Acórdão nº 305/11 de Tribunal Constitucional (Port, 29 de Junho de 2011

Magistrado ResponsávelCons. Pamplona Oliveira
Data da Resolução29 de Junho de 2011
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 305/2011

Processo n.º 268/09 e 287/09

Plenário

Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

I- Relatório

  1. Em 8 de Abril de 2009, vinte e oito Deputados à Assembleia da República requereram ao Tribunal Constitucional, em fiscalização abstracta sucessiva e ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea f) da Constituição (CRP), a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas que constam do n.º 1 do artigo 60.º, dos n.º s 1 e 4 do artigo 122.º, do artigo 123.º, do artigo 123.º-A, do n.º 3 do artigo 125.º e do n.º 1 do artigo 127.º do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, na redacção introduzida pela Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, bem como do n.º 1 do artigo 90.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto.

    Fundaram o pedido, registado no Tribunal sob o n.º 268/09, no seguinte:

    “1. O actual estatuto constitucional do Ministério Público assume, por força da sua estrutura hierárquica, uma dupla vertente.

  2. A primeira, consagrada no n.º 2 do art. 219º da Constituição, respeita ao Ministério Público como um todo, passando pela garantia de estatuto próprio e, sobretudo, pela sua autonomia, a qual tem um papel, não apenas endógeno, mas ainda de garantia da independência dos tribunais.

  3. Esta vertente apresenta um significado negativo de exigência de autodeterminação – exclusão da hetero-determinação, mediante subordinação a outras entidades públicas, incluindo a exclusão de qualquer dependência do poder político – e um significado positivo, como exigência de determinação de acordo com critérios de legalidade e objectividade.

  4. A segunda vertente respeita aos agentes do Ministério Público e caracteriza-se pelo facto de se tratar: a) de magistrados dotados de um irrenunciável núcleo de autonomia pessoal; b) magistrados responsáveis e hierarquicamente subordinados, nos termos da primeira parte do n.º 4 do art. 219º da Constituição, embora com limites muito especiais uma vez que: os poderes directivos são restringidos pelo dever ou poder de recusa de obediência a directivas, ordens e instruções ilegais e em caso de grave violação da consciência jurídica do magistrado; os poderes de supervisão (também directivos) encontram limites derivados dos termos em que se processa a intervenção do Ministério Público como sujeito no processo e; os poderes disciplinares são concentrados no Conselho Superior do Ministério Público; c) magistrados inamovíveis no mesmo exacto sentido em que o são os magistrados judiciais, o que importa uma vertente material (de garantia de que não podem ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei) e uma vertente institucional, cifrada na reserva de competência para a nomeação, colocação, transferência e promoção dos agentes do Ministério Público e o exercício da acção disciplinar no Conselho Superior do Ministério Público (como decorre da segunda parte do n.º 4 e do n.º 5 do artigo 219º da Constituição); d) a elevação constitucional da inamovibilidade a princípio acarreta a exigência, relativamente aos casos de amovibilidade, de excepcionalidade, de fundamento material suficiente, de respeito pelo núcleo essencial do princípio, de reserva de lei e de definição com um mínimo de precisão que afaste a indefinição e infixidez e abra a porta à discricionariedade; e) a consagração da inamovibilidade, como garantia da autonomia dos magistrados no exercício de funções, pressupõe a vigência constitucional de um princípio de pré-constituição normativa semelhante ao juiz natural (a que bem se poderá chamar garantia do Ministério Público quási-natural), muito embora ele seja mitigado pela hierarquia – que a par da autonomia, é outro dado definidor do estatuto e da identidade constitucional do Ministério Público e dos seus magistrados; f) assim, é exigida uma pré-determinação normativa, ou seja, geral e abstracta, não apenas em matéria de competência, como em matéria de distribuição processual, e se, por força da hierarquia, são admissíveis casos de afastamento das regras sem paralelo relativamente aos magistrados judiciais, eles estarão sujeitos às exigências de excepcionalidade, de fundamento material suficiente e de respeito pelo núcleo essencial do princípio – o que exigirá a prévia definição normativa de tais casos e, sendo o caso, dos destinatários das concretas funções em causa; g) o estatuto constitucional do Ministério Público tem as suas implicações ou vertentes institucionais e orgânicas, que se exprimem na existência de uma Procuradoria-geral da República, com a sua complexidade própria, na consagração do Conselho Superior do Ministério Público (cuja função foi determinada previamente ao acolhimento constitucional do órgão) como guardião da autonomia do Ministério Público, e na separação entre os poderes directivos, por um lado, e, por outro, os poderes de gestão e disciplinares (“quem dirige, não classifica, não nomeia, nem sanciona”).

  5. São fundamentalmente duas as alterações trazidas pela Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, ao sistema instituído no Estatuto do Ministério Público: a) a intensificação material da hierarquia interna, mediante a modificação das regras de nomeação dos magistrados para determinados cargos de promoção; b) a redução do número de comarcas que traz consigo a generalização da situação de nomeação de vários magistrados, por vezes em número bastante elevado, para cada comarca, com idêntica e consequente generalização e intensificação do problema da organização interna e de divisão do trabalho entre magistrados do Ministério Público colocados na mesma comarca.

  6. A primeira alteração advém da preferência demonstrada pelo legislador, em clara violação dos princípios constitucionais, na definição das regras de nomeação dos titulares de lugares com funções de direcção e coordenação, no sentido da nomeação sob proposta, relativamente ao concurso, e do provimento em regime de comissão de serviço (renovável), relativamente ao provimento nos termos normais.

  7. Estas opções, apesar de deixarem inalterados os termos formais da subordinação hierárquica, abrem margem para a criação de uma linha de confiança pessoal que pode atravessar toda a estrutura orgânica do Ministério Público, desde o topo até ás posições de coordenação de base, introduzindo uma alteração qualitativa nas possibilidades reais e na efectividade da orientação da actuação da actividade do Ministério Público.

  8. Tal questão é tanto mais relevante quanto é certo que a mesma não se verificaria caso se enveredasse, desde logo, pela implementação de procedimentos de selecção que permitissem, pelas suas características, assegurar os princípios gerais da igualdade, da transparência e da imparcialidade na formação das inerentes decisões.

  9. Não será despiciendo recordar as considerações expendidas pelo Tribunal Constitucional a respeito do princípio de acesso à função pública por via do concurso (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 683/99, de 21 de Dezembro), princípios esses cujos fundamentos – pela sua variedade e extensão – são aplicáveis, naturalmente, e até por maioria de razão, à estrutura orgânica do Ministério Público, sobretudo, atendendo aos princípios gerais que derivam da Constituição e impõem a autonomia efectiva dos agentes do Ministério Público.

  10. Do aludido princípio – e não obstante as excepções que lhe têm vindo a ser reconhecidas – decorrem, assim, duas asserções principais: em primeiro lugar, é dificilmente justificável o recurso à nomeação sob proposta relativamente a lugares – como os de procurador coordenador de comarca (n.º 1 do art. 60.º do EMP), procurador nos Departamentos de Investigação e Acção Penal na sede dos distritos (n.º s 1 e 4 do art. 122.º do EMP) e no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (n.º 1 do art. 123.º do EMP) – quando, na própria Administração Pública, ele é exigido para provimento dos cargos de direcção intermédia e, sobretudo, quando naqueles dois últimos casos, os cargos incluem uma crucial componente que não tem que ver com a coordenação ou direcção mas com o exercício material de funções próprias do Ministério Público; por seu turno, mesmo quanto aos lugares de topo, a invocação de especiais factores de responsabilidade ou confiança pessoal, sendo passível de justificar o afastamento da regra do concurso, não comporta, em todo o caso, a possibilidade de preterição das necessárias garantias de igualdade, publicidade e transparência nos processos de selecção adoptados.

  11. Por essa mesma razão, outra das inovações da reforma legislativa em análise, traduzida na sujeição ao regime de comissão de serviço de todas as nomeações para os cargos de procurador-geral adjunto nos Tribunais da Relação e de procurador da República nos Departamentos de Investigação e Acção Penal e nas instâncias especializadas (n.º 4 do artigo 122.º e n.º 5 do artigo 123.º do EMP) está em flagrante desconformidade com um dos princípios constitucionais referidos.

  12. Afigura-se, de facto, configurar violação constitucional, à luz dos princípios delimitadores do estatuto do Ministério Público (inamovibilidade e autonomia), a possibilidade de sujeição dos mencionados cargos a um regime de nomeação temporária, com visível repercussão na estabilidade da colocação dos agentes envolvidos e, consequentemente, da respectiva autonomia pessoal.

  13. Quanto à segunda das alterações trazidas pela Lei n.º 52/2008 [enunciada no ponto 5. b)], o facto de a lei estabelecer que compete ao procurador-geral adjunto que dirige a procuradoria da Comarca proceder à distribuição de serviço entre os procuradores da República da mesma comarca e ou entre procuradores adjuntos, sem prejuízo do disposto na lei, suscita a questão de saber se a opção por um sistema de distribuição (directa e única) dos processos por magistrado, caso seja essa a interpretação preferida, é ou...

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