Acórdão nº 617/06.0 TAPBL.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 18 de Fevereiro de 2009

Magistrado ResponsávelBR
Data da Resolução18 de Fevereiro de 2009
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Recurso n.º 617/06.0 TAPBL.C1 (344).

Processo Comum Singular n.º 617/06.0 TAPBL, do Tribunal Judicial de Pombal (3.º Juízo).

*Acordam, em conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

*I – Relatório.

1.1. No uso da faculdade concedida pelo artigo 16.º, n.º 3 do Código de Processo Penal (doravante CPP), o Ministério Público requereu a submissão a julgamento, sob a forma de processo comum singular, de J...

, entretanto mais identificado nos autos, imputando-lhe, com base nos factos relatados a folhas 115/122, a prática, em autoria material, de um crime de coacção grave, sob a forma tentada, previsto e punido através das disposições conjugadas dos artigos 22.º; 23.º; 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea c), por referência à alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º, todos do Código Penal (vulgo CP), bem como de um crime de difamação agravado, com publicidade, previsto e punido agora conforme as disposições conjugadas dos artigos 180.º, n.º 1; 183.º, n.º 1 e 184.º, também do CP, e por referência à mencionada alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º.

Recebida essa acusação e após normal tramitação processual, realizado o contraditório, foi proferida sentença determinando a absolvição do visado arguido pelo primeiro dos ilícitos apontados e a sua condenação pelo segundo deles, na pena de 220 dias de multa, à taxa diária de € 5,00.

1.2. Na não conformação com o veredicto assim prolatado, recorrem quer o Ministério Público, quer o arguido, extraindo das respectivas motivações as conclusões e pedidos seguintes: (o Ministério Público) 1.2.1. A discordância do recorrente (porquanto no mais se conforma com o decidido) funda-se apenas na circunstância de considerar que, para a emergência do crime de ameaça, não colhe o entendimento sufragado na decisão recorrida pela M.ma Juiz a quo sobre o critério objectivo-individual integrador do conceito de “mal importante”.

1.2.2. A propósito daquele ilícito, o Tribunal sindicado teve como assente que o arguido, no requerimento que efectuou ao ofendido A..., escreveu: “Caso o Sr. Procurador não tome as devidas providências para que esta situação termine de uma vez por todas serei obrigado a apresentar queixa contra si em Lisboa aos seus superiores hierárquicos.

Pede deferimento. O queixoso.” Deu-se também como provado que ao escrever tal, “pretendeu o arguido compelir o ofendido A... a alterar o despacho de arquivamento proferido pelo ofendido B..., o que, porém, não logrou conseguir.

O arguido sabia que A... era magistrado do Ministério Público em exercício de funções no Círculo Judicial de Leiria, e dirigiu-se a ele por causa dessas funções; Contudo, o mesmo A... não se sentiu intimidado com a conduta do arguido.” 1.2.3. Ora, a questão controvertida consiste em determinarmos se, para a verificação do ilícito, era mister, ou não, que a conduta do arguido tenha intimidado o ofendido.

A resposta, adianta-se, é negativa e implica a condenação do recorrido.

1.2.4. Citando Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, págs. 356 e segs. escreveu a M.ma Juiz a quo na decisão recorrida que “um critério orientador da definição concreta do mal importante é o da adequação da ameaça a constranger o ameaçado a comportar-se de acordo com a exigência do ameaçante. Isto é, só é mal importante aquele que, nas circunstâncias do caso concreto, seja susceptível ou adequado a fazer dobrar a vontade do ameaçado. O critério da importância do mal reconduz-se ao critério da sua adequação a constranger.

Em causa está, pois, um critério objectivo-individual: objectivo, na medida em que se apela ao juízo do homem comum; individual porquanto se têm de ter em conta as circunstâncias concretas em que é proferida a ameaça, designadamente as capacidades (económicas, mentais, etc.) do ameaçado individual.” 1.2.5. Concorda-se com tal ordem de considerações.

1.2.6. Com o que já não se concorda é que seja pelo facto de o ofendido A... ter referido em audiência que com o teor do requerimento do arguido não se sentiu intimidado, tal seja bastante para se ter o crime por não verificado.

1.2.7. O facto de o ofendido não se ter deixado intimidar pelo conteúdo da ameaça, e ter ficado imune a esta, releva apenas para a forma do crime: não consumação, mas tentativa.

1.2.8. Todavia, existe na mesma a ameaça com prática de mal importante, contrariamente ao defendido na decisão recorrida.

1.2.9. Aliás, é o próprio autor citado pela M.ma Juiz que naquela obra a fls. 358 e 359 refere: “Se a conduta… do sujeito passivo, isto é, do destinatário da coacção… foi livremente decidida ou devida a apelo de terceiros… e não consequência ou resultado directo da acção de coacção, isto é, do medo da concretização da ameaça (o que se verifica, quando o sujeito passivo estava decidido a não ceder às exigências comportamentais do coactor), não há consumação, mas apenas tentativa.” E a fls. 365: “Haverá tentativa punível, quando o destinatário da adequada… acção de coacção adopta um comportamento que objectivamente está conforme a imposição do coactor, mas não por medo da coacção, mas exclusivamente porque tal corresponde à sua vontade…”.

1.2.10. Era justamente este o caso dos autos, em que o visado com a conduta idónea a coagir não se deixou intimidar, estando sempre desde o início, decidido a manter a sua isenção e imparcialidade e a decidir de acordo com a lei e não de acordo ou por causa de qualquer ameaça com mal importante.

1.2.11. Decidindo como o fez, a decisão sindicada violou o disposto nos já citados artigos 22.º; 23.º; 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea c), por referência à alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º.

(o arguido) 1.2.12. A tomada de declarações às testemunhas realizou-se, em simultâneo com a audiência, com recurso à videoconferência junto do Tribunal Judicial de Leiria.

1.2.13. Atento o disposto no artigo 318.º, n.º 6, do CPP, compete ao Juiz da Comarca a quem a diligência foi solicitada praticar os actos referidos na primeira parte da alínea b) e nas alíneas d) e e), do artigo 323.º e n.º 3, do artigo 348.º, nomeadamente o acto de receber os juramentos e o acto de perguntar às testemunhas pela sua identificação, pelas suas relações pessoais, familiares e profissionais com os participantes e pelo seu interesse na causa, entre outros.

1.2.14. Assim, de acordo com o disposto no citado normativo legal, no caso vertente, competia ao Juiz da Comarca de Leiria praticar tais actos.

1.2.15. Ora, in casu, verifica-se que tais actos foram todos praticados pela própria M.ma Juiz a quo.

1.2.16. O que comina o acto com o vício de nulidade, ou, ao menos, da irregularidade prevista no artigo 123.º do mesmo diploma.

1.2.17. Impondo que, no reconhecimento de um desses vícios, se ordene a repetição do depoimento das testemunhas, ou, mesmo, de toda a audiência, dando-se sem efeito os actos subsequentes já praticados.

1.2.18. Nos termos do artigo 180.º, n.º 1, do CP, pratica o crime de difamação “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo.” 1.2.19. A honra é um bem jurídico complexo, que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada individuo, radicado na sua dignidade, quer a sua manifestação exterior reputação ou consideração, traduzida na estima e respeito que a personalidade de alguém infunde aos outros e que vai sendo adquirida ao longo dos anos (probidade e lealdade de carácter).

1.2.20. O sentimento médio da honra da comunidade deve constituir o critério (objectivo) à luz do qual deve ser aferida a tipicidade/ gravidade das ofensas a este bem jurídico: “ofensivo da honra e consideração (...) é aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores (…). Aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não considera difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena.” (Beleza dos Santos, Algumas considerações sobre Crimes de Difamação e de Injuria, RLJ, Ano 92/165 e 166).

1.2.21. Nesse sentido, decidiu o Acórdão da Relação de Évora, de 2/7/96, CJ 96, IV, 295, que um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sócio/moral da pessoa, da sua honra e consideração.

1.2.22. Deste modo, “nem todo o facto que envergonha ou perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos artigos 180.º e 181.º, tudo dependendo da “intensidade” da ofensa ou perigo de ofensa. (Oliveira Mendes, O direito à honra e a sua tutela penal, 37).

1.2.23. Constituindo a mais intensa das restrições que, neste âmbito, o Tribunal tem ao seu dispor, a reacção penal deverá pautar-se por critérios de estrita necessidade e proporcionalidade, sob pena de desincentivar o cabal exercício de tais liberdades fundamentais.

1.2.24. Nesta perspectiva, como reiteradamente vêm decidindo os nossos tribunais e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, aqueles que exercem cargos com relevância/expressão pública têm um qualificado dever de suportar as criticas inerentes à sua actividade, por muito duras – ou mesmo infundadas – que sejam. Salvo nos casos em que sejam notoriamente gratuitas ou infundadas, a eles cabe, na primeira linha, convencer do infundado das criticas, não podendo nunca subtrair-se ao debate público por via da ameaça – contra quem divulgue irregularidades no funcionamento das instituições – com o jus puniendi do Estado.

1.2.25. Sobre o critério que permite compreender quando é que a “crítica exagerada, mesmo chocante” (que, só por si, não é merecedora de tutela...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT