Acórdão nº 7199/07.3TBMTS.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 20 de Setembro de 2011

Magistrado ResponsávelMARTINS DE SOUSA
Data da Resolução20 de Setembro de 2011
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM OS JUÍZES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: I.

B...F...I...., SL., intentou no 4º Juízo Cível da comarca de Matosinhos contra N...G..., Indústria e Comércio de Produtos Alimentares, Ldª., a presente acção declarativa com forma ordinária de processo e, alegando que, no exercício da sua actividade comercial de importação e exportação de peixe congelado, celebrou, através do respectivo agente, um contrato, formalizado por factura pró-forma para aceitação, para entrega à Ré de 25 toneladas de corvina congelada, proveniente do México, a celebrar na modalidade Custo e Frete (C/F – Cost and Freight) dos incoterms cujo preço pagou parcialmente, pediu que seja condenada a pagar à Autora a quantia de € 35 391,51, correspondente à quantia titulada pela referida factura, acrescida dos juros de mora comerciais vencidos e vincendos, contados à taxa legal em vigor, sobre o montante de € 31 593,61, até integral pagamento.

Contestou a Ré, dizendo que a mercadoria não pôde ser desalfandegada porque a Autora não satisfez obrigações relacionadas com exportação de bens originários de país terceiro, relativamente à U.E., ou seja, as normas imperativas do denominado Euro 1 e a menção nas caixas do número e nome do produtor e, em reconvenção, peticionou o valor do que pagou à Autora, acrescido do respectivo lucro cessante.

Decorridos demais trâmites processuais teve lugar a audiência de julgamento e foi proferida sentença, julgando-se a acção integralmente procedente, e a Ré condenada em termos idênticos aos formulados no petitório e improcedente a reconvenção.

Inconformada dela apelou a Ré perdedora para o Tribunal da Relação do Porto que, julgando procedente o recurso, revogou a sentença, absolvendo a Ré do pedido formulado pela Autora e, na procedência do pedido reconvencional, condenou esta mesma Autora a pagar à Ré a importância global de € 18.527,77, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, desde a notificação e até integral pagamento.

É deste acórdão que, ora, vem interposta a revista cuja alegação a Autora e Recorrente remata, enunciando 63 (!) conclusões que, como se pode ver de seguida, não são, propriamente, o modelo de qualidade e virtude recomendado pelo artº690º do CPC: i. Está em causa nos presentes autos um contrato comercial internacional celebrado entre uma empresa de direito português e uma empresa de direito espanhol, de acordo com as regras dos termos de comércio internacional (Incoterms) — na modalidade "Custo e Frete".

ii. Os Incoterms são termos internacionais de comércio, publicados pela Câmara Internacional de Comércio e regulados pela Convenção da ONU sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias – VIENA, 1980, os quais se destinam a estabelecer, dentro da estrutura de um contrato de compra e venda internacional, os direitos e obrigações recíprocos do vendedor e comprador.

iii. Nos termos desse contrato, considera-se que o vendedor entrega as mercadorias quando elas transpõem a amurada do navio no porto de embarque - ou seja, no porto de onde sai a mercadoria, de onde a mesma é exportada (o México).

iv. Como resulta do ponto B2 das obrigações inerentes ao Incoterm "Custo e Frete": «O Comprador deve obter, por sua conta e risco, quaisquer licenças de importação, ou outras autorizações oficiais e cumprir, quando for caso disso, todas as formalidades aduaneiras exigidas para a importação da mercadoria e para o seu trânsito noutro país.» .

v. Ainda assim, e em manifesta colaboração com os interesses da Recorrida, a Recorrente anuiu na colocação nas caixas das mercadorias em causa de uma etiqueta que, nos termos do contrato, aquela ficou de elaborar e lhe remeter — apenas isso.

vi. Ou seja: 1. O contrato em causa resumia-se à venda da mercadoria, e excluía expressamente o cumprimento de deveres acessórios - como sejam o cumprimento de formalidades de licenciamento ou desalfandegamento da mercadoria; 2. O modelo da etiqueta que, supostamente, conteria todas os elementos necessários, deveria ser elaborado e remetido pela Recorrida à Recorrente.

vii. Resulta do Documento n°4 junto com a réplica, a Recorrida remeteu a AA "um ficheiro da etiqueta com todas as inscrições necessárias" (destaque nosso), tendo a Recorrida chamado ainda a atenção desse AA "para a necessidade de respeitar todas as inscrições, sob pena de termos que re-etiquetar todas as embalagens (…)» (idem), e referindo ainda «Se necessário, embora me pareça ridículo, nós fornecemos as etiquetas e enviam-se para o México (,,.)», viii. Como resulta dos pontos 3 a 9, 11 e 21 a 23 da matéria de facto dada como provada, foi a Recorrida quem remeteu à Recorrente o modelo de etiqueta a colocar nas caixas da mercadoria - etiquetas essas onde, alegadamente, constariam todas as inscrições entendidas como necessárias pela Recorrida.

ix. Esse "modelo de etiqueta", foi remetido pela Recorrida à Recorrente para serem elaboradas todas as etiquetas à sua imagem — como mera reprodução daquele modelo.

x. Resulta da matéria de facto dada como provada que, além do conteúdo das etiquetas que tinham de ser apostas nas embalagens, também teria de ser colocado o número do lote e do produtor.

xi. A referida comunicação não foi feita pela Recorrida mas por um intermediário no negócio - AA, e não resulta provado nos autos — nem sequer foi invocado pela Recorrida que o dito intermediário tenha agido no negócio em representação da Recorrida.

xii. O Tribunal a quo, ao decidir que a Recorrida cumpriu o ónus de provar que alertou a Recorrente de uma característica essencial da embalagem do produto, de forma a poder ser desalfandegado, entende que tal omissão foi "convolada" por um mero intermediário do negócio.

xiii. Para assim decidir, cumpriria ao Tribunal a quo aferir em que medida se pode considerar que foi a Recorrida quem fez menção da falta dos elementos - sobretudo se essa falta de elementos foi provocada pela própria Recorrida, ao não fazer constar os mesmos do modelo de etiqueta que elaborou e remeteu à Recorrente.

xiv. O Tribunal a quo não explicita em que medida a menção feita pelo intermediário do negócio tem de ser entendida como tendo sido feita pela própria Recorrida, como a ora Recorrente questionou, pelo que omitiu pronúncia — o que acarreta a nulidade da decisão, nos termos do artigo 668. ° n.°1, d) CPC.

xv. Entende o Tribunal a quo que a Recorrida cumpriu o ónus de provar que alertou a Recorrente para uma característica essencial da embalagem do produto, de forma a poder ser desalfandegado — no entanto tal conclusão não tem arrimo na matéria de facto provada.

xvi. O Tribunal a quo anui na conclusão de que esses deveres não integravam os termos do contrato, mas entende o Tribunal a quo tais deveres não tinham de integrar o acordo, porquanto se tratam, alegadamente, de "deveres secundários acessórios da prestação".

xvii. Caso se tratasse de deveres acessórios caberia, desde logo, à Recorrente, sem qualquer intervenção da Recorrida, a remessa da mercadoria com a etiqueta correspondente ao seu regime aduaneiro — o que não é, manifestamente, o caso nos contratos de "Custo e Frete".

xviii. Assim sendo, verifica-se contradição entre os fundamentos de facto e a decisão — o que implica a nulidade da sentença nos termos do disposto no artigo 668.° n.° 1 c) CPC.

xix. Com efeito, uma sentença é nula quando os fundamentos invocados devessem, logicamente, conduzir a uma decisão diferente da que a sentença expressa - o que é manifestamente o caso, quando o Tribunal admite, por um lado, que uma parte contratante não tinha o dever contratual de cumprimento de deveres acessórios, mas, por outro lado, lhe atribui culpa contratual advinda do alegado incumprimento desses deveres (contratualmente inexistentes).

xx. Com a decisão em causa, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo viola o princípio da segurança jurídica, uma vez que um contrato "Custo e Frete" pode, sempre, vir a ser transformado num contrato diferente, com obrigações formais de legalização e desalfandegamento — como acontece, por exemplo, num contrato Incoterm DEQ ("Delivered Ex Quay"), em que a mercadoria é entregue no cais do porto de destino, como adiante melhor se dirá.

xxi. Assim, o artigo 762.° n.° 2 do Código Civil, quando interpretado no sentido pretendido pelo Tribunal a quo, de que os deveres acessórios se sobrepõe ao regime de uma cláusula Incoterm "Custo e Frete", seria inconstitucional, por violador do princípio da segurança jurídica, que ressuma do próprio princípio do Estado de Direito plasmado no artigo 2.° da Constituição.

xxii. A Convenção Internacional que regulou os Incoterms, pretendeu que quem actua no comércio internacional beneficiasse de uma disciplina jurídica uniforme aplicável à formação e conclusão dos contratos internacionais, baseada no princípio generalizadamente aceite da autonomia da vontade privada e capaz de transmitir aos contratantes a segurança que decorre do conhecimento da regulação jurídica aplicável.

xxiii. Refere o Tribunal a quo que «A menção do número do produtor tornava-se essencial para a entrada de um produto animal no espaço territorial da União Europeia.», e que «A Ré deu conhecimento à Autora da essencialidade dessa menção.».

xxiv. No entanto, salvo o devido respeito, o que resulta provado nos autos é que a Recorrida elaborou um modelo de etiqueta que, segundo a própria, continha todos os elementos essenciais e que um intermediário do negócio — e não a Ré nem um seu representante - referiu que "nas caixas também terá que vir especificado o n.° dos lotes e do fabricante".

xxv. Foi a própria Recorrida que, ao elaborar o modelo de etiqueta sem introduzir na mesma "o número de lotes e do fabricante" relegou esta menção para segundo plano, omitindo essa indiciação de entre "todas as inscrições necessárias" xxvi. Não consta em lado algum dos autos, não resulta do contrato, nem foi alegado pela Recorrida, que a mercadoria se destinava a ser introduzida "no espaço territorial da União Europeia", sendo que, nos termos da cláusula...

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