Acórdão nº 08S3695 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 10 de Dezembro de 2009

Magistrado ResponsávelMÁRIO PEREIRA
Data da Resolução10 de Dezembro de 2009
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REVISTA Decisão: CONCEDIDA A REVISTA Sumário : I - Um dos objectivos da introdução dos mecanismos da gravação da prova produzida em julgamento e da consequente impugnação, em recurso dirigido à Relação, das respostas à matéria de facto, foi o de proporcionar um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto.

II - Assim, como resulta dos termos conjugados dos artigos 655.º, n.º 1 e 712.º do CPC, o Tribunal da Relação pode, com base na audição dos depoimentos das testemunhas, formar uma convicção diferente da primeira instância sobre os factos que foram impugnados, desde que estes estejam submetidos ao princípio geral da liberdade de julgamento ou da livre e prudente convicção do julgador de facto.

III - A par desse poder conferido ao Tribunal da Relação, a lei quis reservar às instâncias a aplicação do mencionado princípio da prudente convicção, vedando a intromissão, nesse domínio, do STJ, que vê os seus poderes em matéria de fixação dos factos e apreciação dos meios probatórios limitados às eventuais violações do denominado direito probatório material, no âmbito da denominada prova legal, prevista no n.º 2 do art. 655.º e na segunda parte do n.º 2 do art. 722.º do CPC.

IV - Daí que seja vedado ao STJ censurar a convicção a que a Relação chegou sobre os factos submetidos àquele princípio geral, não traduzindo essa proibição qualquer violação dos artigos 2.º e 20.º da CRP, pois a Constituição não impõe a necessidade de um terceiro grau de jurisdição em matéria de facto, deixando, antes, esse ponto à consideração do legislador ordinário, tal como decorre do n.º 5 do art.º 210.º da CRP.

V - Apenas existe contradição entre os factos considerados provados se, relativamente ao mesmo ponto de facto, uma das respostas aponta num sentido e a outra ou outras aponta(m) em sentido oposto ou, pelo menos, diferente, criando versões diferentes e incompatíveis sobre a mesma situação factual, o que não acontece entre factos que abordam realidades diferentes, como sejam a determinação das circunstâncias em que foram proferidas determinadas expressões e o sentido atribuído às mesmas por um dos interlocutores.

VI - A noção de justa causa de despedimento exige a verificação cumulativa de dois requisitos: (i) um comportamento ilícito e culposo do trabalhador, violador de deveres de conduta ou de valores inerentes à disciplina laboral, grave em si mesmo e nas suas consequências; (ii) que torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral, os quais valem também quanto aos comportamentos exemplificativamente indicados no n.º 3 do art. 396.º do CT.

VII - Existe a impossibilidade prática e imediata de subsistência da relação laboral quando ocorra uma situação de absoluta quebra de confiança entre a entidade empregadora e o trabalhador, susceptível de criar no espírito da primeira a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta do último, deixando de existir o suporte psicológico mínimo para o desenvolvimento dessa relação laboral.

VIII - Na apreciação da gravidade da culpa e das suas consequências, deve recorrer-se ao entendimento do “bonus pater familae”, de um “empregador razoável”, segundo critérios objectivos e razoáveis, em face do circunstancialismo concreto, devendo atender-se, “no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes”, como estabelece o art. 396.º, n.º 2 do CT.

IX - Cabe ao empregador a imputação dos factos integrantes da justa causa do despedimento, a descrever na nota de culpa e a dar como assentes na decisão final do processo disciplinar, sendo esses os únicos que podem ser invocados na acção de impugnação do despedimento, pelo que tais factos são constitutivos do direito do empregador ao despedimento do trabalhador ou, na perspectiva processual da dita acção de impugnação, impeditivos do direito à reintegração ou ao direito indemnizatório que o trabalhador nela acciona, com base numa alegada ilicitude do despedimento.

X - Estando determinado que a A. (trabalhadora) incorreu na prática de infracções disciplinares traduzidas na violação do dever de respeitar e tratar com urbanidade o seu superior hierárquico (por factos ocorridos em 18.07.2005) e uma sua companheira de trabalho (por factos ocorridos em 19.07.2005), dever esse previsto na al. a) do n.º 1 do art. 121.º do CT, tem de se apurar se essas infracções, pela sua gravidade e consequências, tornam, ou não, imediata e praticamente impossível a manutenção da relação laboral.

XI - Assume relevante gravidade, no quadro da organização da empresa R., a conduta da A que, interrompendo engenheiro, seu superior hierárquico, quando este lhe foi transmitir uma ordem de trabalho, lhe disse: “o senhor anda sempre a gozar comigo; eu sei que não me pode ver; o senhor é muito cínico; o meu filho já está criado e os seus? Segunda-feira vou a uma reunião do Sindicato e o seu nome vai lá ficar bem escrito”, por significativamente afrontosa, desrespeitosa e mesmo com laivos ameaçadores para com um superior hierárquico, pondo em causa a autoridade e honorabilidade deste e ferindo as regras de respeito e disciplina que, dentro de uma empresa, devem reger o comportamento dos trabalhadores em relação aos seus superiores hierárquicos.

XII - Não contendo os factos dados como assentes nas instâncias alusão a qualquer conduta desse engenheiro, no seu relacionamento pessoal ou profissional com a A. que possa constituir suporte relevante e consentir a ilação da verificação de tensão entre ambos, ou que essa tensão tivesse estado na base da referida conduta da A, não é de desvalorizar essa mesma conduta dolosa da A., para efeitos de despedimento, com base na consideração de que a mesma surgiu num contexto de alguma tensão.

XIII - Assume ainda relevante gravidade a conduta da A que, no âmbito de uma discussão com a sua colega de trabalho e em que esta lhe chama “malandra”, começou aos berros e, dirigindo-se a essa colega, profere várias expressões injuriosas que, para além de se traduzirem numa reacção claramente excessiva e desproporcionada, revestem uma acentuada carga ofensiva do bom nome, honra e dignidade da sua colega.

XIV - Não se podendo concluir, da factualidade provada, que as mencionadas condutas infraccionais da A. tivessem sido determinadas ou influenciadas pela depressão de que padece, designadamente por via de um descontrolo emocional, com reflexos heteroagressivos, por ela gerada, não se pode afirmar um relevante valor atenuativo da responsabilidade da A..

XV - Assim, as apontadas condutas da A. traduzem infracções disciplinares laborais, violadoras dos deveres de respeito e urbanidade dos trabalhadores para com superiores hierárquicos e colegas de trabalho que, no caso, ditaram a impossibilidade, prática e imediata, da manutenção da relação laboral, integrando, pois, justa causa do despedimento levada a cabo pela R.

XVI - E não constitui óbice à verificação da justa causa de despedimento da A. a presunção prevista no n.º 2 do art. 456.º do CT pois, ainda que se perfilhasse um critério de maior exigência de prova, na sua avaliação, por se estar perante o despedimento de uma dirigente sindical, a factualidade assente preenche os requisitos da justa causa para o despedimento, sendo que este também não encobre ou esconde um fundamento discriminatório ou persecutório em relação à A..

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça 1.

AA intentou a presente acção, com processo comum, contra BB – Sociedade Industrial de Cordoaria, SA, pedindo: - que seja declarado ilícito o despedimento da A. e nulo e de nenhum efeito o despedimento efectuado; - a condenação da R. no pagamento de todas as retribuições legais que a A. deixou de auferir até à reintegração efectiva; - a reintegração da A., sem prejuízo da sua categoria, salvo se vier a optar por uma indemnização correspondente a duas vezes 32 meses de retribuição, bem como nos juros legais.

Alegou, para tal, em síntese, que foi despedida sem justa causa A R. contestou, alegando que promoveu e decidiu o despedimento do A. de forma legal, fundamentada e no âmbito de um processo disciplinar, iniciado com a nota de culpa.

Saneada, instruída e julgada a causa, com gravação da prova, foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente e absolveu a R. dos pedidos.

Dela apelou a A., impugnando a decisão sobre a matéria de facto e pedindo que, por não verificação da justa causa de despedimento, seja a acção julgada procedente, com a condenação da R. no pedido.

Por seu douto acórdão, a Relação do Porto, com um voto de vencido, julgou procedente a apelação e revogou a sentença, tendo declarado a ilicitude do despedimento e condenado a Ré a reintegrar a Autora e a pagar-lhe as retribuições que esta deveria auferir desde o trigésimo dia anterior à propositura da acção até à data do trânsito em julgado desta decisão, cujo montante relegou para liquidação, acrescidas dos juros de mora, à taxa legal desde a liquidação.

II – Agora inconformada a R., interpôs a presente revista em que formulou as seguintes conclusões: 1ª) - O Tribunal de 1.ª instância fez uma cuidada apreciação crítica das provas, especificando os fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção do julgador, que assentou num juízo sobre a credibilidade e razão de ciência dos depoimentos das testemunhas; 2.ª) - A impugnação da matéria de facto pela A. teve apenas por base o argumento de que a prova testemunhal por si arrolada devia ser relevada em prejuízo dos depoimentos que mereceram o crédito do Tribunal de 1.ª instância; 3.ª) - Em matéria de convicção probatória, vigora plenamente o princípio geral da livre apreciação da prova, consagrado no art. 655.°, n.° 1, CPC, segundo o qual o Tribunal aprecia livremente as provas e julga a matéria de facto conforme a...

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