Acórdão n.º 45/2008, de 03 de Março de 2008

Acórdáo n. 45/2008

Processo n. 676/07

Acordam na 2.ª Secçáo do Tribunal Constitucional, 1 - Relatório - O representante do Ministério Público no Tribunal da Relaçáo de Coimbra interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n. 1 do artigo 70. da lei de Organizaçáo,

Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n. 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n. 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o acórdáo do referido Tribunal, de 9 de Maio de 2007, "porquanto a predita decisáo judicial declarou inaplicável o contido no artigo 175., n. 4, do Código da Estrada, na versáo que actualmente lhe confere o Decreto -Lei n. 44/2005, de 23 de Fevereiro, sustentando a inconstitucionalidade especificamente incidente sobre o segmento da redacçáo que constitui o último parágrafo da mencionada norma estradal por integrante da presunçáo inilidível que acarreta a derrogaçáo do direito de defesa ampla do arguido enquanto restrito à possibilidade de abranger o âmbito delineado pela gravidade da infracçáo e aplicável sançáo de inibiçáo de conduzir".

O referido acórdáo foi proferido em recurso interposto da sentença de 6 de Dezembro de 2006 do Tribunal Judicial da Comarca de Penamacor, que, náo concedendo provimento ao recurso de contra-ordenaçáo, manteve na íntegra a decisáo administrativa proferida pela Governadora Civil do Distrito de Castelo Branco, de 24 de Outubro de 2005, que aplicou a Sílvia de Jesus Rodrigues Sousa (que procedera ao pagamento voluntário da coima correspondente à prática da contra-ordenaçáo prevista no artigo 21., n. 1, do Regulamento de Sinalizaçáo de Trânsito - náo cumprimento do sinal de paragem obrigatória num cruzamento), a sançáo acessória de inibiçáo de conduzir, especialmente atenuada nos termos do artigo 140. do Código da Estrada, pelo período de 30 dias.

A motivaçáo do recurso da recorrente para o Tribunal da Relaçáo de Coimbra terminava com a formulaçáo das seguintes conclusóes:

I - A arguida, no dia, hora e local em causa, parou ao sinal STOP que se encontrava no cruzamento em questáo [e], tendo verificado que náo circulava qualquer veículo na outra via, iniciou novamente a sua marcha com a correcta e devida segurança, pelo que náo cometeu qualquer infracçáo.

II - A arguida só pagou voluntariamente a coima, como consta da decisáo recorrida, porque pensou assim estar obrigada, mas náo reconheceu nem reconhece ter cometido a infracçáo por que foi condenada.

III - O Tribunal a quo náo concedeu provimento ao recurso de contra-ordenaçáo interposto pela arguida por basear a sua decisáo no facto de a coima ter sido paga voluntariamente, náo podendo agora ser questionada a prática da contra-ordenaçáo, devendo antes dar-se como assente - artigo 175., n. 4, do Código da Estrada - , e náo admitindo a alegaçáo de factos que possam pôr em causa a existência do ilícito contra-ordenacional.

IV - Esta interpretaçáo e aplicaçáo das normas do RGCO restringe direitos de defesa da arguida e os direitos à tutela efectiva, na dimensáo de garante de controlo judicial das decisóes administrativas que lesem direitos e interesses legítimos, mostrando-se ferida de ilegalidade e de inconstitucionalidade, pois viola o disposto nas normas conjugadas dos artigos 55., 59., n.os 1 e 3, do RGCO e dos artigos 18., n. 2, 20., n. 1, e 32., n. 1, da Constituiçáo da República Portuguesa.

V - No processo de contra-ordenaçáo valem os direitos e garantias constitucionalmente consagrados de direito de audiência e de defesa dos arguidos e de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, na dimensáo da garantia de controlo das decisóes finais administrativas que lesem direitos e interesses legalmente protegidos, caso contrário estar-se-ia a violar a Constituiçáo.

VI - Apesar de paga voluntariamente a coima, pode-se discutir a existência de contra-ordenaçáo quando for aplicada uma sançáo acessória.

VII - O Tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre questóes que deveria ter apreciado, o que torna a sentença nula - alínea c) do n. 1 do artigo 379. do CPP.

VIII - Se náo fosse possível discutir a existência da infracçáo, estamos perante uma inconstitucionalidade por restriçáo dos direitos fundamentais - violaçáo do artigo 32., n. 1, da Constituiçáo da República Portuguesa.

IX - A douta sentença recorrida é manifestamente contraditória quando dá por provado que a arguida necessita da carta de conduçáo, porquanto lhe é imprescindível a utilizaçáo do automóvel para o exercício das suas funçóes laborais e que a aplicaçáo da sançáo acessória de inibiçáo de conduzir pelo período de 30 dias póe em risco a sua situaçáo laboral e a séria possibilidade de poder tornar-se trabalhadora «normal» da referida entidade, e, por outro, mantém a decisáo da autoridade administrativa de aplicar a sançáo de inibiçáo de conduzir por um período de 30 dias, colocando em risco o emprego da arguida (com a precariedade a nível laboral, se tiver de cumprir a sançáo acessória de inibiçáo de conduzir, a arguida com toda a certeza perderá o emprego e náo poderá procurar outro).

X - Também se pode afirmar que a douta sentença entra em contradiçáo ao concluir que as sançóes acessórias teráo de ser aferidas ao facto ilícito cometido e à culpa do agente, e, por outro lado, náo permitiu que se alegassem factos que póem em crise a existência do ilícito contra-ordenacional e partiu de uma presunçáo de culpabilidade.

O Tribunal da Relaçáo de Coimbra, no acórdáo ora recorrido, desenvolveu a seguinte fundamentaçáo jurídica:

Das várias questóes aportadas pela recorrente sobressai como primacial a da náo admissáo de defesa quanto ao cometimento da infracçáo, na procedência da qual ficaráo prejudicadas as restantes.

E assim que se tenha escrito, como supra se viu: «A título de questáo prévia cumpre referir que o presente recurso apenas se destina à apreciaçáo da gravidade da infracçáo e à aplicaçáo da sançáo acessória. Na verdade, como refere a recorrente, esta procedeu ao pagamento voluntário da coima, pelo que o presente recurso encontra-se circunscrito à apreciaçáo da aplicaçáo da referida sançáo acessória e da gravidade da infracçáo, tal como resulta do disposto nos artigos 72., n. 5, e 175.,

n. 4, do Código da Estrada. Assim, a questáo decidenda nos presentes autos consiste em se apurar da gravidade da infracçáo e se se encontram preenchidos os pressupostos para a suspensáo da execuçáo da sançáo de inibiçáo de conduzir

.

Mas «... só em audiência de julgamento é atribuído à confissáo o seu valor especial de meio de prova e, mesmo neste caso, fica sujeita ao controle do tribunal sobre o seu carácter livre, a veracidade dos factos confessados...» [Código de Processo Penal Anotado, de Simas Santos e Leal Henriques, 2.ª ediçáo, II volume, p. 364].

Ora, náo foi permitido à recorrente pronunciar-se sobre a veracidade dos «factos confessados», incluindo-os, sem mais, no acervo factual provado.

Admitindo-se e concordando-se mesmo que em causa estará náo o n. 1 do artigo 32. da CRP, mas «apenas» o seu n. 10, aplicável aquele em processo penal e este em processo contra-ordenacional, teremos de admitir alguma hipocrisia se dissermos que, sendo ao arguido conferidos os «direitos de audiçáo e de defesa» - n. 10, citado - , se haja de limitar (ainda) esta defesa a questóes subsequentes a uma anunciada e legalmente imposta condenaçáo: o cerne da questáo, o crime é indiscutido e indiscutível.

Só que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado de sentença de condenaçáo, devendo ser julgado ... com as garantias de defesa - artigo 32., n. 2, da CRP.

Ora, a nosso ver, a falada restriçáo apenas pode ser aportada a uma mera presunçáo - juris tantum - de que o pagamento voluntário da coima implica a prática da contra-ordenaçáo, mas náo a de que tal pagamento implica necessariamente a presunçáo inilidível - juris et de jure - do cometimento da infracçáo.

Deste modo, a consagrada presunçáo constitucional de inocência é afastada, e de modo...

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