Acórdão nº 373/15 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Julho de 2015

Magistrado ResponsávelCons. João Cura Mariano
Data da Resolução14 de Julho de 2015
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 373/2015

Processo n.º 421/15

  1. Secção

Relator: Conselheiro João Cura Mariano

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

Relatório

Por deliberação de 27 de março de 2014 do Conselho Diretivo da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários foi aplicada a A., S.A., uma coima de €75.000,00, pela violação dolosa do dever de publicação imediata do anúncio preliminar de oferta pública obrigatória, nos termos dos artigos 191.º, n.º 1, 393.º, n.º 2, alínea f) e 388.º, n.º 1, alínea a), todos do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei 486/99, de 13 de novembro.

A Arguida impugnou judicialmente esta decisão, tendo os autos sido remetidos para o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão que, por sentença de 24 de novembro de 2014, condenou a Arguida pela prática da infração de que vinha acusada, mas agravou a coima inicialmente aplicada pela decisão recorrida, fixando-a em €450.000,00.

A Arguida interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão em 17 de março de 2015, negou provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida.

Recorreu então a Arguida para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:

“…I. INTRODUÇÃO

A norma do artigo 416.º, n.º 8 do CdVM no sentido em que foi interpretada e aplicada na Decisão recorrida é inconstitucional, violando o artigo 32.º, n.º 10 da CRP, constituindo uma restrição intolerável aos direitos, liberdades e garantias do arguido em clara violação do disposto no artigo 18.º, também da CRP.

A norma vertida no n.º 8 do artigo 416.º do CdVM, interpretada no sentido em que o fez o Tribunal de recurso, mais não consubstancia do que uma clara e inadmissível restrição ao exercício pelo arguido do direito de defesa constitucionalmente consagrado, na modalidade de impugnação ou recurso da decisão condenatória da autoridade administrativa.

Tal restrição é tão ou mais evidente quanto maior ou mais abrangente for o alcance da reformatio in pejus. A inconstitucionalidade da norma é evidente quando - como na Decisão recorrida - se admite a reformatio in pejus numa situação em que, do patamar administrativo para a instância judicial de recurso, nada se alterou, quer de facto quer de direito (nomeadamente no que diz respeito à situação financeira do arguido), mas, ainda assim, o Tribunal opta por agravar a coima aplicada pela entidade administrativa.

Ora, é clara a restrição, o entrave, ao apelo para qualquer instância de recurso quando se admite o agravamento da coima perante a manutenção da realidade - fáctica e jurídica – subjacente existente no momento em que a autoridade administrativa, investida de verdadeiros e próprios poderes sancionatórios, determinou o respetivo montante concreto.

Em suma, o artigo 416.º, n.º 8 do CdVM, interpretado com o sentido e alcance da Decisão recorrida, no seguimento do que havia já sido entendido pelo tribunal de primeira instância, é inconstitucional.

Segundo a interpretação feita pela Decisão recorrida, o afastamento da proibição de reformatio in pejus pela norma vertida no n.º 8 do artigo 416.º do CdVM, permitiria ao tribunal de recurso ampliar a medida da coima, agravando a situação do arguido, ainda que nada de novo ou adicional tivesse vindo ao seu conhecimento em resultado da tramitação do processo de recurso / de impugnação judicial.

Mais concretamente, sufragou o Tribunal a quo o entendimento segundo o qual ainda que nada se tenha alterado, o Tribunal recorrido não está impedido de avaliar a situação existente como entender, desde que fundamentada.

Significa isto que a Decisão recorrida interpretou a norma do artigo 416.º, n.º 8 do CdVM em sentido clamorosamente inconstitucional, violando o direito de defesa, na modalidade de direito ao recurso, consagrado no n.º 10 do artigo 32.º da CRP, pelos motivos que sucintamente se passam a expor.

Para que bem se entenda o sentido e alcance deste recurso, refira-se que, na senda do entendimento do Tribunal Constitucional, tem vindo a ser abandonada a interpretação restritiva e redutora da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP.

Tanto assim que a Doutrina e Jurisprudência Constitucional já alargaram o entendimento inicialmente propugnado, passando a aceitar que os direitos constitucionais do arguido em sede de processo contraordenacional, à luz do artigo 32.º n.º 10 da Lei Fundamental, não se limitam aos direitos de audição a e de defesa (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 659/2006, n.º 2.2, vide também Acórdãos TC n.º 313/2007, 45/2008, n.º 2.2, 86/2008, n.º 2.1.5; José LOBO MOUTINHO, Direito e Justiça, "Estudos dedicados ao Professor Doutor Nuno José Espinosa Gomes da Silva", pág. 435).

Além disso, as garantias do arguido em sede de processo contraordenacional, não se esgotam naquele n.º 10 do artigo 32.º da CRP, desenvolvendo-se e concretizando-se ao longo de outros preceitos constitucionais tais como, para o que ao caso interessa, o n.º 1 do artigo 20.º (o direito à tutela jurisdicional efetiva) e o n.º 4 do artigo 268.º (o direito à tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, incluindo a impugnação de quaisquer atos da administração que os lesem e, portanto, os de natureza e contudo sancionatório).

Por fim, entenda-se que toda e qualquer restrição ou desincentivo ao livre exercício do direito de impugnar um ato administrativo de natureza e conteúdo sancionatório, tende a violar o direito de tutela jurisdicional efetiva, o que, no âmbito de um direito contraordenacional em que as coimas podem atingir os milhões de euros, se afigura particularmente gravoso e desproporcionado em face das finalidades de celeridade processual e de evitar a pendência de recursos meramente dilatórios.

  1. DA INTERPRETAÇÃO INCONSTITUCIONAL SUFRAGADA PELA DECISÃO RECORRIDA

    Não obstante ser questionável a constitucionalidade da norma ínsita no artigo 416.º, n.º 8 do CdVM - que afasta a proibição da reformatio in pejus em sede de impugnação da decisão administrativa condenatória -, não cuida, naturalmente, o recurso que ora se interpõe de analisar a questão da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da reformatio in pejus em sede de recurso de processo de contraordenação.

    Este recurso tem por objeto tão-somente lograr obter decisão que conheça da desconformidade constitucional da interpretação feita no Acórdão recorrido da referida norma. No fundo, pretende-se sindicar e apurar o limite constitucional da reformatio in pejus, prevista por aquela específica disposição do CdVM.

    Posto isto, admitindo-se como possível a alteração da medida da coima em sede de recurso de impugnação judicial em desfavor do arguido, ao abrigo do disposto no n.º 8 do artigo 416.º do CdVM, forçoso é entender-se que o agravamento da coima não poderá ser admitido em termos absolutos nem unicamente dependentes da apreciação subjetiva pelo juiz da realidade existente (quando nada mais do que a medida da coima se altera, no confronto da decisão administrativa condenatória / "acusação" com a sentença proferida pela instância de recurso).

    Assim sendo, a possibilidade de agravamento da coima em sede de recurso de impugnação judicial é apenas de admitir caso, em sede e por via do decurso desse processo judicial, resultem provados elementos / factos agravantes além (ou de sentido diverso) dos que já constavam da decisão administrativa condenatória impugnada que o determinem e na medida em que o justifiquem.

    O mesmo é dizer-se que, à luz da Lei Fundamental, sem alteração superveniente agravante dos factos e fundamentos da decisão administrativa condenatória não pode a instância jurisdicional de controlo alterar a medida da coima, em desfavor do arguido.

    Dito isto, é de referir que o preceito do n.º 10 do artigo 32.º da CRP impede, em sede de processo de contraordenação, a admissibilidade da reformatio in pejus em termos absolutos e / ou ilimitados (naturalmente, passe-se a redundância, com o limite máximo da coima abstratamente aplicável) pelo tribunal de recurso.

    É o n.º 10 do artigo 32.º da CRP - núcleo essencial das garantias de defesa do arguido em sede de processo de contraordenação - que impede que, sem desconformidade constitucional, o disposto no n.º 8 do artigo 416.º do CdVM seja interpretado no sentido e com o alcance que lhe foi conferido pela Decisão recorrida, ao estatuir que são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa nos processos de contraordenação e em quaisquer outros processos de natureza sancionatória.

    O referido preceito constitucional é claro ao estabelecer o livre exercício do direito de defesa pelo arguido, incluindo na modalidade de recurso de impugnação judicial.

    Estando o direito ao recurso constitucionalmente consagrado e sem o que fica claramente vazio de conteúdo o direito de tutela jurisdicional efetiva, ele apenas pode ser restringido no necessário para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 18.º da CRP.

    Ora, resulta claramente condicionado o livre exercício do direito de defesa pelo arguido em sede de processo de contraordenação, na modalidade de impugnação judicial da decisão administrativa condenatória, sempre que a: norma vertida no n.º 8 do artigo 416.º do CdVM seja interpretada no sentido de a coima concretamente aplicada pela autoridade administrativa poder ser ampliada pelo tribunal em todo e qualquer caso.

    Designadamente, condiciona o arguido no livre exercício do direito de defesa a interpretação daquela norma do CdVM no sentido de ser admissível o agravamento da coima, ainda que tudo o resto (fáctico e jurídico) permaneça inalterado no decurso e em resultado da tramitação do processo de impugnação judicial.

    A norma do n.º 8 do artigo 416.º do CdVM, que admite a reformatio in pejus em sede de recurso judicial de impugnação da decisão...

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