Acórdão nº 303/2002.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 07 de Maio de 2014

Magistrado ResponsávelLOPES DO REGO
Data da Resolução07 de Maio de 2014
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. AA intentou acção declarativa, na forma de processo ordinário, contra BB, CC, DD, EE, FF, GG e HH, alegando, em síntese que foi caseiro da Quinta ..., propriedade pertença de II, mãe, avó e sogra dos RR., já falecida, tendo efectuado diversos pagamentos por conta das despesas da mesma quinta, em substituição dos seus patrões; com a intenção de pagar a dívida ao Autor foram assinadas e emitidas 4 letras que acabaram por não ser pagas, encontrando-se o valor de € 15.525,00, por si adiantado, por pagar.

Conclui pedindo que sejam os Réus condenados, solidariamente, a pagar ao autor essa quantia, acrescida de juros vincendos à taxa legal até ao pagamento efectivo.

Citados os Réus, apresentaram, alguns deles, contestação pugnando pela improcedência da acção.

Por morte do R. CC, foram habilitados a prosseguir na acção na sua posição JJ e KK.

Lavrado despacho no sentido de convidar o Autor a aperfeiçoar a petição inicial, veio o mesmo fazê-lo de forma extemporâneo, não tendo, pois, o articulado apresentado sido admitido - e tendo transitado em julgado tal decisão.

Na audiência preliminar , conheceu-se imediatamente do mérito da causa, sendo proferida decisão a julgar a acção improcedente, absolvendo-se os Réus dos pedidos contra si formulados. Não se conformando com tal decisão, apelou o Autor , tendo a Relação – após considerar insubsistentes as nulidades arguidas - negado provimento ao recurso.

Após analisar o conceito de causa de pedir e o nível de densificação ou concretização exigível quanto aos factos que a preenchem, considerou a Relação, no acórdão ora recorrido: Postos estes princípios orientadores e respigando o conteúdo factual vertido na petição inicial, dúvidas não existem de que a causa de pedir, recortada nos termos sobreditos, não está suficientemente caracterizada.

O fundamento da acção estribou-a o Autor dizendo que, em substituição da proprietária da quinta para quem trabalhava, efectuou vários pagamentos (electricidade, água, fornecedores etc.).

Veja-se, então, o que a este respeito o Autor alegou na petição inicial: – O autor enquanto assalariado agrícola, era caseiro, ouvia reclamações de todos os lados; - Às tantas o autor foi pedir dinheiro a vários amigos e foi liquidando débitos da responsabilidade da falecida II e dos seus filhos LL, BB aos assalariados agrícolas sob a sua responsabilidade; – E começou a pagar a fornecedores e a liquidar facturas da electricidade, água, telefone e outras; – O autor é pessoa simples do campo e faz um esforço muito grande para escrever o seu nome; – É homem pobre, humilde e de poucas letras; – Os RR tal como a mãe, avó e sogra II são gente de fortuna, da alta burguesia e pessoas com cultura; – Com a intenção de pagar a dívida ao autor, a falecida II preencheu, assinou, emitiu e entregou ao autor quatro letras, conforme documentos juntos ( fls 7, 8, 9 e 10 juntos aos autos; – Com a entrega de tais letras pretendia a falecida II e o aceitante LL liquidar o débito ao autor AA; – O autor ainda tentou descontar algumas letras no banco, mas voltaram tal como entraram; – O débito da falecida ao autor é de onze mil quinhentos e vinte e cinco euros; – A falecida devia liquidar o débito na data do vencimento das letras; – Avisada para pagar, pessoalmente e por cartas, não pagou; – Os juros vencidos atingem os quatro mil euros (artigos 9º a 20º da petição inicial).

Ora, perante este quadro factual como dizer que a causa de pedir está devidamente fundamentada? O Autor não especifica factualmente: - quando pagou; - a quem pagou; - o que pagou; - e quanto pagou? Na verdade, a alegação do Autor é vaga e abstracta.

É que não basta alegar, de forma conclusiva, que efectuou diversos pagamentos, é necessário alegar um continente factual que englobe as perguntas supra formuladas.

Perante esta alegação conclusiva o Autor foi convidado a suprir tais insuficiências na concretização da matéria de facto, por o tribunal recorrido ter entendido que a petição inicial não sofria do vício da ineptidão.

O Autor respondeu a este convite. Todavia, por ter sido apresentado extemporaneamente, não foi considerado o novo articulado apresentado tendo, então, a Srª juiz do processo proferido decisão nos termos já referidos.

Diz, porém, o recorrente, que apesar de não ter sido considerado o novo articulado, ainda assim, a causa de pedir está bem configurada e sustentada nos documentos juntos com a petição inicial, nomeadamente, nas letras juntas aos autos como documentos nºs 7 a 10, razão pela qual se impunha o seu prosseguimento.

(…) Todavia, a junção dos documentos feita pelo Autor com a petição inicial assume contornos diferentes que importa escalpelizar.

Na verdade, os documentos em causa referem-se a quatro letras, todas já prescritas.

Ora, a questão que agora se coloca é se tais letras mesmo prescritas e, portanto, como meros quirógrafos, não representam o reconhecimento unilateral de dívida.

Vejamos: Dispõe o nº 1 do artigo 458.º do C.Civil que “se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”.

Almeida Costa[1] refere, a este propósito, que “a lei consente que, através de acto unilateral, se efectue a promessa de uma prestação ou o reconhecimento de uma dívida, sem que o devedor indique o fim jurídico que o leva a obrigar-se, presumindo-se a existência e validade da relação fundamental. É consagrada, todavia, uma simples presunção, pelo que a prova em contrário produzirá as consequências próprias da falta, ilicitude ou imoralidade da causa dos negócios jurídicos”.

Trata-se aqui de uma presunção de causa (presunção da existência de uma relação negocial ou extra negocial) e de inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental.

Embora sabendo que a questão não é pacífica[2], entendemos que a letra nestas condições não importa o reconhecimento de uma dívida.

Na verdade, enquanto mero documento particular, apenas nela se descortina uma ordem do sacador ao sacado para que lhe pague a si determinada quantia, não importando a mesma a constituição ou reconhecimento de qualquer outra obrigação pecuniária.

É certo que, as letras, as livranças e os cheques não deixam de ser documentos particulares que contêm a assinatura do devedor.

Acontece que, se deixa de existir a obrigação cambiária qua tale então o que fica é apenas um quirógrafo nela não estando impressa aquela constituição ou reconhecimento de dívida, o que temos é o simples escrito particular assinado pelo devedor.

Conclui-se, por isso, que a letra, enquanto mero quirógrafo, não tem força bastante para importar, por si só, a constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária.

Desvinculada da sua eficácia cambiária, não pode a letra ser qualificada como documento consubstanciador do reconhecimento de uma obrigação pecuniária, donde decorre que a letra, enquanto mero documento particular ou quirógrafo, apenas servirá como um meio de prova da relação fundamental, que terá de ser demonstrada pelo credor na acção.

Assim, no caso de esse documento não valer como letra, enquanto quirógrafo não importa constituição de qualquer obrigação pecuniária entre sacador e sacado, pois que, a obrigação pecuniária constituída que importava era a proveniente da vinculação cambiária.

Do que se trata, agora, é tão-somente da relação fundamental que não foi constituída pela letra e que não pode obviamente considerar-se constituída pelo seu quirógrafo.

Estamos, no caso da letra, face a um negócio abstracto; a abstracção significa que “a causa é separada do negócio cambiário, decorre, não dele próprio, mas de uma convenção subjacente, extra-cartular: a convenção executiva em conexão com a relação fundamental. Daí que, estando a causa fora da obrigação cambiária (abstracção), esta seja vinculante independentemente dos possíveis vícios da sua causa e por isso se tornam inoponíveis ao portador mediato e de boa fé as excepções causais”.

[3] Esta separação da causa não permite concluir que, na base da emissão da letra, se encontra uma relação fundamental em que o emitente é o devedor. Assim será na maioria dos casos, mas não é certo que assim seja sempre Por isso, nos negócios abstractos, a emissão da letra...

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