Acórdão nº 08P3287 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 22 de Outubro de 2008

Magistrado ResponsávelMAIA COSTA
Data da Resolução22 de Outubro de 2008
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. RELATÓRIO AA, Procurador-Geral Adjunto, apresentou queixa criminal contra BB, Procurador-Geral Distrital de Coimbra, imputando-lhe um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382º do Código Penal (CP).

Findo o inquérito, que decorreu nos serviços do Ministério Público (MP) deste Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o sr. Procurador-Geral Adjunto ordenou o arquivamento dos autos, por inexistência de indícios daquele ou de qualquer outro crime.

Inconformado, o queixoso, constituído assistente, requereu a abertura da instrução.

No final da instrução, foi proferido despacho de não pronúncia, que a seguir se transcreve: A - A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286° 1.CPPenal).

A instrução foi requerida pelo assistente sendo que uma das diligências solicitadas se cifrava na constituição do denunciado como arguido e o seu interrogatório. O assistente e seu advogado, oportunamente notificados (fls. 417 e 419) não compareceram.

Ao arguido é atribuída a prática de um crime de abuso de poder, p. p. no artigo 382º do CPenal, nos termos do qual" O funcionário que, fora dos caso previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si, ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por orça de outra disposição legal".

No interrogatório a que foi sujeito o arguido deu por reproduzido para os devidos efeitos legais o conteúdo das suas declarações que havia prestado no dia 07.Dez.2004 no âmbito do Processo de Inquérito nº 2/2004, que correra termos na Procuradoria-Geral da República para apuramento de eventual infracção disciplinar por parte do ora assistente. Trata-se de documento constante de fls. 404/409 e cuja junção o denunciado Lic. Braga Temido requerera assim que foi notificado para interrogatório como arguido nos presentes autos.

Nessas declarações refere que tendo iniciado as suas funções com Procurador-Geral Distrital de Coimbra em 27.Fev.2004 (de facto, em Março do mesmo ano) e face à realidade com que deparou, pelas informações do seu antecessor Dr. CC, teve que delinear uma estratégia global de reorganização dos serviços do Ministério Público em todos os Círculos do Distrito Judicial de Coimbra. Dando conta que o Círculo Judicial de Aveiro era de todos aquele que mais problemático se divisava, foi aí que teve necessidade de investir com mais acuidade neste projecto reorganizativo.

Foi neste contexto que, "sendo confrontado com a saída de um Procurador de República que aí estava destacado no círculo de Aveiro, obteve a anuência do Sr. Vice-Procurador Geral de República para se diligenciar no sentido de um novo destacamento". "Por outro lado, o que se constatava era que a distribuição de serviço entre os Procuradores de República que prestavam serviço no Círculo Judicial de Aveiro constituía um emaranhado que não proporcionava uma adequada eficácia no serviço, só ao Dr. DD estando atribuídas funções em exclusividade, no Tribunal de Família e Menores - emaranhado esse a que urgia pôr termo para racionalizar o sistema".

"Por tudo isso no dia 14 de Junho de 2004 teve uma longa conversa com o Dr. AA em Aveiro sobre as tarefas do Procurador de República com funções de coordenação dos Procuradores Adjuntos no Círculo Judicial como relativamente à actividade de representação do Ministério Público nas audiências de Tribunal Colectivo". Sucedeu mesmo que "em face dos seus lamentos sobre a impossibilidade de acumular as duas tarefas, eu próprio já lhe tinha dado indicação para priorizar as funções de coordenação". "No referido dia 14 de Junho o Dr. AA concordou em que era indispensável colocar em Aveiro um quarto Procurador e levar a cabo una efectiva distribuição de serviço que possibilitasse a um dos Procuradores de República realizar a coordenação dos Procuradores Adjuntos e a outro Procurador de República realizar os julgamentos de tribunal colectivo". "Só que, nessa reunião o Dr. AA transmitiu-me um entendimento sobre o exercício de funções de coordenação que, no meu ver, não era adequado. Afirmou-me que entendia não dever «andar por trás» dos Procuradores Adjuntos a «meter o nariz» no serviço que realizavam, que só às Inspecções cabia apreciar o mérito do desempenho de cada magistrado...". "Em suma demonstrou-me advogar uma personalização fragmentada da intervenção de cada Magistrado do Ministério Público que considero inadequado ao entendimento da Procuradoria da República como órgão...", "entendimento que confirmou mais tarde, por escrito, num documento que me enviou na data de 9 de Julho de 2004...".

Constata-se pois que foi neste quadro que foram proferidas as Ordens de Serviço nº 9/2004 e nº 10/2004, bem como a Ordem de Serviço nº 11/2004 - (fls. 169/173, fls. 174/175 e fls. 176/183).

B - Como é óbvio, a imputação criminal atribuída ao magistrado/arguido tem de se contextualizar nas acções decorrentes da sua qualidade profissional e funções de Procurador-Geral Distrital do Distrito Judicial de Coimbra.

Preceitua o artigo 219°.4. da CRP que a magistratura do ministério público é hierarquizada. A posição do Procurador-Geral Distrital insere-se a meio desta hierarquia. Tal implica um funcionamento em sentido descendente (abrangendo sob sua dependência os Procuradores de República e os Procuradores Adjuntos) e sentido ascendente (sendo ele próprio subordinado hierárquico do Procurador-Geral da República, a quem tem de prestar conta do seu "munus" no exercício como Procurador-Geral Distrital). Por outro lado, na actividade profissional de um Procurador-Geral Distrital há que referir a uma dupla vertente do seu exercício funcional: uma, que decorre do exercício próprio da função, o que se prende com a sua actividade quotidiana e a outra, a de um quadro na cadeia hierárquica da categoria e da função. É assim que das disposições conjugadas dos artigos 58° e 59° do EMP resultam a competência e as atribuições que compõem a actividade funcional própria do Procurador-Geral Distrital enquanto magistrado - cfr. artigo 58°.1, b), f) e i) do EMP - e aqueles outros elementos de actividade própria de Procurador-Geral Distrital enquanto elo hierárquico. Um Procurador-Geral Distrital, é, em suma, responsável pela gestão do Ministério Público na área do Distrito Judicial que por isso dirige, superintende e coordena visando alcançar a melhor produtividade no funcionamento deste órgão de justiça na área do seu Distrito Judicial e pelo qual é responsável e responde perante o Procurador-Geral da República - cfr. artigo 58°.1. a), c), d), e), g), e h) e o poder de delegação, nos termos do artigo 59°.2. do EMP.

C - Em termos de exegese importa assegurar que não estão aqui em apreciação a actividade profissional ou funcional quer do assistente que tem no seu palmarés cerca de 27 anos de carreira de Magistrado, quer do Dr. EE. Estas só relevam na estrita medida em que tiveram a virtualidade de potenciar a acção do magistrado/arguido enquanto Procurador-Geral Distrital no processo reorganizativo do Círculo Judicial de Aveiro. É aliás disso mesmo que o arguido dá conta nas respostas dadas aquando do seu interrogatório. Aliás adiante-se desde já, e no que diz respeito às funções atribuídas ao assistente no âmbito e a partir dessa reorganização não se divisa qualquer desprimor para o assistente (que ficou com funções de representação do Ministério Público em audiências do Colectivo, continuando a manter a face visível do Ministério Público no Círculo) nem qualquer extrapolação nas atribuições do Procurador-Geral Distrital. Pode mesmo dizer que pelas funções que lhe foram confiadas pelo Magistrado/arguido tal é demonstrativo para já da confiança e credibilidade nele depositadas para o desempenho dessa mesma representação.

D - Pode o assistente ter outro entendimento quanto à gestão hierárquica levada a cabo pelo magistrado/arguido perfilhando mesmo que a sua situação deveria merecer ou poderia ter merecido um tratamento diferente ou assumisse outro rumo. Está no seu direito. Porém entre discordar de uma gestão que porventura se lhe configura prejudicial e atribuir um alcance criminoso ao autor titular dessa gestão por esta eventual discordância ou prejudicialidade vai um grande passo.

É bom acentuar que o magistrado/assistente não põe em causa nem nega a substância ou o mérito das considerações e imputações críticas tecidas pelo magistrado/arguido no tocante à actividade e à situação problemática que foram constatadas relativamente à actividade e serviços da Procuradoria da República (à excepção da Comarca de Ílhavo) pela qual era responsável e que conduziram às medidas adoptadas pelo arguido. Limita-se sim a criticar os formalismos subjacentes às actuações do arguido enquanto seu superior hierárquico apresentando apenas um dimensionamento, que na sua óptica, estariam fora do âmbito da lei. Por isso, o assistente ao não pôr em causa a consistência e a veracidade do que foi constatado pelo arguido relativamente à sua actividade, limitando-se apenas a tecer crítica quanto à forma como o arguido procurou resolver o "amaranhado" dos problemas constatados nos serviços do assistente, demonstra não pretender discutir a idoneidade e a pertinência da reorganização levada a cabo pelo arguido, sendo que é isto mesmo que urgia esclarecer no âmbito da denúncia que foi apresentada. Mesmo a aceitar por mero hipótese que esta reorganização continha lapsos ou viciação do ponto de vista legal, tendo em linha de consideração o crime de abuso do poder que imputa ao arguido, mister se tornava que demonstrasse que a mesma estava direccionada contra ele nomeadamente para o prejudicar.

No termo desta instrução não logrou o assistente realizar esta demonstração. Nas afirmações e declarações que o arguido...

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