptível de ser sanada através de aperfeiçoamento, nos termos do artigo 639º nº 3 do Código de Processo Civil.

    Interposto recurso de revista, decidiu este Supremo Tribunal de Justiça revogar aquela decisão no segmento em que rejeitou o recurso de apelação e determinar a baixa dos autos à Relação, a fim de ser formulado convite de aperfeiçoamento das conclusões da alegação de recurso, nos termos do disposto no artigo 685º-A do Código de Processo Civil, na redacção do DL nº 303/2007, de 24 de Agosto, (actual artigo 639º).

    Dando cumprimento ao assim determinado, proferiu o Tribunal da Relação de … novo acórdão, em 12 de Janeiro de 2017, no qual julgou a apelação procedente e revogou a decisão recorrida, julgando a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou «a ré a pagar ao autor a quantia de € 2.941,24, acrescida de juros de mora vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, à taxa legal, absolvendo a mesma do restante peticionado.

    Mais se julga procedente a reconvenção, declarando o incumprimento definitivo do contrato-promessa pelo autor, com a consequente perda do sinal».

    Irresignado, recorreu o autor de revista.

    Na sua alegação formulou as seguintes conclusões (sic):

  2. A racionalidade especificamente jurídica oferece-nos parâmetros de interpretação e racionalização que têm de ser consentâneos com a realidade que esteja sob escrutínio.

  3. Se no contrato se encontra positivado que não é apenas transmitido o direito à revenda dos produtos de gás liquefeito, mas também um computador, um ecrã, uma impressora, uma secretária, duas cadeiras, um vasilhame, Toyota mat. RN-…-…, Renault Kangoo mat. …-…-ZI, um expositor, não se revela prudente concluir que o autor iria utilizar aqueles bens móveis na rua ou mesmo em outro estabelecimento comercial, dado que faziam parte integrante da "loja".

  4. Se o contrato-promessa tinha como objecto "ceder pelo preço de €174.579,26 (…) ao segundo outorgante (ora autor) dos direitos de "revendedor", assim como, um computador, um ecrã, uma impressora, uma secretária, duas cadeiras, um vasilhame, duas viaturas e um expositor, é de interpretar o contrato-promessa como sendo um contrato-promessa de cessão de exploração.

  5. Ademais, tendo ficado provado que os pagamentos efectuados pelo autor a 17 de Janeiro de 2005 e em 19 de Janeiro de 2005 correspondiam ao valor da mercadoria em stock, temos necessariamente de depreender que o stock foi vendido pelo autor aquando da exploração da "loja". Nenhuma das testemunhas rumou no sentido de não ser o autor que geria o negócio com carácter exclusivo, encomendando e vendendo gás por sua conta e risco, no lapso temporal referido nos autos, muito pelo contrário.

  6. Logo, ao se qualificar juridicamente um contrato atendendo apenas ao que se encontra exarado no mesmo, ignorando, consequentemente, a intenção das partes aquando da sua outorga e os actos praticados na vigência estamos perante uma questão puramente jurídica que merece ser atendida pelos VENERANDOS CONSELHEIROS.

  7. O princípio da primazia da realidade diz-nos essencialmente que não podemos manipular ilicitamente a qualificação da relação. Logo, revela-se imperioso proceder à interpretação do negócio jurídico em causa, dado que do mesmo não resulta de forma clara e inequívoca, a sua subsunção a um determinado regime jurídico.

  8. A compreensão e assimilação do conteúdo das declarações negociais vertidas num contrato é uma actividade intelectiva que se deve efectuar de acordo com os critérios delineados, em especial no art. 236.° do CC - que consagra a denominada teoria da impressão do destinatário - que se podem resumir assim: as declarações devem valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratório, deve entendê-la, desde que no documento esse sentido encontre um mínimo de correspondência. O declaratário é obrigado a investigar, num plano de boa fé e tendo em consideração todas as circunstâncias por ele sabidas ou cognoscíveis, o que o declarante quis; este, por seu lado, é também obrigado pela boa fé a deixar valer a declaração no sentido que o declaratário, mediante cuidadosa verificação, tinha de atribuir-lhe.

  9. Todavia, na interpretação de um contrato deve buscar-se não apenas o sentido de declarações negociais separadas e alheadas do seu contexto negocial global, mas antes o...

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