Acórdão nº 08B1800 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 15 de Outubro de 2009

Magistrado ResponsávelRODRIGUES DOS SANTOS
Data da Resolução15 de Outubro de 2009
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REVISTA Decisão: CONCEDIDA REVISTA Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL: ARTIGOS 799º Nº 1, 487º, 342º,343º,344º E 1154º Sumário : I - Em regra, a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual preenchem integralmente o campo da responsabilidade civil do médico no exercício da sua profissão, sendo irrelevante que o mesmo tenha a seu cargo uma obrigação de meios ou de resultado.

II - Ao médico, seja qual for a sua obrigação, esteja ou não vinculado por contrato, exige-se que cumpra as Ieges artis com a diligência normal de um médico médio (reasonable doctor).

III - Aplica-se à responsabilidade contratual médica a presunção de culpa contida no art. 799.º, n.º 1, do CC, presunção esta que fica ilidida com a demonstração pelo médico do cumprimento diligente das leges artis.

IV - Recai sobre o paciente o ónus da prova do vínculo contratual, da existência de factos demonstrativos do incumprimento ou cumprimento defeituoso do médico, dos danos (e sua extensão), do nexo causal entre a violação das regras da arte e tais danos e da preterição do dever de informação, por parte do médico, ao paciente com vista à obtenção do seu consentimento esclarecido.

V - Perante a dificuldade natural da prova de um facto por parte do paciente, o mais que pode acontecer é fazer-se uso da máxima iis quae dificcillioris sunt probationis, levioris probationes admittuntur (para maiores dificuldades na prova, menos exigência na sua aceitação).

VI - Contributo relevante para a compreensão e solução desta problemática, é o Estatuto do Paciente, que, no passado recente se consolidou, nas vertentes de dignidade, visibilidade e parceiro total e igual, no binómio paciente - médico, sobretudo após o estabelecimento da doutrina do consentimento informado ou informed consent, donde resultou a vinculação do paciente ao dever de colaboração com o médico e o direito de obter deste o dever de prestar toda a informação sobre a natureza, características, técnicas a usar no exercício do acto médico, alternativas e riscos.

VII - A tese que advoga uma alteração das regras legais gerais do regime da efectivação da responsabilidade civil, designadamente, no segmento da repartição do ónus da prova, em caso de responsabilidade civil médica, para além de carência de apoio legal, de falta de suporte na realidade hodierna do exercício da medicina e no actual estado de elevação do estatuto do paciente tem, pelo menos, duas principais consequências negativas: um forte abalo na confiança e certeza do direito e uma sequente e quase inevitável prática de uma medicina defensiva.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I.

AA e BB intentaram contra CC e DD acção declarativa de condenação, com processo comum na forma ordinária, peticionando que os RR. fossem solidariamente condenados a pagar-lhes uma indemnização:

  1. A título de danos morais sofridos por EE pelo dano morte de € 240 000 e pelo período que antecedeu a morte de € 60 000; b) Pelos danos morais sofridos pelos AA. de € 150 000 para cada um; e c) Pelos danos patrimoniais causados à EE pela perda do direito de adquirir de € 150 000.

    Para tanto, alegaram, resumidamente: - Que a sua filha EE se decidiu submeter a uma lipoaspiração; - Que, na sequência de fármacos ministrados pelos RR. para actuação da anestesia local, a EE sofreu problemas cardíacos, vindo a falecer, três dias depois, no H. de S. José.

    - Que os RR. não dispunham no local dos meios adequados à reanimação; - Que os RR. Tardaram em chamar o INEM; - Que o R. CC se arroga a qualidade de cirurgião plástico, não o sendo; - Que os actos em causa tiveram lugar num consultório e não numa clínica, como indevidamente o local era designado; - Que a morte sobreveio em consequência destes factores; - Que a EE sofreu antes de morrer; - Que os próprios sofreram com a perda da filha.

    Os RR contestaram separadamente, impugnando o alegado pelos AA., no tocante à respectiva responsabilidade, considerando, em síntese, poder o R. EE praticar os actos para os quais se sentisse habilitado, estar o local devidamente equipado para a intervenção em causa, terem sido observados todos os deveres de cuidado e ter a EE falecido em consequência de um choque anafilático.

    Requereram ambos a intervenção principal provocada da seguradora "A... P... - C.a de Seguros, S.A.", com fundamento na circunstância de terem transferido para a esta a responsabilidade emergente da prática de actos da sua profissão, o que foi admitido, tendo a interveniente impugnado o aduzido pelos AA. no tocante à responsabilidade dos RR ..

    O processo foi saneado, fixaram-se os factos assentes por acordo das partes e por documentos dotados de força probatória plena e organizou-se a base instrutória, após o que se seguiu a instrução dos autos.

    Foi interposto recurso do despacho que indeferiu o depoimento de parte do R. DD à matéria indicada pelo co-réu CC, que foi admitido como de agravo, a subir com o primeiro que depois dele houvesse de subir imediatamente, com efeito devolutivo.

    Discutida a causa em audiência de julgamento (com gravação da prova testemunhal produzida) e decidida a matéria de facto controvertida, veio a ser proferida (em 5/6/2006) sentença final que Julgando a acção totalmente improcedente, por não provada, absolveu os RR. e a interveniente do pedido Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação da referida sentença, tendo a Relação assim decidido: Acordam os juízes desta Relação em conceder parcial provimento ao presente recurso de Apelação, revogando a sentença recorrida e condenando os Réus/Apelados CC e DD a pagarem, solidariamente entre si, aos Autores as seguintes quantias: a) a ambos os Autores/Apelantes, em conjunto, a quantia de € 49.879,79 (quarenta e nove mil, oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos), a título de indemnização pela supressão do direito à vida da filha de ambos; b) a cada um dos Autores a importância de € 49.879,79 (quarenta e nove mil, oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos), a título de indemnização pelos danos de natureza não patrimonial sofridos pelos mesmos com a morte da sua filha EE; c) juros moratórios, à taxa legal, sobre as quantias referidas em a) e b), desde a data da prolação do presente ares to.

    Julgam-se, porém, improcedentes os demais pedidos indemnizatórios deduzidos contra os Réus/Apelados pelos Autores/Apelantes, absolvendo-se aqueles dos mesmos pedidos Inconformados, pediram revista os RR., separadamente e, também os AA e a A.... ficando estes dois últimos pelo caminho, o primeiro , deserto por falta de alegações e o segundo por a recorrente não ser parte vencida na causa.

    O R DD alegou e concluiu:

  2. Os médicos (ora RR) obrigaram-se a prestar os melhores cuidados ao seu alcance, e não a um determinado resultado, agindo segundo as exigências da "leges artis" e com os conhecimentos científicos existentes, actuando de acordo com um dever objectivo de cuidado.

  3. A distinção entre cirurgia estética e reparadora efectuada não pode ser, no entanto relevante, no que aos presentes autos diz respeito, porquanto "A EE bradicardizou na sequência da sedação e do início da administração da anestesia local" e por "o pedido, como é evidente, não visar a indemnização dos A.A. pela não obtenção do resultado cirúrgico pretendido, mas por aquilo que efectivamente ocorreu, e que foi o falecimento da operanda" .

  4. Relativamente ao 1 ° R. a responsabilidade cai no domínio da contratual e quanto ao 2° R. no domínio da extracontratual, cabendo no domínio da responsabilidade civil extracontratual ao lesado provar que houve culpa do lesante e que o dano sofrido lhe é imputável (no. 1 do 487° do Código Civil).

  5. Os AA não provaram, como lhes competia, a culpa do R. DD, não podendo o ora recorrente ser responsabilizado pela morte da EE ter resultado de um comportamento seu activo ou omissivo, violando o acórdão recorrido o disposto nos artigos 483° nº 1 e artigo 487°, ambos do Código Civil.

  6. Pelo contrário, ficou ampla e exaustivamente demonstrado na sentença proferida pela 1ª Instância que a conduta do R. DD, como dos R. CC se pautaram pelo cumprimento de todas e quaisquer regras, agindo segundo as exigências da "leges artis" e com os conhecimentos científicos existentes, actuando de acordo com um dever objectivo de cuidado.

  7. O acórdão recorrido conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, atendendo a que não foram alegadas pelas partes, existindo excesso de pronúncia.

  8. O acórdão é nulo, dado que o Tribunal se pronunciou sobre matéria cujo conhecimento lhe estava vedado, violando o disposto no artigo 668° nº1 d) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 716 do C.PC.) e 664° e 264º do Código de Processo Civil.

  9. Correu termos pelo 1°JuÍzo Criminal de Lisboa, P Secção, o processo nº 23219/99.0TDLSB, no qual se visava apurar a eventual responsabilidade criminal do RR relativamente à intervenção efectuada a EE no dia 9 de Dezembro de 1999.

  10. Nos autos acima identificados ficou provado que "da matéria de facto provada não resulta que tenha existido qualquer actuação médica concreta integradora do conceito de negligência, em todos os seus critérios de avaliação, de forma a que se possa fazer uma imputação da morte a qualquer médico ou à omissão de qualquer actuação médica violadora da legis artis" j) Por sentença proferida no dia 11 de Abril de 2007, transitada em 15 julgado no dia 26-04-2007, os RR foram absolvidos da prática de um crime de homicídio por negligência (documento um).

  11. Ao abrigo do disposto artigo 706. ° do Código de Processo Civil deve esse documento ser junto aos presentes autos, atendendo a que a sua junção não foi possível até à presente data, atenta a data em que a sentença foi proferida e à data do respectivo trânsito em julgado.

    1) Ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 674°-B do Código de Processo Civil, a decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em...

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