Acórdão nº 820/07.5TBMCN.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 29 de Novembro de 2016

Magistrado ResponsávelFONSECA RAMOS
Data da Resolução29 de Novembro de 2016
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça AA, BB, e; CC, intentaram em 27.6.2007, no Tribunal Judicial do ..., acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra: 1. “EDP-Electricidade de Portugal, S.A.” e; 2. “CPPE-Companhia Portuguesa de Produção de Electricidade, S.A.” – entretanto designada “EDP-Gestão da Produção de Energia, S.A.

” Pediram a condenação das Rés no pagamento da quantia de € 355.733,09, sendo € 30.000,00 de danos morais de cada um, € 39.903,83 de danos próprios da vítima mortal, € 50.000,00 pela perda do direito à vida do seu pai e marido e € 174.579,26 a título de danos patrimoniais, dos quais € 1.000,00 atinentes a despesas de funeral e € 250,00 de gastos com roupa.

Para fundamentarem as respectivas pretensões aduziram, em síntese, o falecimento do seu marido e pai, respectivamente, por afogamento, na albufeira da Barragem do ..., o qual foi consequência da existência de um fundão, por seu turno decorrente do enchimento da albufeira sem qualquer nivelamento da orografia preexistente, sendo certo que inexistente qualquer aviso ou advertência no local para uma tal realidade e perigosidade e, por outro lado, utilizado o local como praia fluvial, sem qualquer actuação pelas Rés no sentido de o impedirem.

Ora, na medida da concessão pelo Estado às Rés daquela parcela do domínio hídrico, as obrigações de segurança e prevenção de sinistros, como aquele em apreço, impendiam sobre aqueles, com o que consubstanciada a ilicitude do seu comportamento.

Contestaram as Rés, aduzindo não existir qualquer fundamento legal para a respectiva responsabilização: posto que não lhes cabendo qualquer dever de vigilância do “território” da albufeira ou sequer de advertência dos perigos, salvo o perímetro exclusivo junto da barragem, este sinalizado; posto que a jurisdição do espaço não lhes pertence. Atribuíam a morte do sinistrado à sua própria culpa e imprevidência.

Requereram a intervenção acessória da Companhia de Seguros cujo contrato garante a respectiva responsabilidade civil.

Foi admitida a intervenção acessória das seguradoras, “SEGURO DD, S.A.” e “SEGURO EE, S.A.”, por via da específica configuração do asseguramento da responsabilidade civil da Ré EDP, as quais apresentaram contestação.

*** Foi proferida sentença (fls. 735/754) que absolveu as Rés do pedido.

*** Os Autores interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do ...

que, por Acórdão de 31.5.2016, – fls. 902 a 952 – com um voto de vencido, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença apelada.

*** Inconformados, recorreram para este Supremo Tribunal de Justiça, e alegando, formularam as seguintes conclusões: l. Na alínea K) dos factos provados ficou provado que “Em 2006, por regime de licença vinculada ao SEP (Sistema Eléctrico de Serviço Público), à Ré CPPE, SA estavam atribuídos direitos de utilização do domínio público hídrico afecto ao aproveitamento hidroeléctrico do ..., sendo que os direitos e obrigações emergentes daquele regime, já em 2008, foram concessionados (e transmitidos) à sucessora da demandada CPPE, a EDP - Gestão da Produção de Energia, SA, nos termos do contrato de concessão junto a fls. 366 e ss., incluindo os vários aditamentos e alterações, cujo teor dá por integralmente reproduzido, sendo nos termos daquele que a Ré EDP Gestão de Produção de Energia SA gere, dirige, vigia, administra e explora o complexo hidroeléctrico da Barragem do ... e antes dela a CPPE, SA. Os termos do contrato de concessão de fls., 366 e ss, reproduzem basicamente os preexistentes com a CPPE, SA, enquanto entidade produtora de energia eléctrica a qual estava afecto o centro electroprodutor do ....

” 2. Compulsando o contrato de concessão (fls. 366 e ss) desde logo se constata que: “O Aproveitamento hidroeléctrico do ... é constituído pela realidade física que resulta da construção da barragem designadamente a albufeira criada pela barragem” (cláusula 5).

  1. À data do acidente o conceito de “albufeira” estava concretizado no Artigo 3.° do Dec. Lei 11/90 de 6/1 (Regulamento de Segurança de Barragens). Para efeitos deste diploma “albufeira” definia-se no: c) Albufeira – quer o volume de água retido pela barragem (conteúdo), quer o terreno que circunda o mesmo volume (continente), quer ambos, devendo o sentido, em cada caso, ser deduzido do contexto; 4. Pelo que o título de utilização das Rés/Recorridas incluía quer o volume de água retido pela barragem (conteúdo), quer o terreno que circunda o mesmo volume.

  2. Donde se retira a conclusão que, a CPPE SA, face ao contrato de concessão, à data do acidente exercia poderes e estava obrigada a gerir, dirigir, vigiar, administrar e explorar o complexo hidroeléctrico da Barragem do ... no qual se incluía quer o volume de água retido pela barragem (conteúdo), quer o terreno que circunda o mesmo volume (continente), quer ambos.

  3. Acresce que, como também resulta da alínea K) dos factos provados, a produção e de energia eléctrica no complexo hidroeléctrico da Barragem do ... pela R/Recorrida CPPE SA (hoje EDP-Gestão da Produção de Energia SA) ocorria em regime de licença vinculada ao (Sistema Eléctrico de Serviço Público) 7. Ora todo este contexto factual determina que (ao contrário do que concluiu o Acórdão recorrido) a CPPE SA sob vários enfoques tivesse o dever legal e contratual de vigiar ou prevenir o perigo de afogamento na albufeira do ....

  4. Desde logo se é verdade que, “ab initio” é à Autoridade Nacional da Água (INAG actualmente APA) que compete cumprir as “Obrigações de serviço público” relativamente à utilização das águas das albufeiras, designadamente a obrigação de promover a segurança de pessoas e bens, (Artigo 8º, n°1, da Lei 58/2005 de 29/12), a partir do momento em que é celebrado um contrato de concessão com um interveniente do Serviço Eléctrico Nacional, como é o caso da R/Recorrida CPPE SA (hoje EDP-Gestão da Produção de Energia SA), tais obrigações passam também a ser da responsabilidade desse ou desses intervenientes 9. Assim é porque, o Dec. Lei 29/2006 de 15/2, que estabelece os princípios de organização e funcionamento do Sistema Eléctrico Nacional, bem como as regras gerais aplicáveis ao exercício das actividades de produção de energia eléctrica, no seu Artigo 5º, sob a epígrafe de “Obrigações de serviço público” refere que: 1 – Sem prejuízo do exercício das actividades em regime livre e concorrencial, são estabelecidas obrigações de serviço público.

    2 – As obrigações de serviço público da responsabilidade dos intervenientes no Serviço Eléctrico Nacional, nos termos previstos no presente decreto-lei e na legislação complementar.

    3- São obrigações de serviço público, nomeadamente: a)A segurança.

  5. Por outro lado, prosseguindo as RR. o exercício de uma actividade (produção de energia eléctrica) sujeita a uma forma especial de licenciamento, impendiam sobre elas os deveres de protecção civil com vista a prevenir e evitar a ocorrência de acidentes graves como o dos autos (vide a Lei nº27/2006 de 3 de Julho (arts. 1, 4, 5,6 e 7).

  6. Resulta assim à saciedade, quer do disposto Dec. Lei 29/2006 de 15/2, quer do disposto Lei nº27/2006 de 3 de Julho que ao contrário do que concluiu o Acórdão recorrido que impendia sobre as Rés/Recorridas o dever legal de vigiar e prevenir o perigo de afogamento na albufeira, isto é assegurar a segurança e prevenir os acidentes com perigo para pessoas e bens.

  7. Porém se a responsabilização das RR. não resultasse do acima exposto sempre resultaria do disposto no art. 493º do Código Civil. Na verdade conforme resulta da já aludida matéria dada por provada na alínea K) dos factos provados face ao contrato de concessão tinha a CPPE SA o dever de vigiar o complexo hidroeléctrico da Barragem do ... onde se incluía a albufeira.

  8. Ora nos termos do art. 493º, nº1, do Código Civil “Quem tiver em seu poder coisa imóvel, com o dever de a vigiar… responde pelos danos que a coisa causar, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.” 14. Pelo que, tendo a CPPE SA sob seu poder a albufeira e estando obrigada a vigiá-la por um lado, e por outro não se tendo provado que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua, a CPPE SA é civilmente responsável pelos danos sofridos pelos AA/Recorrentes.

  9. Acresce ainda que, se por hipóteses não fossem de acolher as conclusões formuladas supra, sempre a CPPE SA teria de ser responsabilizada com bases nos denominados deveres de tráfego.

  10. É que, no que se refere às condutas omissivas, se é certo inexistir um dever genérico de evitar a ocorrência de danos, não menos certo é que cada um de nós não pode expor os outros a mais riscos ou perigos de danos do que aqueles que são inevitáveis, havendo situações em que é indiscutível existir um dever de agir para prevenir o perigo de dano de outrem.

  11. Assim será quando o dever de prevenir o perigo resulte da lei ou ainda quando o perigo de dano resulte de um facto praticado ou de uma situação mantida – neste caso “o criador ou o mantenedor da situação especial de perigo tem o dever jurídico de o remover.” 18. Deste modo, a obrigação de indemnizar pode fundar-se no incumprimento de deveres destinados a prevenir determinados perigos, ou seja, numa terminologia mais moderna, no incumprimento de deveres do tráfego.

  12. Estes deveres do tráfego surgem quando alguém crie ou controle uma fonte de perigo: cabe-lhe então tomar as medidas adequadas a prevenir ou evitar os danos, referindo ainda, além de outras situações a daquele que tem a responsabilidade pelo espaço: “quem controle um espaço deve prevenir os perigos que lá ocorram ou possam ocorrer: quem tem a vantagem do lugar deve assumir os deveres que daí decorram”, dependendo o conteúdo destes deveres do caso concreto.

  13. Sobre o detentor de locais intrinsecamente portadores de perigosidade e geradores de risco recai um dever de agir, mediante a execução de medidas...

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