Acórdão nº 3351/10.2TBGDM.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 19 de Dezembro de 2012
Magistrado Responsável | ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA |
Data da Resolução | 19 de Dezembro de 2012 |
Emissor | Court of Appeal of Porto (Portugal) |
Recurso de Apelação Processo n.º 3351/10.2TBGDM.P1 [Tribunal Judicial da Comarca de Gondomar] Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto: I.
O MUNICÍPIO …, com sede na …, Gondomar, instaurou acção de despejo contra B… e C…, residentes na Rua …, n.º …, …, …, Gondomar.
Para o efeito, alegou que em 1 Outubro de 1991 arrendou uma casa de habitação aos réus a troco do pagamento da renda mensal de € 4,94, cujo valor ainda hoje se mantém, mas os réus sistemática e reiteradamente não pagaram as rendas encontram-se em mora diversas rendas que ascendem ao valor total de € 469,03. Conclui, pedindo que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento e os réus condenados a entregar o arrendado e a pagarem a quantia de € 533.52 de rendas vencidas, acrescida de juros e das rendas vincendas.
Contestou apenas a ré, alegando que a casa em questão não pertence ao autor, mas antes à própria ré, a qual se encontra na posse publica e pacífica da mesma desde 1990, que ainda que houvesse contrato de arrendamento o mesmo seria nulo por falta de legitimidade do autor para dar de arrendamento o que não lhe pertence, que o crédito das rendas prescreveu, que caducou o direito ao despejo com tal fundamento, que o autor actua com abuso de direito uma vez que há só agora, passados quase 20 anos sobre a data do mesmo, vem exigir à Ré o cumprimento de supostas obrigações de que a ré não se julgava devedora. Em simultâneo, alegadamente para os efeitos do disposto no artigo 17.º e seguintes da Lei 6/2006, de 27/02, a ré depositou na D… a quantia de €103,74, correspondente às rendas vencidas nos 12 meses anteriores à propositura da acção e as que entretanto se venceram, acrescidas de 50%.
Devidamente tramitada e instruída, a acção prosseguiu até julgamento, findo o qual foi proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente e condenando os réus a pagar ao autor a quantia de €237,12, acrescido de juros de mora à taxa de 4%, contados sobre a data de vencimento de cada uma das rendas mensais até integral pagamento.
No restante, quanto ao pedido de resolução do contrato de arrendamento e entrega do imóvel os réus foram absolvidos do pedido, com fundamento em que no caso concreto o pedido de resolução do contrato redunda em abuso de direito.
Notificados desta sentença, o autor e a ré apresentaram cada um o seu recurso e ambos a título principal.
Do segmento da decisão que lhe foi desfavorável, o autor interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões: 1. O Recorrente não só alegou que os Réus se encontravam em mora há mais de três meses … como tal facto se verificava relativamente a 180 meses, tendo o recorrente já recorrido ao tribunal, através do requerimento de injunção e … a Ré solicitou o pagamento do débito em prestações mensais, não tendo cumprido com a sua palavra.
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… os factos alegados enquadram quer o n.º 2 do artigo 1083 quer o n.º 3, 3. Além estar preenchido o n.º 3 … não foi uma conduta isolada, mas sim um comportamento reiterado, repetido mês após mês ao longo de vários meses, traduzindo num incumprimento grave que torna insuportável para o senhorio a manutenção do arrendamento.
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… será exigível, na normalidade da vida, que um locador seja obrigado a permanecer numa relação locatícia com um inquilino que há praticamente desde a vigência do contrato que não paga as rendas? 5. A resposta terá de ser negativa, pelo que … não existe abuso de direito.
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Ao contrário do alegado na sentença não existe uma falta insignificante por parte dos Réus, estes ao longo de anos não cumpriram com a sua obrigação, e esse facto representa uma violação grave.
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O montante das rendas em dívida não pode ser desvalorizado com base no seu valor diminuto, é exactamente por a renda ter sido fixado tendo em conta o rendimento familiar, € 4,94, que os Réus tinham mais do que a obrigação de a cumprir.
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O tribunal entendeu apenas condenar no pagamento das rendas vencidas no período de Outubro de 2005 a Outubro de 2009, uma vez que as rendas vencidas no prazo de um ano antes da propositura da acção já se encontram depositadas.
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… o tribunal deveria ter condenado no pagamento dessas rendas e, consequentemente, autorizando o levantamento do depósito efectuada, uma vez que o mesmo foi feito sob condição.
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Por tudo o exposto, a decisão recorrida violou o n.º 2 e n.º 3 do artigo 1083º CC e o artigo 334º todos do Código Civil.
A ré/recorrida não respondeu a estas alegações.
No seu recurso, sem especificar a parte da sentença que pretende impugnar, a ré formulou as seguintes conclusões: 1– Os pontos de facto constantes dos artigos 6º e 7º da base instrutória foram incorrectamente julgados.
2- O quesito 6º devia ter sido julgado não provado.
3- Também devia ter sido julgada não provada a expressão “mediante o pagamento de uma renda mensal no valor de € 4,94” 4- E ainda a expressão “prédio referido em 5º” 5- O quesito 7º devia ter sido julgado não provado.
6- O item 10º da sentença segundo o qual “Os Réus iniciaram o pagamento das rendas em 1 de Outubro de 1991”, não foi quesitado na base instrutória, encontra-se em total contradição com o dito pela testemunha O… e a fundamentação da decisão é lacunosa, pelo que o mesmo devia ter sido julgado não provado.
7- A acção deveria ter sido julgada totalmente não provada e improcedente.
O recorrido respondeu a estas alegações, defendendo o bem fundado da decisão.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II.
Questões a resolver: As alegações de recurso colocam este Tribunal perante o dever de resolver as seguintes questões: i) Se não foram produzidos meios de prova bastantes da celebração de um contrato de arrendamento entre as partes, tendo por objecto a casa onde a ré habita e mediante o pagamento da renda peticionada.
ii) Se existe abuso de direito por parte do autor em pedir a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas quando esse direito já caducou com excepção apenas da parte correspondente a três meses e um valor de €14,82 de renda.
iii) Se o autor pode ser autorizado a levantar o valor depositado a título de rendas do último ano e respectiva indemnização moratória.
III.
Na decisão recorrida foram considerados provados os factos[1] que a seguir se indicam (com intercalação de algumas referências para melhor compreensão dos mesmos): 1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o n.º 18/19850207 o prédio rústico situado no …, com a área de 2.070 m2, omisso na matriz, a confrontar de Norte com E…, Nascente e Sul com arruamento e Poente com F… (alínea A] dos factos assentes).
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Mediante a Ap. n.º 7 de 1985/02/07 foi inscrita a aquisição do prédio referido em A] a favor da Câmara Municipal …, por dação em cumprimento (alínea B] dos factos assentes).
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A Ré procedeu ao depósito na D… da quantia de € 103,74, nos termos que constam a fls. 59 (alínea C] dos factos assentes).
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No ano de 1985, o Fundo de Fomento da Habitação deliberou ceder gratuitamente ao Município … 24 construções prefabricadas (artigo 1] da base instrutória).
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Quatro das quais sitas no …, freguesia de … (artigo 2] da base instrutória).
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Em data desconhecida ocorreu um incêndio no local referido em [artigo] 2.º [da base instrutória] (artigo 3] da base instrutória).
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Pelo que o mesmo teve necessidade de proceder à demolição das construções supra referidas (artigo 4] da base instrutória).
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No 4 de Março de 1991, a Câmara Municipal … deliberou adjudicar a construção da habitação objecto dos presentes autos à empresa "G…, Lda. (artigo 5] da base instrutória) [2] 9. Em data anterior a Outubro de 1991, o Município … acordou verbalmente com os Réus ceder o gozo do prédio referido em [artigo] 5.º [da base instrutória], mediante o pagamento de uma renda mensal no valor de € 4,94, que aqueles aceitaram (parte da resposta ao artigo 6] da base instrutória).
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Os Réus iniciaram o pagamento das rendas em 1 de Outubro de 1991 (remanescente da resposta ao artigo 6] da base instrutória).
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A vencer no 1.° dia útil do mês a que respeita e a ser paga até ao 8.° dia do mês subsequente (artigo 7] da base instrutória).
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Há cerca de 30 anos atrás, a Ré, o seu marido e 3 filhos ficaram sem casa e foram viver para a rua (artigo 9] da base instrutória).
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Após o referido em [artigo] 9.º [da base instrutória] passaram a viver no interior de um veículo automóvel em segunda mão (artigo 10] da base instrutória).
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Com os seus então já 4 filhos, H…, I…, J… e K…, então, respectivamente, com as idades de 10, 4 e 3 anos e, a última, de 7 meses (artigo 11] da base instrutória).
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Entretanto, a situação da Ré chegou ao conhecimento da L… e do Jornal “M…” (artigo 12] da base instrutória).
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O jornal “M…” publicou uma notícia que relatava a situação da família da Ré (artigo 14] da base instrutória).
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A partir de data não concretamente determinada, a Ré passou a viver com a respectiva família numa roulotte (artigos 15], 16] e 17] da base instrutória).
IV.
A sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância foi, como vimos, objecto de recurso de ambas as partes. Embora nas suas alegações a ré não haja precisado qual é o objecto do seu recurso, nos termos dos artigos 680.º, n.º 1, e 684.º, n.º 2, 2.º §, do Código de Processo Civil, deve entender-se que o seu recurso tem apenas por objecto a parte dispositiva da sentença que lhe é desfavorável, ou seja, a parte em que foi condenada a pagar ao autor um determinado valor a título de rendas.
De todo o modo, pese embora este tenha sido o segundo recurso a ser interposto, uma vez que nele é posta em crise a decisão da matéria de facto, impugnando-se a decisão quanto a alguns dos pontos dessa matéria, iremos começar por conhecer deste recurso em ordem a fixar em definitivo a matéria de facto sobre que há-de recair a aplicação do direito.
Como resulta do relatório inicial, a ré questiona a decisão do tribunal “a quo” quanto aos artigos 6º e 7º da base instrutória, pretendendo que tal matéria seja julgada...
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