Acórdão nº 273/15 de Tribunal Constitucional (Port, 19 de Maio de 2015

Magistrado ResponsávelCons. Pedro Machete
Data da Resolução19 de Maio de 2015
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 273/2015

Processo n.º 1121/14

  1. Secção

Relator: Conselheiro Pedro Machete

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

  1. Relatório

    1. A., ora recorrido, na sequência de um acidente de viação em que foi atropelado por um veículo seguro na B., S.A., intentou no Tribunal Judicial de Gondomar uma ação declarativa contra esta última, pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização de € 326 000,00, acrescido do valor das despesas e restantes danos derivados de futuras intervenções cirúrgicas ou tratamentos, a liquidar em execução de sentença, e, bem assim, dos correspondentes juros à taxa legal em vigor, contados desde a citação e até integral pagamento. Por sentença de 10 de junho de 2014 do 1.º Juízo Cível daquele Tribunal, foi a ré condenada, além do mais, no pagamento de € 38 785, 61, a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescidos dos respetivos juros de mora. Para o efeito do cálculo do valor dos danos emergentes e dos lucros cessantes, o Tribunal considerou o rendimento mensal efetivo do autor, computado em € 1 000,00, procedendo “a um acerto considerando sensivelmente os descontos que incidiriam sobre aquele rendimento mensal de cerca de € 1 000,00, caso tivesse sido declarado ao Fisco”. Com efeito, ponderou-se na sentença em apreço:

    [D]ispõe o o art. 64º, nº 7, do DL nº 291/2007, de 21.08, aditado pelo art. 1º do DL nº 153/2008, de 06.08, o seguinte:

    “ 7 – Para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao lesado, o tribunal deve basear-se nos rendimentos líquidos auferidos à data do acidente que se encontram fiscalmente comprovados, uma vez cumpridas as obrigações declarativas relativas àquele período, constantes da legislação fiscal.”

    A inserção deste critério de determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais por acidentes de viação, segundo consta do preâmbulo do DL nº 153/2008, de 06.08, visa a concretização de uma das medidas previstas na Resolução do Conselho de Ministros nº 172/2007, de 06.11, a qual diz respeito à “revisão do regime jurídico aplicável aos processos de indemnização por acidentes de viação, estabelecendo regras para a fixação do valor dos rendimentos auferidos pelos lesados para servir de base à definição do montante da indemnização de forma que os rendimentos declarados para efeitos fiscais sejam o elemento mais relevante”.

    Trata-se de uma das medidas com as quais se pretendia diminuir a fonte de litigiosidade que contribui para o congestionamento dos tribunais, pois por via de regra as seguradoras procedem aos cálculos das indemnizações tendo por base os rendimentos declarados, ao passo que os lesados, em juízo, muitas vezes invocam rendimentos muito superiores e sem qualquer correspondência com as declarações fiscais.

    Assim, conforme está expresso no preâmbulo, a alteração legislativa em causa “surge para pôr cobro ao potencial de litigiosidade que aquela situação encerra, procurando, por um lado, contribuir para acentuar a tendencial correspondência entre a remuneração inscrita nas declarações fiscais e a remuneração efetivamente auferida – sinalizando-se também aqui o reforço de uma ética de cumprimentos fiscal – e por outro, aumentar as margens de possibilidade de acordo entre seguradoras e segurados (…)”, para além de que dessa forma se visa “que nestas matérias exista mais objetividade e mais previsibilidade nas decisões dos tribunais, criando também condições para que a produção de prova seja mais fácil e célere e a decisão mais justa”.

    Cremos que aquela alteração legislativa está longe de cumprir o propósito de diminuição da litigiosidade e da celeridade, conforme proclama, mas é discussão que para o que aqui se discute é inócua.

    Mas se a pretexto dessa intenção e de uma certa moralização fiscal (cuja jurisdição encerra em si mecanismos próprios de tutela) na prática se prejudicam os próprios lesados, favorecendo as seguradoras e os lesantes, pela introdução de limitações aos critérios gerais de determinação das indemnizações em dinheiro, limitações essas que inexistem quando a fonte da responsabilidade não deriva de acidente de viação, então temos um problema de constitucionalidade da norma em apreço.

    Com efeito, está-se perante uma limitação ao princípio geral estabelecido no art. 562º e ao critério de determinação da indemnização paga em dinheiro estabelecido no art. 566º, nº 2, do mesmo diploma legal.

    Conforme sustentam Adriano Garção Soares e Maria José Rangel de Mesquita, in Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Anotado e Comentado, pág. 259, Almedina 2008, o “facto de a obrigação de atendimento dos rendimentos fiscalmente comprovados ser circunscrito à indemnização de danos originados pela circulação de veículos automóveis sujeitos ao seguro obrigatório representa uma discriminação negativa relativamente à indemnização de danos provenientes de outros eventos igualmente geradores de responsabilidade civil.

    Se a indemnização a atribuir ao lesado não tiver origem em responsabilidade civil por acidente de viação já o respetivo quantitativo não ficará sujeito aos estreitos limites previstos neste nº 7 do artigo 64º do Decreto-Lei nº 153/2008.

    Em termos de igualdade de tratamento e de justiça retributiva não se compreende esta discriminação”.

    Por outro lado, o tribunal teria de proferir uma decisão as mais das vezes desfasada da realidade e, nessa medida, sem tutelar efetivamente, na sua plenitude, o direito de ressarcimento do lesado.

    Ora, sobre a questão da constitucionalidade da norma em apreço, pronunciou-se já o Tribunal Constitucional (acórdão nº 383/12, processo nº 437/10, 2ª Secção, com texto integral in www.tribunalconstitucional.pt), no qual foi decidido o seguinte:

    “ a) julgar materialmente inconstitucional, por violação do direito à tutela jurisdicional efetiva, na vertente da garantia de um processo equitativo, consagrada no artigo 20º, nº 4, em conjugação com o artigo 18º, nº 2, ambos da Constituição, e do direito à justa reparação dos danos, decorrente do artigo 2º da Constituição, a interpretação normativa extraída do nº 7 do artigo 64º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de agosto, na redação introduzida pelo Decreto-Lei nº 153/2008, de 6 de agosto, correspondente ao entendimento segundo a qual, nas ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado, no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao mesmo, o tribunal apenas pode valorar os rendimentos líquidos auferidos à data do acidente, que se encontrem favoravelmente comprovados, após cumprimento das obrigações declarativas legalmente fixadas para tal período”.

    Ora, em face do que ficou já dito (no mais remetemos para os argumentos esgrimidos naquele acórdão do TC), face ao juízo de inconstitucionalidade que fazemos daquela norma não irá ser a mesma aplicada no caso em apreço, de sorte que o tribunal irá atender aos rendimentos mensais efetivos do autor.

    (fls. 681-684)

    Em conformidade, o Mmo. Juiz consignou no final da sentença: “registe e notifique, sendo o MP com a advertência de que não se aplicou, por se entender inconstitucional, o disposto no art.º 64º, nº 7, do DL nº 291/2007, de 21.08, na redação dada pelo artº 1º do DL nº 153/2008, de 06.08“. (fls. 693)

    2. O Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Gondomar interpôs recurso de constitucionalidade desta sentença, ao abrigo do artigo 70.º, n.º1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante referida como “LTC”), para apreciação da constitucionalidade do artigo 64.º, n.º 7, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, na redação dada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 15372008, de 6 de agosto, cuja aplicação foi recusada com fundamento em inconstitucionalidade. (fls. 698).

    3. Subidos os autos a este Tribunal, foi determinada a produção de alegações.

    Apenas o recorrente alegou, reiterando a posição já assumida no âmbito do processo em que foi proferido o Acórdão n.º 383/2012 (disponível, assim como os demais adiante citados, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) e sintetizada nas conclusões da alegação então apresentada:

    1º - As normas constantes dos nºs 7 a 9 do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, com a redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto, na interpretação efetuada pela sentença recorrida, no sentido de que ao tribunal é vedado o recurso a outros meios de prova para a aferição dos rendimentos dos lesados, vítimas de acidente de viação, opera uma discriminação relativamente à aferição dos rendimentos dos lesados, vítimas de outros acidentes e/ou eventos originadores de responsabilidade civil.

    2º - Essa discriminação, ao não consentir o uso de outros meios de prova para além das declarações fiscais ou do montante do RMMG, acaba por cercear, injustificada e desrazoavelmente, o direito de produção de prova, ínsito na garantia de acesso aos tribunais.

    3º - E, ao coartar a averiguação dos reais danos patrimoniais sofridos pelos lesados em acidente de viação, assente na verdade dos factos, origina um sistema diferente de fixação do quantum indemnizatório, que se repercute, indelével e negativamente, na fixação da indemnização devida por tais danos.

    4º - Efetivamente, a total e radical proibição de recurso a outros meios de prova, pode conduzir a que se lesione o direito do lesado a uma indemnização suficiente, tendo em conta o dano concreto, realmente sofrido, provocando-lhe prejuízos efetivos para os seus interesses.

    5º - Como tal, a interpretação normativa questionada, é suscetível de afrontar os princípios constitucionais da igualdade e da tutela jurisdicional efetiva, na vertente do direito à produção de prova, consagrados, respetivamente, nos artigos 13.º e 20.º da Lei Fundamental.

    6º -...

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