Acórdão nº 0488/12 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 05 de Julho de 2012

Magistrado ResponsávelVALENTE TORRÃO
Data da Resolução05 de Julho de 2012
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo I – A…… e B……, herdeiros de C……, com os demais sinais dos autos vêm recorrer da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, que julgou improcedente a impugnação judicial por eles deduzida, contra as liquidações adicionais de imposto sobre o Valor Acrescentado e respetivos juros compensatórios no montante de € 38.853,40 e € 4.831,13 referente aos anos de 1999, 2000 e 2001, apresentando, para o efeito, alegações nas quais conclui: 1ª). O cabeça de casal tem poderes de mera administração ordinária da herança, não tendo poderes de disposição, salvo quanto a frutos ou outros bens deterioráveis e a frutos não deterioráveis, estes na justa medida da satisfação de certas despesas e encargos.

  1. ). Fora destes casos, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078° (legitimidade de o herdeiro desacompanhado poder reclamar para a herança a propriedade de um qualquer bem), os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros e contra todos os herdeiros (artº. 2091º, nº 1), não podendo, pois, alienar, permutar ou onerar bens ou direitos imputáveis à herança.

  2. ). Regra esta que se aplica ao pagamento do passivo hereditário in genere e às dívidas que especificamente o compõem, bem como à defesa dos direitos contestados, como expressamente refere OLIVEIRA ASCENSÃO (Sucessões, 4ª, 1989, p. 496), sendo indiferente a natureza da dívida concretamente em causa.

  3. ). A única exceção ao regime de legitimidade do cabeça de casal consta do artigo 154º do CPPT, sendo que aí, a intenção da lei foi, claramente, a de alargar os poderes legalmente conferidos ao cabeça de casal, reconhecendo-lhe legitimidade em sede de execução fiscal para a prática de atos — vg. pagamento de dívidas, constituição de garantias, compensação de créditos, penhora de bens - que exorbitam da esfera de competência que resulta das atrás citadas normas juscivilísticas, tratando-se, no fundo, do reconhecimento legal de que, a contrario, sem a previsão normativa constante do artigo 154º do CPPT, os atos praticados em sede de pagamento coercivo das dívidas fiscais tinham de ser praticados pelo conjunto dos herdeiros, atentos poderes legalmente reconhecidos ao cabeça de casal.

  4. ). O procedimento de revisão da matéria tributável constitui um procedimento que, envolve, ope legis, uma renúncia ao direito de impugnação da liquidação que seja feita com base na existência de um acordo em sede de comissão.

  5. ). Esta, configura-se, assim, como um órgão quase-arbitral com poderes para dirimir uma controvérsia de modo definitivo quando for alcançado um acordo quanto à matéria tributável.

  6. ). Esse acordo, na medida em que envolve a definição de um quantum debetur, por um lado e, por outro lado, dá origem a um ato inimpugnável, não pode ser concebido como um ato de mera administração do património hereditário, 8ª). Nem a lei prevê a possibilidade de intervenção do cabeça de casal nesse procedimento, 9ª). sendo que, mesmo a admitir-se hipótese contrária, tal acordo apenas poderia ser subscrito por quem tivesse poderes para dispor do montante da dívida e, mais grave, do direito de impugnação judicial do ato praticado na sequência desse acordo.

  7. ). Ora, o cabeça de casal não tem poderes, desacompanhado dos restantes herdeiros, intervir num procedimento que afeta juridicamente o conjunto dos direitos que integram o património hereditário, da mesma forma que também não teria poderes para renunciar ao direito de impugnar a liquidação ou para estabelecer por acordo um montante que seja fixado como dívida do património hereditário.

  8. ). Ora, ao dispor desse direito, nos termos do artigo 86º, n.º 4, da LGT, o cabeça de casal praticou um ato para o qual a lei não lhe atribui competência, e que, para mais, é um manifesto ato de disposição porque subtrai ao património hereditário um direito que o integra e que apenas poderia ser exercido, em conjunto, por todos os herdeiros.

  9. ). Uma vez que o ato em matéria tributária praticado pelo cabeça de casal excedeu os limites dos poderes que a lei lhe atribui, o mesmo não é oponível aos recorrentes, que, assim, podem impugnar as liquidações em crise.

  10. ). As quais padecem de manifesta falta de fundamentação porquanto não permitem a um destinatário normal, colocado na situação concreta do contribuinte, conhecer o iter cognoscitivo e valorativo prosseguido pelo autor do ato para o conformar nos termos em que o conformou.

  11. ). Desde logo, de acordo com a fundamentação lavrada no procedimento, fica-se sem saber por que razão ou razões, sejam elas de facto, de direito, científicas, técnicas, económicas ou de experiência comum, se chegou ao resultado final, nomeadamente, porque é que os peritos concordaram em considerar como mais representativo o período temporal transcrito no mapa A e bem assim porque é que atribuíram 40% do valor das vendas.

  12. ). Depois fica-se também sem saber, de forma expressa como é que foram alcançados os valores dos proveitos, ficando-se sem conhecer a razão de ser de tal procedimento.

  13. ). Ora, mesmo tendo existido um acordo, a lei não subtrai o ato que venha a ser praticado na sequência deste do dever de fundamentação.

  14. ). Sendo que essa fundamentação sempre será exigida para justificar a atuação da administração perante a definição de uma obrigação assente num crédito de natureza indisponível, que reclama, precisamente, que se explicitem as causas justificativas do acordo obtido, sendo também por aí que se deverá aferir se os intervenientes no acordo agiram de acordo com a lei (no caso da administração) e o mandato que delimitava a sua atuação (no caso do perito do contribuinte).

Termos em que e nos mais de direito deve a sentença recorrida ser revogada e, consequentemente, proferido douto acórdão que julgue procedente a impugnação judicial, com todas as legais consequências.

II – A Fazenda Publica não apresentou contra alegações.

III - O MP emitiu parecer a fls. 216/217 no sentido que o presente recurso não merece provimento.

IV - Colhidos os vistos legais, cabe decidir.

V - Com interesse para a decisão foram dados como provados em 1ª instância os seguintes factos: 1º). A Administração Tributária [em cumprimento da ordem de serviço n°36.882, de 22 de agosto de 2002] encetou a 30 de setembro de 2002 uma ação inspetiva a C…… que, todavia, falecera a 8 de julho desse ano.

  1. ). A morte daquele ocorreu sem que tivesse formulado testamento ou outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido sua mulher, D……, com quem se encontrava casado em primeiras núpcias de ambos sob o regime de bens de comunhão de adquiridos, bem como seus dois filhos, os Impugnantes Filipe Ricardo da Cruz Quintã e Adelaide Catarina da Cruz Quintã, todos como tal habilitados por escritura de 7 de outubro desse mesmo ano.

  2. ). A ação inspetiva teve âmbito geral, versou sobre os anos de 1999, 2000 e 2001 e sobre Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e Imposto sobre o Valor Acrescentado, sendo que a atividade que aquele desenvolvera era a de comércio por grosso de matérias primas agrícolas, animais vivos e outros [CAE 51.110], desenvolvendo ainda, como atividade secundária, a de extração de areias, encontrando-se enquadrado no regime normal trimestral, para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado.

  3. ). A ação inspetiva fora suscitada pelo processo penal então pendente no Tribunal Judicial da comarca de Cantanhede, com o n° 699/98, cujo objeto contendia com a extração ilegal de inertes, nomeadamente areias, na área protegida das Dunas da Tocha, em que o falecido era suspeito ou arguido de ter de algum modo nisso participado, quando, por outra parte, não declarara à Administração Tributária rendimentos que dessa atividade tivesse auferido; igualmente foi a ação inspetiva suscitada pelo facto de o falecido ter sido declarado falido, sendo que os bens de que usufruía pertenciam à sociedade de direito britânico, E……, sediada nas Ilhas de Turk e Caicos.

  4. ). No âmbito da aludida ação falimentar, com o n° 203/2001 da 2ª Secção daquele Tribunal, o falecido e sua mulher haviam sido declarados insolventes, por decisão de 7 de novembro de 2001, tendo sido justificados créditos em valor superior a 30.000.000$00, tendo igualmente sido apreendidos para a massa, além de móveis, sete prédios, entre rústicos e urbanos.

  5. ). Os créditos ali reclamados seriam todos extrajudicialmente satisfeitos, vindo a ser levantados os efeitos pessoais da...

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