Acórdão nº 113/15 de Tribunal Constitucional (Port, 11 de Fevereiro de 2015

Magistrado ResponsávelCons. João Cura Mariano
Data da Resolução11 de Fevereiro de 2015
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 113/2015

Processo n.º 885/14

  1. Secção

Relator: Conselheiro João Cura Mariano

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

Relatório

A., Limitada, instaurou na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo ação administrativa especial contra o Conselho de Ministros, pedindo a declaração de nulidade ou a anulação do ato do Conselho de Ministros contido no artigo 3.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 35/2013, de 28 de fevereiro.

O Juiz Conselheiro Relator, por despacho de 24 de outubro de 2013, julgou aquele Supremo Tribunal incompetente em razão da matéria e, em consequência, absolveu o Conselho de Ministros da instância.

A Autora reclamou deste despacho para a conferência e, por acórdão de 29 de janeiro de 2014, a Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo indeferiu tal reclamação.

Inconformada, a Autora recorreu deste acórdão para o Pleno da Secção de Contencioso do Supremo Tribunal Administrativo que, por acórdão de 5 de junho de 2014, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

A Autora recorreu então para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:

“…1. Norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie:

A norma do artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, interpretado e aplicado no sentido de que, concluindo-se que o ato impugnado tem natureza legislativa, a sua sindicância não cabe no âmbito da jurisdição administrativa, sem que seja necessário apurar qual a exata espécie dentro do género legislativo que está em causa, designadamente uma lei-medida ou uma lei individual restritiva dos direitos, liberdades e garantias.

É inequívoco que o Acórdão recorrido aplicou e interpretou a norma identificada no sentido indicado. Com efeito, no Acórdão recorrido afirma-se que a norma em causa, «ao contrário do que defende a recorrente, não pode ler-se com o sentido de que não abarca no âmbito da sua previsão excludente, as leis-medida ou as leis individuais e concretas restritivas de direitos liberdades e garantias, dado que esse resultado interpretativo não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (artigo 9.º/2 C. Civil). Razão pela qual, por ser inútil para a decisão sobre a competência, se torna ocioso determinar a "exata determinação da espécie, dentro do género legislativo" e/ou indagar se o ato legislativo impugnado comporta, ou não, qualquer restrição aos direitos, liberdades e garantias».

  1. Normas e princípios constitucionais que se considera terem sido violados:

    A interpretação e aplicação da norma do artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do ETAF, no sentido explanado no ponto 1, supra, adotado pela decisão recorrida, viola os princípios da constitucionalidade e tutela jurisdicional efetiva, consagrados nos artigos 3.º, n.º 3, 18.º, n.º 3, 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição, porquanto, para além do mais, torna possível que o Governo, que dispõe simultaneamente de competência administrativa e legislativa, opte por aprovar diretamente leis-medida, ou mesmo leis individuais e concretas, restritivas dos direitos constitucionais dos particulares, em vez de emitir um regime legal e praticar depois atos administrativos ao seu abrigo, conseguindo dessa forma, a confirmar-se o entendimento contido no Acórdão recorrido, praticar atos judicialmente inexpugnáveis…”

    A Recorrente apresentou alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:

    1.ª A questão de constitucionalidade normativa objeto do presente recurso é a norma do artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, interpretado e aplicado no sentido de que, concluindo-se que o ato impugnado tem natureza legislativa, a sua sindicância não cabe no âmbito da jurisdição administrativa, sem que seja necessário apurar qual a exata espécie dentro do género legislativo que está em causa, designadamente uma lei-medida ou uma lei individual restritiva dos direitos, liberdades e garantias, viola as normas e princípios consagrados nos artigos 3.º, n.º 3, 18.º, n.º 3, 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição.

    2.ª O intuito de obter a conformidade dos atos do poder público com a Constituição é posto em causa se o Governo puder praticar atos individuais sob forma legislativa que sejam restritivos de direitos, liberdades e garantias, mas cujo conhecimento seja vedado aos tribunais administrativos em virtude do disposto no artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do ETAF.

    3.ª Não se ignora que a função do artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do ETAF não consiste apenas em delimitar a competência dos tribunais administrativos em face dos demais poderes do Estado, mas também em delimitar a competência destes tribunais em face da competência própria do Tribunal Constitucional, pelo que admitir-se a interpretação da norma objeto do presente recurso no sentido de a mesma excluir do seu âmbito de previsão os atos individuais sob forma legislativa restritivos de direitos, liberdades e garantias, poderia equivaler a atribuir aos tribunais administrativos uma competência que excede o controlo incidental e se aproximaria de um controlo concreto de direitos fundamentais que seria depois objeto de um recurso direto de constitucionalidade, ou queixa constitucional, em termos próximos da Veifassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol.

    4.ª A objeção referida na conclusão anterior não procede, uma vez que no âmbito do presente recurso não está em causa qualquer interpretação normativa do artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do ETAF suscetível de conduzir a um controlo principal de um ato individual restritivo de direitos, liberdades e garantias sob forma legislativa cuja anulação é pedida a um tribunal administrativo, mas apenas a desaplicação do mencionado ato no caso concreto, com fundamento em inconstitucionalidade, cabendo sempre recurso para o Tribunal Constitucional.

    5.ª Apenas na hipótese prevista no artigo 72.º, n.º 2, do CPTA, que pretendeu afastar a possibilidade de um tribunal administrativo declarar a inconstitucionalidade de uma norma administrativa com força obrigatória geral, é que se poderia falar de um conflito entre a competência dos tribunais administrativos e a competência própria do Tribunal Constitucional.

    6.ª A possibilidade de, num processo conduzido nos tribunais administrativos, existir uma coincidência entre o ato cuja anulação se solicita e a norma recortada para efeitos de recurso de constitucionalidade, não é inédita, tendo o Tribunal Constitucional, através do seu Acórdão n.º 81/92, proferido em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade, julgado inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 3, 165.º, n.º 1, alínea b), e 53.º da Constituição, a norma do artigo 4.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 138/85, de 3 de maio, que determinou a extinção por caducidade imediata de todos os contratos de trabalho em que era parte a Companhia Nacional de Navegação, E.P.

    7.ª O Tribunal Constitucional não pode deixar de propugnar a interpretação do artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do ETAF proposta pela Recorrente, pois só assim se revestirá da necessária eficácia o conceito funcional de norma por si adotado; a não ser assim chegar-se-á ao resultado absurdo de o mesmo conceito que serve ao Tribunal Constitucional para alargar a sua competência, em prol do princípio da constitucionalidade, servir aos tribunais administrativos para restringir a respetiva competência e, em consequência, a própria competência do Tribunal Constitucional.

    8.ª A inadmissibilidade constitucional de atos individuais sob forma legislativa restritivos de direitos, liberdades e garantias, consagrada no artigo 18.º, n.º 3, da Constituição, não pode deixar de ter repercussão na interpretação da norma do artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do ETAF pois, caso contrário, é a própria eficácia daquela mesma inadmissibilidade que fica posta em causa, sendo esvaziada de conteúdo.

    9.ª Tal como o conceito funcional de norma adotado pelo Tribunal Constitucional não decorre literalmente do disposto na Lei do Tribunal Constitucional ou na Constituição, assim também deverá suceder com a interpretação do artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do ETAF, no sentido de a mesma excluir do âmbito da sua previsão os atos individuais sob forma legislativa restritivos de direitos, liberdades e garantias; em ambos os casos está em causa explorar «as possibilidades garantística do sistema» e extrair as necessárias consequências dessas possibilidades.

    10.ª Nada impede um tribunal administrativo de vir a entender (como entendeu já alguma jurisprudência do TCA) que o conhecimento de uma ação administrativa, comum ou especial, com eventual cumulação de pedidos, tendo como único objeto um ato sob forma legislativa individual restritivo de direitos, liberdades e garantias, se encontra excluído do âmbito da jurisdição administrativa, ao abrigo do disposto no artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do ETAF, uma vez que tal norma não delimita a competência dos tribunais administrativos em função do meio processual escolhido, mas antes abrange todos os meios processuais incluídos no contencioso administrativo.

    11.ª A norma do artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do ETAF interpretada no sentido de que todos os atos sob forma legislativa estão excluídos da jurisdição administrativa, mesmo que se trate de atos individuais restritivos de direitos, liberdades e garantias, viola o princípio da constitucionalidade, a proibição de atos restritivos de direitos, liberdade e garantia não constantes de leis gerais e abstratas, e ainda o princípio da tutela jurisdicional efetiva, conforme previsto nos artigos 3.º, n.º 3, 18.º, n.º 3, 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição.

    Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ao presente recurso de constitucionalidade ser...

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