Acórdão nº 2334/06.1TBALM.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 29 de Abril de 2010

Magistrado ResponsávelSILVA SALAZAR
Data da Resolução29 de Abril de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REVISTA Decisão: NEGADA A REVISTA Sumário : I - A cláusula testamentária pela qual M incumbiu quem quer que ficasse como herdeiro efectivo de dar à autora a quantia de 3 000 000$00 se esta se encontrasse ao seu serviço à data da sua morte, constitui um legado, a favor da autora, sujeito a uma condição suspensiva potestativa não arbitrária a parte creditoris, pois é manifesto que os actos materiais exigidos a esta para a verificação do evento condicionante não se resumem a um puro querer e assumem forte gravidade e relevância, sendo caracterizados por um grau de dificuldade e sacrifício que poderia fazer oscilar a vontade da autora, de cujos serviços a testadora continuava a sentir necessidade.

II - É esta a interpretação da vontade da testadora, que tem de ser observada por inexistir qualquer motivo de nulidade (arts. 2179.º e segs. do CC) e a que se chega com base nos critérios consagrados no art. 2187.º do mesmo diploma, segundo o qual, “na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do documento” (n.º 1) e “é admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa” (n.º 2).

III - A determinação da intenção do testador vem sendo pacificamente considerada pela jurisprudência como matéria de facto. Por isso, não pode a decisão das instâncias sobre tal matéria ser sindicada pelo STJ (arts. 729.º, n.º 2, e 722.º, n.º 2, do CPC), salvo se os demais factos provados com base na prova complementar legalmente admitida mostrarem que o sentido interpretativo a que chegaram as instâncias não é o mais ajustado com a vontade do testador e, por o testamento ser um acto jurídico formal (arts. 2204.º e segs. do CC), se esta vontade não tiver no texto respectivo um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.

IV - Dos demais factos provados não resulta, de forma alguma, que o sentido interpretativo a que as instâncias chegaram não seja o mais ajustado à vontade da testadora, antes se podendo concluir pelo acerto da interpretação sobre a vontade da testadora, no sentido de que esta pretendia fixar tal cláusula concedendo à autora determinada quantia se esta se decidisse por se manter ao seu serviço até à data do óbito dela testadora e concretizasse tal intenção, ou só não a concretizasse por força de factores estranhos, interpretação que tem correspondência no texto do testamento.

V - Encontra-se provado que a ré, que ficaria prejudicada pela verificação da condição por, sendo ela a herdeira da testadora, ter de dar cumprimento ao legado à autora, impediu a verificação da condição, convertendo em definitivo, contra vontade da testadora, que a ré não demonstrou encontrar-se incapaz de tomar as suas próprias decisões, o internamento desta num lar – internamento este de que tomou a iniciativa e que devia ser meramente temporário, destinado a durar apenas durante o mês de férias da autora –, dispensando os serviços desta e ordenando-lhe que abandonasse a casa da testadora, em que a autora vivia desde os catorze anos de idade, e comunicando-lhe que deveria contactar com a advogada dela ré a fim de assinar um documento e acertar as contas, apesar de a testadora não a ter despedido nem sequer ter conhecimento de que a ré a dispensara, proibindo-a de esclarecer tais factos à testadora e nem sequer lhe comunicando as mudanças de lar em que esta se encontrava internada apesar de saber do apreço da testadora pela autora.

VI - Considerando a dispensa, pela ré, dos serviços da autora logo que esta regressou de férias, quando a testadora tinha possibilidade de ter plena percepção do que acontecia, a falta de comunicação à autora das mudanças de lar, apesar das visitas que esta fazia à testadora, e a proibição à autora de contar à testadora os factos respeitantes à dispensa de serviços pela ré decretada e à conversão do internamento em definitivo, quando a vontade da testadora, que a ré assim desrespeitou, era a de regressar a sua casa, cumpre concluir que o impedimento da verificação da condição foi feito de má fé.

VII - Dispondo o art. 275.º, n.º 2, do CC que “se a verificação da condição for impedida, contra as regras da boa fé, por aquele a quem prejudica, tem-se por verificada (...)”, tem de se dar como verificada a dita condição, subsistindo em consequência a obrigação da ré de dar cumprimento ao legado feito pela testadora à autora, obrigação esta resultante também do disposto no art. 2068.º do CC.

Decisão Texto Integral: * Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: AA instaurou em 07/04/2006 acção contra BB, pedindo que se reconhecesse o direito dela autora ao cumprimento de um encargo testamentário, e se condenasse a ré a reconhecer esse seu direito e a cumprir tal encargo, entregando-lhe a quantia de 14.963,94 euros, livre de impostos, bem como a pagar-lhe, a título de indemnização, os respectivos juros legais de mora contados desde a data de falecimento da testadora até integral cumprimento da obrigação (liquidando os já vencidos em 2.501,24 euros), e a quantia de 5.000,00 euros a título de danos morais.

Alega a autora, para o efeito e em síntese, ter sido admitida em Outubro de 1946, com catorze anos de idade, como empregada interna de CC, cunhada da ré, ao serviço da qual se manteve até Setembro de 1999, sempre a servindo de forma dedicada, e sendo tratada como se fizesse parte da família; mais invocou que, em 1999, não podendo CC ficar sozinha durante o seu próprio período anual de férias, de um mês, aceitou aquela ser temporariamente internada pela aqui ré num Lar, vindo depois a aqui autora a ser surpreendida quando, no seu regresso, a ré lhe comunicou que aquele internamento se tornara definitivo, não sendo mais necessários os seus serviços; intimou-a, por isso, a ré, a retirar de casa de CC todos os seus bens, bem como a procurar a advogada que então lhe indicou, para fazer as suas contas; invocou ainda a autora não se ter despedido, tendo sido dispensada pela ré, ignorando ainda CC esse facto, permanecendo convicta de que regressaria a casa, e de que ela própria ali se mantinha, ao seu serviço, cuidando das suas coisas, jamais lhe tendo contado a verdade, nas visitas regulares que lhe foi fazendo até à sua morte (ocorrida em 14 de Agosto de 2002), uma vez que a Ré lho tinha proibido; contudo, tendo CC feito testamento, no 20° Cartório Notarial de Lisboa, instituindo como seus únicos e universais herdeiros o irmão e a mulher deste, aqui ré (ou as duas filhas do casal, caso nenhum dos dois lhe sobrevivesse), e onerado os seus herdeiros com o encargo de lhe darem a quantia de Esc. 3.000.000$00, livre de impostos, se ainda se encontrasse ao seu serviço, não foi o mesmo cumprido pela ré, já viúva, sendo certo que apenas a ela seria imputável a circunstância de já não se encontrar a servir CC, à data do seu decesso; segundo a autora, esta pretendia com tal legado recompensá-la pela lealdade, dedicação e amizade que sempre demonstrara para com ela, e ampará-la na velhice, evitando-lhe necessidades por que viesse a passar, já que não teria outro rendimento que não fosse a sua reduzida reforma; por fim, alegou a autora que a ré interrompeu de forma abrupta as relações entre ela própria e CC, privando-a do emprego e da casa que sempre conhecera desde os catorze anos, e impedindo-a de o contar àquela, causando-lhe dessa forma tristeza e dor, bem como tristeza e angústia por ver o sofrimento de CC (ao se ver afastada dela própria e da sua casa), vivendo hoje com grandes dificuldades, incluindo privações de alimentação e de vestuário.

Regularmente citada, a ré apresentou contestação pedindo que se julgasse procedente a excepção de não verificação da condição suspensiva de que dependia o legado testamentário, sendo por isso a acção julgada improcedente, e se julgasse de idêntica forma a mesma, por não provada, sendo ela própria absolvida de todos os pedidos formulados pela autora.

Alegou para o efeito, também em síntese, ter o legado em causa ficado sujeito à condição suspensiva de a aqui autora se encontrar ao serviço da testadora à data da sua morte, ocorrida em 14 de Agosto de 2002, sendo que aquela cessara toda a sua actividade ao serviço de CC em 20 de Setembro de 1999 por força de um acordo de cessação de contrato de trabalho celebrado entre ambas; mais invocou que a testadora nunca teve qualquer das intenções que lhe foram imputadas pela autora, estando a sua vontade claramente plasmada no texto do testamento em causa, insusceptível de outras interpretações; a ré impugnou ainda muitos dos demais factos articulados pela autora, afirmando nomeadamente que desde 1998 CC não podia ficar sozinha em casa, nem mesmo apenas com a autora, como aliás a mesma referia (por não ter condições físicas, nem conhecimentos técnicos para lhe prestar os cuidados de saúde de que a testadora necessitava), tendo cabido ao seu marido a decisão de internar a irmã; mais invocou a ré ter a rescisão do contrato de trabalho de serviço doméstico sido assinada livremente quer por CC, quer pela autora (que recebeu então o valor que lhe era legalmente devido), tendo a assinatura desta última sido reconhecida presencialmente no 22° Cartório Notarial de Lisboa, em 20 de Setembro de 1999, sem prejuízo da caducidade de tal contrato à data em que CC entrara no Lar, nos termos do art.º 28°, al. b), do Dec. - Lei n.° 235/92, de 24 de Outubro; relativamente aos juros de mora impetrados pela autora, a ré defendeu que, não lhe reconhecendo qualquer direito ao legado em causa, não existiria mora no seu cumprimento, só se tornando aquele exigível mediante decisão judicial que o reconhecesse, pelos que os ditos juros só seriam devidos desde o trânsito em julgado da eventual decisão que o determinasse; por fim, a ré alegou que, não estando em causa a prática de qualquer facto ilícito, não existiria o...

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