Acórdão nº 90/08.8GCCNT.C1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 05 de Maio de 2010

Magistrado ResponsávelARMINDO MONTEIRO
Data da Resolução05 de Maio de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: RECURSO PENAL Decisão: NEGADO PROVIMENTO Sumário : I - Pela atribuição exclusiva, como princípio regra, da competência ao STJ para conhecimento da matéria de direito, não cabe nos poderes legais do STJ ordenar e proceder à renovação - que não é o mesmo que repetir a prova –, apresentando-se o reenvio como alternativo em relação a ela e esta um meio supletivo em relação à utilização da documentação da prova.

II - O preceito do art. 430.º, n.º 1, do CPP, estabelece uma hierarquia procedimental em caso de impugnação da matéria de facto com o vício do art. 410.º, n.º 2, do CPP, mostrando o legislador preferência pelo recurso aos elementos documentais existentes no processo e, de seguida, se não for possível a resolução por tal meio, recorre-se à renovação da prova e, em caso de inviabilidade de sanação pelo recurso derradeiro ao reenvio.

III -O que torna privilegiado o homicídio é, desde logo, a emoção violenta, que as circunstâncias do caso tornam compreensível.

IV - A emoção é compreensível, afirmam alguns autores, quando o acto de resposta do agente é dominado por sentido de justiça, outros autores sublinham que não basta que a emoção seja justificada, psicologicamente, de um ponto de vista subjectivo, antes devendo sê-lo também subjectivamente, de acordo com circunstâncias exteriores, apresentando-se ao autor o facto da vítima como algo de injusto e não ter como causa motivos egoístas ou moralmente baixos.

V- Entre nós o homicídio privilegiado, na sua forma de comissão sob o signo de compreensível emoção violenta, assume o sentido de reacção que o homem médio colocado na situação concreta podia representar, ou seja, cair em tal estado de ânimo, sendo sensível ao “conflito espiritual” que foi criado ao agente.

VI - No plano doutrinário e sobre a invocação do desespero, noutro dos invocados fundamentos do homicídio privilegiado, aquele é concebido como fruto de uma situação que se arrasta no tempo, com origem em pequenos ou grandes conflitos, que acabam por levar o agente a considerar-se numa situação sem saída, deixando de acreditar, de ter esperança, tudo limitando a opção psicológica do agente desesperado, nele se englobando os casos de suicídios alargados ou de humilhações reiteradas, com origem, sobretudo, em estados de afecto ligados à angústia, depressão ou revolta, não se tornando exigível que tais estados de afecto sejam compreensíveis.

VII - De consignar que o ciúme não tem merecido da parte do STJ uma atitude privilegiante, como regra, da responsabilidade penal do agente. Em via de regra, por puro egoísmo, o agente por ciúme não se autodemarca, ultrapassando-o, do sentimento exclusivo de posse da pessoa sua vítima, incapaz como é de sobrepor o seu ressentimento pessoal face ao risco iminente de perda.

VIII - Por isso já se tem até configurado como motivo fútil por traduzir uma reacção desproporcionada relativamente à gravidade da acção penal, não podendo razoavelmente explicar, à luz da consciência do homem médio, um ataque tão forte à vida da pessoa, sem motivo que o legitime ou esbata segundo as concepções sociais, morais e económicas reinantes, que o condenam, sem o desculpabilizarem.

IX -No crime passional o agente age consciente e voluntariamente dominado como está pela ideia de a morte da vítima ser para ele a contrapartida, pela negativa, de a não poder ter para si; a morte é a consequência mais lógica e razoável da frustração do sentimento de posse que, próximo do definitivo, enraizara.

X - No caso em apreço, a audição, enquanto causa próxima do homicídio, de uma conversa entre a vítima e o seu suposto “namorado”, ainda que agudizando o estado de ciúme que já vinha do passado, não comporta virtualidade para desencadear um estado de afecto esténico, uma emoção de tal ordem que desculpabilize que se retire a vida de outrem só porque não deseja viver consigo.

XI -De resto, esse estado de ciúme arrastado no tempo não se apresenta como algo inteiramente novo, que o colheu de súbito, inopinadamente, tolhendo-lhe, então, de forma totalmente incontrolável, a capacidade de agir diferentemente, de modo que, in casu, o homem médio, possa, na emoção violenta evidenciada, encontrar, ainda, um laivo de culpa sensivelmente diminuída, pois por se arrastar no tempo é que o arguido podia e devia contramotivar-se diferentemente do ponto de vista da ética, adoptando outro tipo de comportamento, não cedendo à ideia de lhe retirar a vida, forçada como não podia ser a vítima a viver com ele; o arguido devia ajustar-se à ideia de a perder, desenvolvendo mecanismos de autoconcepção e alternativos incomparavelmente menos gravosos e censuráveis.

X - Por isso, o uso do tipo legal de crime previsto no art. 133.º do CP, deve fazer-se de forma criteriosa, não podendo prescindir-se de um contexto com tradução psíquica transitória em resposta a uma reacção agressiva a um facto grave da vítima ou de terceiro, apresentando-se aquela – reacção – ainda com algo de tolerância, de desculpabilidade à luz das concepções ético-morais comunitariamente reinantes, para o homicídio ser privilegiado.

XI -Aceita-se que o ciúme haja causado alguma perturbação psicológica, de enervamento, que o arguido se haja sentido algo humilhado pelo facto de aquela com quem intentara estabelecer um projecto duradouro de vida em comum e até auxiliado comunicava pelo telemóvel, ao seu interlocutor, que o arguido recusava sair do apartamento, mas não o estado asténico de desespero invocado, configurante de crime de homicídio privilegiado, de resto condenado, por valoração dessas razões e de outras numa pena que se situa um pouco abaixo do habitual para o crime de homicídio qualificado – 16 anos –, numa moldura de 12 a 25 anos de prisão.

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça : Em p.º comum com intervenção do tribunal colectivo sob o n.º 90/08.8GCCNT, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede , foi submetido a julgamento AA , vindo , a final , a ser condenado como autor material de um crime de homicídio qualificado , p . e p . pelas disposições conjugadas dos art.ºs 131.º e 132.º n.ºs 1 e 2 b) e h) , do CP , na pena de 16 anos de prisão e , ainda , ao pagamento da indemnização de 170 000 € a BB e a CC da soma de 2.450, 34 € .

O arguido interpôs recurso para a Relação , que lhe negou provimento , de novo apresentando recurso para este STJ , em cuja motivação figuram as seguintes conclusões : A DD falava frequentemente ao telemóvel com a testemunha EE de quem recebia de dia e á noite , às mais diversas horas vários toques e mensagens .

Apesar de não saber que era esse o interlocutor , a circunstância de a DD, companheira do arguido , se mostrar tão envolvida nessas comunicações , tal facto causava desagrado e desconfiança sobre a existência de relações sentimentais daquela com outrém .

No dia 28 de Abril de 2008 , depois do jantar , no apartamento onde a DD vivia e o arguido pernoitava algumas vezes , envolveram-se em nova discussão, trocando palavras , a DD disse de modo insistente ao arguido para abandonar a a residência , sem que aceitasse .

Por volta das 22h45 ao escutar a chamada telefónica que a DD fez para o EE, comentando e referindo-se ao arguido que ele se recusava a sair , “ ele hoje não sai daqui nem com uma bomba “ , o arguido sentiu ciúmes , enfurecendo-se com a DD e , por manter uma conversa à sua frente com outro homem desconfiando que andava de “ namoro” com ele .

Tudo o que se seguiu constante dos pontos de facto provados sob os n.ºs 11 a 15 são a resposta ao turbilhão de sentimentos que o dominou , à profunda dor que sentiu , resultante da perda do amor da mulher que amava , que acolheu em sua casa , que lhe serviu de lar , quando respondeu ao anúncio num jornal e no mesmo dia .

O arguido , acto contínuo após desferir a pá na pessoa da DD , entregou-se à GNR da Tocha , praticando o crime de forma abrupta , sob forte e compreensível emoção torturado , desorientado , traumatizado pela ideia de infidelidade de quem o humilhou e desprezou Nestes termos ao ser condenado por homicídio qualificado e ao não considerar que agiu sob ciúmes , provocados por rejeição e desdém , o acórdão recorrido errou interpretando incorrectamente a matéria de facto .

O arguido agiu dominado por estado de exaltação , revolta e descontrole emocional , levando à morte da vítima .

O arguido dominado por emoção violenta provocada pela vítima , que é compreensível , fundada numa relação não desvaliosa entre os factos que provocaram a emoção e a própria emoção .

O desespero tornou-se tão insuportável , ao ponto de a aflição o desânimo , o desalento e a angústia que sentia , transformaram –no num turbilhão de sentimentos , formando uma tensão que o empurrou para um beco sem saída , actuando em conformidade .

O relatório social elaborado pelo IRS é esclarecedor desse estado psicológico .

E para considerar o estado a que chegou e desencadeou o comportamento homicida é determinante não apenas a causa próxima , mas também causas remotas que...

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