Acórdão nº 2303/12.2YXLSB-B.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 10 de Janeiro de 2017

Magistrado ResponsávelJOSÉ RAINHO
Data da Resolução10 de Janeiro de 2017
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I - RELATÓRIO No âmbito do processo de inventário (corrente pela Comarca de Lisboa, Inst. Local, Secção Cível, J1), instaurado (em 20 de abril de 2012) por morte de AA, e em que são interessados a requerente e cabeça-de-casal BB, CC e DD, todos filhos da inventariada, foi oportunamente apresentada a relação de bens.

Entre outros bens, foi relacionado pela cabeça de casal, como direito de crédito (verba nº 1), o seguinte bem: «Aplicações financeiras de capitalização, subscritas pela inventariada junto do Montepio Geral-Associação Mutualista (…), na modalidade de “Capitais de Reforma/Complemento de Rendimento”», no valor de €115.644,39.

Os outros dois interessados deduziram reclamações contra a relação de bens, sustentando, além do mais, que não havia lugar ao relacionamento de tal bem, por isso que não fazia parte da herança.

Na sequência, veio a ser proferida decisão que, entre o mais, considerou que as aludidas aplicações financeiras deviam manter-se relacionadas como estavam.

Inconformados com o decidido, apelaram os interessados reclamantes.

Fizeram-no sem êxito, pois que a Relação de Lisboa, por unanimidade e sem fundamentação essencialmente diferente, confirmou o decidido.

Interpôs então a interessada DD revista excecional, à qual o interessado CC veio declarar a sua adesão.

A competente formação de juízes admitiu a revista excecional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art. 672º do CPCivil, “quanto à questão de saber se, tendo a inventariada subscrito aplicações financeiras de acordo com o regime previsto no Regulamento de Benefícios do Montepio Geral, com disponibilização do capital acumulado a favor dos seus três filhos, à morte dela o capital integra o acervo hereditário, devendo constar da relação de bens ou não o integra por pertencer, sem ser por via hereditária, a estes.” Da respetiva alegação extrai a Recorrente as seguintes conclusões (transcrevem-se apenas as conclusões que ainda mantêm interesse para o caso, já que as demais se referem à questão, já ultrapassada, da admissibilidade da revista excecional): ERRÓNEA QUALIFICAÇÃO DOS DIREITOS EM PAUTA G. Preenchidos os requisitos previstos no art. 672.°, n.º 1 do C.P.C., cabe invocar a violação da lei substantiva que constitui o primeiro fundamento do recurso, nos termos do art. 674.°, n.º 1 do C.P.C..

  1. A Relação de Lisboa sustenta que, nas aplicações em apreço, o capital acumulado à data do óbito da Inventariada integra a herança: “Deve considerar-se que integra a herança deixada pela inventariada o direito de crédito relativo às aplicações financeiras subscritas por aquela junto de instituição financeira, na medida em que a mesma titular podia reembolsar-se do valor capitalizado a todo o momento, e só se não o fizesse esse valor acumulado seria entregue aos beneficiários designados após o seu falecimento, sendo irrelevante, por isso, que a inventariada não tenha solicitado em concreto o reembolso total do capital em apreço.” - cfr. págs. 28 e 29 do acórdão da Relação.

    1. Salvo melhor opinião, tal entendimento corresponde a uma errónea aplicação ao caso dos autos do regime previsto nos arts. 31.° a 36.° do Código das Associações Mutualistas, aprovado pelo DL n.º 72/90, de 3 de Março, assim como no Regulamento de Benefícios, aprovado pelo Montepio Geral, ao abrigo do art. 31.° do referido diploma legal, e bem assim do enquadramento geral previsto no art. 444.° do C.C., reportado ao instituto do contrato a favor de terceiro.

  2. Adaptando a doutrina e jurisprudência convocadas às aplicações mutualistas em causa nos autos - tituladas pelos documentos de fls. 39 e ss. -, a posição da Recorrente é a seguinte: - o contrato celebrado entre a Inventariada/promissária e o Montepio Geral/promitente tem uma natureza complexa, dele decorrendo obrigações entre a Inventariada e o Montepio Geral, mas dele nascendo também direitos a favor dos beneficiários indicados pela Inventariada, os quais, todavia, só se consolidam e concretizam após o óbito da promissária, nos termos do arts . 444.°, n.º 1 e 451.°, n.º 1 do C.C.; - tal contrato inscreve-se no âmbito de uma relação mutualista disciplinada pelo Regulamento de Benefícios do Montepio Geral, elaborado ao abrigo do art. 31.° do Código das Associações Mutualistas, que prevê que os beneficiários/filhos da Inventariada adquirem um direito próprio ao capital acumulado à data do óbito desta; - a Inventariada/promissária tem o direito ao resgate das aplicações efectuadas, nos termos previstos no art. 448.°, n.º 1, in fine do C.C., bem como no Regulamento de Benefícios do Montepio Geral; - tal direito de resgate funciona assim como uma condição resolutiva do contrato efectuado entre o Montepio e a Inventariada; - não ocorrendo essa condição resolutiva, permanece o direito dos beneficiários indicados pela Inventariada/promissária no contrato celebrado com o Montepio/promitente, o qual, se bem que nascido à data do contrato (art. 441.°, n.º 1 do C.C.), só se consolida e concretiza com o óbito da promissária (art. 451.° do C.C.), o qual funciona assim como condição suspensiva da atribuição desse direito; - a modalidade mutualista, sujeita ao regime do Código das Associações Mutualistas e do Regulamento de Benefícios do Montepio Geral, acautela interesses dignos de protecção legal, nos termos do art. 443.° do C.C.; - a modalidade em apreço não lesa os interesses de herdeiros ou de credores, porque às contribuições do promissário se aplicam as disposições relativas à colação, imputação e impugnação pauliana - cfr. art. 450.°, n.º 1 do C.C.; - a cabeça de casal opõe-se a reconhecer o direito próprio dos seus irmãos ao capital acumulado pela Inventariada, nos termos por esta estipulados, não porque isso a prejudique no que quer que seja - uma vez que o capital é a dividir pelos irmãos em partes iguais -, mas apenas porque pretende apoderar-se dessas verbas para com elas pagar supostas dívidas (realmente dívidas fictícias) da Inventariada ao Externato “O Lar ......, Lda.” (cfr. verbas n.ºs 8 e 9 do passivo da relação de bens), que a cabeça de casal controla a quase 100%, ou seja, para se pagar a ela própria; - é por isso inaceitável a pretensão da cabeça de casal de arrolar tais aplicações mutualistas como bens da herança, porque, na verdade, tais valores foram adquiridos pelos filhos da Inventariada, como direito próprio, por força do contrato por ela livremente celebrado com o Montepio Geral, o qual se consolidou e concretizou na data do óbito daquela, nos termos contratualmente previstos.

  3. Pelo exposto, deve ser dado provimento ao recurso, determinando-se a eliminação da verba n. o 1 da relação de bens, a qual não integra um bem da herança.

    DA NULIDADE DO ACÓRDÃO; CONSEQUÊNCIAS L. Na apelação, estava ainda em causa uma outra questão relativa a uma liberalidade efectuada pela Inventariada a favor da cabeça de casal, relativamente aos termos em que ocorreu o aumento de capital do Externato “O Lar ......, Lda.”.

    M.

    Nesse âmbito, a Recorrente procedeu à impugnação do segmento de facto identificado na conclusão A, cuja fundamentação foi devidamente sumariada nas conclusões B a J.

  4. Porém, apesar do carácter exaustivo da fundamentação apresentada, o acórdão da Relação limita-se a dizer o seguinte: “No que respeita à al. A) dos factos não provados que ambos os apelantes reclamam como provado – “Ao não subscrever o aumento do capital social mencionado em 8.

    E ao permitir que a cabeça de casal o subscrevesse sem pagamento de prémio, a inventariada pretendeu beneficiar patrimonialmente a sua filha BB em detrimento dos demais filhos" - parece evidente a sua sem razão face a tudo o que se acima dissemos e tendo em vista a matéria constante dos pontos 18 e 19 dos factos assentes que, realça-se, não foi impugnada pelos recorrentes.

    Tal como se justificou em 1.

    a instância, a resposta ínsita naqueles pontos 18 e 19 implica, forçosamente, a resposta de não provado a esta matéria.” - cfr. pág. 18 do acórdão.

  5. Assim sendo, a Relação indeferiu a impugnação da matéria de facto com o único argumento de que os factos assentes sob o n.ºs 18 e 19 implicavam forçosamente a resposta de não provado à matéria em apreço.

  6. O facto assente sob o n.º 18 reporta à circunstância da cabeça de casal ter contraído um empréstimo bancário com a finalidade de subscrever o aumento de capital em apreço; o facto assente sob o n.º 19 refere que a cabeça de casal dedicou toda a sua vida profissional ao Externato O Lar ......, Lda.

    , visando a Inventariada, com a aprovação do aumento de capital de Setembro de 2005, garantir que a cabeça de casal continuaria a dirigir a instituição.

  7. Ora, não se vislumbra em que medida é que os factos assentes sob os n.ºs 18 e 19 determinam o indeferimento da impugnação da matéria de facto, já que o propósito prosseguido pela Inventariada, aquando do aumento de capital descrito nos factos assentes sob os n.ºs 8 a 11 - que visou inequivocamente atribuir à filha BB uma posição patrimonial de vantagem no quadro societário em apreço -, é perfeitamente consentâneo com a sua intenção de garantir que seria a cabeça de casal que continuaria a dirigir a instituição após a sua morte.

    Não estamos perante factos antagónicos ou sequer divergentes.

  8. Neste contexto, a decisão de indeferir a impugnação da matéria de facto não se contém nas premissas da fundamentação, razão pela qual existe uma manifesta oposição entre os fundamentos utilizados e a decisão proferida, o que gera inapelável nulidade do acórdão recorrido, nos termos do art. 615.°, n.º 1, c) do C.P.C.

  9. Uma última nota para referir que a liberalidade em causa não é uma doação em sentido próprio, tal como prevista no art. 940.° do C.C., sendo pacífico o entendimento de que as liberalidades sujeitas ao regime de inoficiosidade e colação podem revestir modalidade que não se subsume à doação tradicional (cfr. CARLOS PAMPLONA CORTE REAL, “Da imputação de liberalidades na sucessão legitimária”, 1989, Ministério das Finanças, pág. 1090).

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