Acórdão nº 2112/09.6TBMGR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 19 de Janeiro de 2010

Magistrado ResponsávelCEC
Data da Resolução19 de Janeiro de 2010
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: I. Relatório A....

, com sede em ....., requereu providência cautelar de apreensão do veículo automóvel matrícula 00-00-KK e seus documentos, contra B...

, residente ...., pedindo o seu decretamento sem audição da parte contrária. Alegou ter celebrado com o requerido, em 27-04-2006, um contrato de crédito ao consumo, no âmbito do qual lhe concedeu um financiamento de 8.500,00 euros para aquisição daquela viatura. Ficou o requerido obrigado a pagar o montante mutuado em 49 prestações mensais, as quais deixou de pagar desde a 31ª. Endereçou-lhe comunicação a solicitar o pagamento através de carta registada datada de 11-05-2009, com a cominação de que o seu não pagamento no prazo máximo de 8 dias daria lugar ao contrato “automaticamente rescindido”. Decorrido tal prazo sem a realização do pagamento das prestações em débito, o contrato considera-se resolvido. Como beneficia de reserva de propriedade, registada na Conservatória do Registo Automóvel, e o requerido não entregou o veículo automóvel, está legitimado a pedir a sua apreensão.

Em decisão liminar foi rejeitada a providência cautelar requerida, com o fundamento de ser legalmente inadmissível a reserva de propriedade a favor da entidade financiadora da aquisição do veículo automóvel em causa e, por isso, nela infundável a providência cautelar de apreensão de veículo.

Inconformada, recorreu a requerente, rematando as suas alegações com as conclusões subsequentes: […………………………………………………………………] * II. Delimitação do objecto do recurso Face às conclusões de recurso, que definem o seu objecto (artigos 684º, 2 e 3, 660º, 2, e 713º, 2, do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 303/2007, de 24 de Agosto), a questão decidenda consiste em indagar se o registo de reserva de propriedade a favor da entidade financiadora da aquisição lhe confere o direito a requerer a sua apreensão cautelar.

* III.

Os factos em que assentará a decisão de recurso são os alegados no requerimento inicial da providência cautelar, já que nos situamos no âmbito de despacho liminar.

* IV. O direito Estando em causa o procedimento cautelar de apreensão judicial de veículo automóvel, regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 54/75, de 24 de Fevereiro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n°178-A/2005, de 28 de Outubro, dispõe o n.º1 do artigo 15º desse normativo que Vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e do certificado de matrícula. E acrescenta o artigo 16°, 1, do mesmo diploma, que Provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo.

São estes os fundamentos normativos aduzidos pela requerente para justificar a pedida apreensão judicial do veículo automóvel cuja aquisição financiou, pretensão que a decisão recorrida declinou por a cláusula de reserva de propriedade beneficiar apenas o vendedor e não a entidade financiadora, salvo se esta acoplar a qualidade de vendedora.

Delimitados os termos da problemática sob recurso, por razões de precedência lógica, começaremos por indagar da validade da cláusula de reserva de propriedade aposta no contrato de mútuo a favor do mutuário.

O contrato tem, cada vez mais, uma natureza pluridimensional e, continuando a constituir um instrumento de expressão e autodeterminação dos contraentes, ele tende a fundar um princípio ordenador de relações sociais. Em termos sistémicos, podem discernir-se no contrato três planos: o plano de relacionamento particular entre os contraentes (o contrato como sistema de acção interindividual), o plano institucional do mercado e o plano da ordem jurídica global. Mesmo assim, no diálogo entre a liberdade contratual e a justiça comutativa, admite-se, por razões de princípio, de praticabilidade e de desoneração normativa, uma relativa predominância da primeira[1]. Logo, prima facie, poderemos dizer que, no acolhimento da auto-regulação das partes, os aqui requerente e requerido conformaram os seus interesses, como expressão da sua autonomia de vontade, conferindo o mutuário “reserva de propriedade” do veículo a favor do mutuante.

Porém, o artigo 405º, 1, do Código Civil, diploma a que pertencerão todas as normas que doravante indicarmos sem menção de proveniência, consagra o princípio da liberdade contratual de modo limitado, ao estatuir Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, (...) ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver (sublinhado nosso).

E atentando no artigo 409º, 1, vemos que Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento. Norma sistematicamente inserida nas disposições gerais relativas aos contratos e que alveja um específico tipo de contratos (os contratos de alienação) e um particular sujeito contratual (o alienante)[2]. Normativo que admite o pactum reservati dominii, o negócio estipulado sob condição suspensiva quanto à transferência da propriedade. Como a propriedade, em princípio, se transfere por mero efeito do contrato (consensus parit proprietatem), estipulada a cláusula de reserva de propriedade, o efeito real do contrato fica sujeito a uma condição suspensiva, de modo a que a reserva da propriedade sobre o bem alienado sirva de garantia ao cumprimento das prestações do adquirente. Cláusula que, respeitando a imóveis ou móveis sujeitos a registo, só opera efeitos em relação a terceiros com a inscrição no registo e que representa a possibilidade de o alienante da coisa reservar para si o seu domínio até ao cumprimento (total ou parcial) das obrigações que recaiam sobre o adquirente ou até à verificação de qualquer outro evento[3]. Vale dizer que o negócio é celebrado, quanto à transferência da propriedade, sob condição suspensiva[4].

Volvidos ao campo factual em apreciação, é incontroverso que as partes (requerente e requerido) se não vincularam a um qualquer contrato de compra e venda (o apelante adu-lo nas alegações de recurso), mas tão somente a um contrato de mútuo, com estabelecimento e registo de uma...

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