Acórdão nº 463/04 de Tribunal Constitucional (Port, 23 de Junho de 2004

Magistrado ResponsávelCons. Benjamim Rodrigues
Data da Resolução23 de Junho de 2004
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 463/2004

Proc. n.º 226/03

  1. Secção

Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues

Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:

A – O relatório

1 - A., com os demais sinais dos autos, dizendo-se inconformado com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 20 de Fevereiro de 2003, que lhe negou provimento ao recurso interposto do acórdão do Tribunal Colectivo da Comarca de Oliveira do Bairro, dele recorre para o Tribunal Constitucional, pretendendo que este aprecie a inconstitucionalidade dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal (CPP), na interpretação aí feita, por violação do artigo 32º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

2 - Convidado por despacho do relator, no Tribunal Constitucional, a dar cabal cumprimento ao disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 75º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), o recorrente apenas veio explicitar o sentido segundo o qual a norma do art.º 359º do CPP havia sido interpretada pelo STJ, e que fora o “de (numa situação processual em que considerara estar-se perante um caso de alteração substancial dos factos descritos na acusação e não perante um caso de alteração não substancial dos factos descritos na acusação como havia ajuizado o tribunal recorrido) não exigir ser dada ao arguido a possibilidade de concordar ou não, de forma expressa, com a continuação da audiência de julgamento”.

3 - O Ministério Público requereu o julgamento do ora recorrente em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, imputando-lhe a prática, em co-autoria material, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, n.º 1, e 204º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea e), do Código Penal (CP).

Durante a audiência de julgamento, o tribunal colectivo, depois de produzida a prova, mas antes das alegações orais, proferiu o seguinte despacho:

“Da prova produzida em audiência poderá resultar indiciada pelo arguido a prática de um crime de receptação - n.º 1 do artigo 231º do Código Penal - alteração esta não substancial da acusação, isto porque o arguido sabia que os bens apreendidos haviam sido furtados, e não obstante quis adquirir os mesmos, sabendo proibida a sua conduta”.

Não foi então levantada qualquer objecção a tal despacho judicial, nomeadamente por banda do arguido e o julgamento prosseguiu com a produção de alegações orais que se lhe seguiram.

A final, foi proferida decisão em que, além do mais, foi julgada improcedente e não provada a acusação quanto ao aludido crime de furto qualificado, dele se tendo absolvido o arguido, «convolando-se a acusação para o crime referido: condena-se o arguido A., como autor material de um crime de receptação, p. e p. pelo artigo 231º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão».

O arguido, ora recorrente, interpôs recurso para o STJ, quer do referido despacho de comunicação da «alteração não substancial dos factos», quer do acórdão final, tendo concluído a motivação respeitante ao primeiro recurso da seguinte forma:

«

  1. O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 1º, nº 1, alínea f), 358º e 359º, todos do Código de Processo Penal. De facto, as alterações de facto que comunicou ao arguido após a produção da prova traduzem antes uma alteração substancial dos factos descritos na acusação já que traduzem a imputação de um crime diverso e autónomo - de receptação - daquele que lhe vinha imputado - de furto qualificado.

    B) Ao ter consignado o despacho recorrido que se tratava de um caso de alteração não substancial dos factos descritos na acusação, e ter procedido o Tribunal a quo em conformidade com o disposto no artigo 358º do Código de Processo Penal, violados foram ainda o princípio do contraditório e as garantias de defesa do processo criminal (artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).

  2. Pelo que o despacho recorrido é nulo por violação dos normativos supracitados, devendo ser declarado tal vício e ordenada a sua substituição por outro que cumpra os ditames do artigo 359º do Código de Processo Penal.

    Termos em que deve o presente Recurso ser considerado provido, com todas as consequências legais, nos termos mencionados nas conclusões, como é de DIREITO E JUSTIÇA.».

    E, proferido o acórdão final, do mesmo, agora confortado com o benefício de apoio judiciário, entretanto logrado, interpôs novo recurso, agora confinado a este outro rol conclusivo:

    A) A imputação ao arguido de um crime de receptação dolosa p.p. pelo artigo 231º, n.º 1, do Código Penal, quando na acusação lhe vinha imputada a autoria de um crime de furto qualificado, constitui alteração substancial dos factos – o que deve ser declarado.

    B) O Acórdão recorrido, ao considerar tratar-se de alteração não substancial, incorreu em violação dos artigos 1º, n.º 1, alínea f), e 359º do Código de Processo Penal, o que acarreta a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma legal.

    C) O elemento subjectivo do tipo de receptação dolosa - intenção de obter vantagens patrimoniais - não estava inserido no texto da acusação (nem foi inserido na comunicação efectuada após a produção de prova). Ao acolher tal elemento subjectivo, a decisão condenatória incorreu em alteração substancial dos factos descritos na acusação. O que acarreta a nulidade da Sentença, nos termos dos normativos citados na conclusão anterior.

    D) Do mesmo modo, viola o Acórdão recorrido as garantias de defesa do processo criminal (plasmadas no artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), bem como o princípio do contraditório.

    E) Concomitantemente, declarada que seja a nulidade da Sentença, deve o Tribunal manter a absolvição do arguido pela prática do crime de furto qualificado, mandar extrair certidão de todo o processado, ordenar o arquivamento do processo e remeter essa certidão ao Ministério Público (vide artigo 359º, n.º 1, do Código Penal).

    F) Sem condescender, sempre se deverão considerar como violados pelo Acórdão recorrido os artigos 40º, 50º e 71º do Código Penal. Assim como os princípios da adequação, da proporcionalidade, da necessidade e da razoabilidade das penas. Atentos todos os factos provados, e demais considerações factuais do Acórdão recorrido, impunha-se a aplicação ao arguido de uma pena de prisão, mas suspensa na sua execução.

    Termos em que deve o presente recurso ser considerado provido, nos termos enunciados nas conclusões, como é de DIREITO e JUSTIÇA!

    .

    4 - Apreciando os recursos interpostos relativamente à alegada violação do disposto no artigo 359º do Código de Processo Penal, com consequente nulidade da sentença, o acórdão recorrido discreteou do seguinte modo:

    «Aqui chegados, importa então responder às questões postas pelo recorrente e acima sumariadas.

    A primeira questão - objecto de ambos os recursos - consiste em indagar se foi ou não violado o disposto no artigo 359º do Código de Processo Penal e, por essa via, nomeadamente, o princípio do contraditório, e as garantias de defesa, como alega o recorrente.

    O processo penal, de estrutura acusatória, exige uma necessária correlação entre a acusação e a decisão. A definição do thema decidendum na acusação é uma consequência da estrutura acusatória do processo.

    Para assegurar a plenitude da defesa, definido o objecto do processo na acusação, o tribunal não deveria, como regra, poder tomar em conta quaisquer outros factos ou circunstâncias que pudessem prejudicar a defesa antes estruturada.

    Sucede, porém, que por razões de economia processual, mas também no próprio interesse da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objecto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afectada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo.(1)

    A liberdade de qualificação jurídica que no passado vigorava como presunção inilidível do conhecimento da lei, constituía uma importante derrogação ao princípio da acusação e do contraditório, já que o arguido acusado da violação de uma determinada norma poderia ser surpreendido pela condenação por outra sem que tivesse tido oportunidade de alegar as suas razões de facto e de direito sobre a norma que lhe era aplicada.

    Exige, porém, agora, a lei penal que o agente tenha consciência da ilicitude do facto, para que o que pode ser necessário que conheça a norma incriminadora.

    Por isso se vem entendendo que o tribunal não tem a liberdade de qualificação jurídica dos factos descritos na acusação. É a indicação da norma incriminadora que dá aos factos naturais o seu sentido de desvalor jurídico-penal.(2)

    Mas o certo é que a referência à norma violada traduz apenas o sentido do desvalor do comportamento imputado ao arguido. Revela o interesse tutelado e os limites em que o bem jurídico é tutelado pelo direito penal e o que a lei penal exige é o conhecimento da protecção penal desse interesse e dos termos em que é protegido, do desvalor jurídico do comportamento objecto da acusação.

    Ora, para que o agente tenha consciência da ilicitude do seu comportamento, não é de exigir necessariamente o conhecimento da norma proibitiva, mas basta a consciência da protecção penal do interesse violado

    .

    A norma indicada na acusação dá o critério da valoração, revela ao acusado que é em função do desvalor penal que aquela norma traduz que é requerido o seu julgamento. Enquanto a variação do tipo incriminador não implicar alteração do critério essencial de valoração do interesse, o arguido não fica defraudado no direito de defesa»(3)

    De todo o modo, as meras alterações de qualificação jurídica têm assento processual no artigo 358º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

    Já o artigo 359º do mesmo Código contempla a alteração dos factos em razão do acrescentamento ou amputação de um elemento do facto que implique que o facto novo resultante da alteração constitui um outro tipo legal de crime, a descoberta de um outro evento, ou a...

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