Acórdão nº 5255/11.2TCLRS.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 13 de Maio de 2014

Magistrado ResponsávelGARCIA CALEJO
Data da Resolução13 de Maio de 2014
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I- Relatório: 1-1- AA e mulher, BB instauraram na 1a Vara Mista da Comarca de Loures, contra CC e mulher, DD, a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que se declare a nulidade do contrato-promessa de compra e venda de imóvel, descrito, sob o nº ..., na Conservatória do Registo Predial de Odivelas (freguesia de Famões), celebrado no dia 17 de Setembro de 2009, e que os RR. sejam também condenados na devolução de todas as quantias pagas no âmbito desse contrato e ainda no pagamento da quantia de € 4.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

Fundamentam este pedido, em síntese, dizendo que celebraram entre si tal contrato-promessa tendo entregue, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 36 000,00, com o remanescente, no valor de € 38 400,00, a ser pago até 15 de Junho de 2011; entretanto, constaram que tinham sido ludibriados, pois o prédio, estando inserido numa área de génese ilegal, era impossível de ser transaccionado, sendo o contrato nulo, o qual, de resto, também não contém a certificação, pelo notário, da existência da licença de utilização; e com esta situação, que lhes frustrou o projecto de vida familiar, que passava pela aquisição de um lar para si e a filha, ficaram profundamente traumatizados, magoados e ofendidos.

Os RR., pessoal e regularmente citados, contestaram a acção, alegando, designadamente, que os AA. conheciam a situação do prédio, que foi determinante do preço fixado, não havendo motivo para a declaração de nulidade do contrato, que consubstanciaria uma situação de abuso do direito e concluíram pela sua absolvição do pedido.

O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido o despacho saneador, após o que se fixaram os factos assentes e se organizou a base instrutória, se realizou a audiência de discussão e julgamento, se respondeu à base instrutória e se proferiu a sentença.

Nesta julgou-se a acção improcedente, absolvendo-se os RR. do pedido.

1-2- Inconformados com a sentença, recorreram os AA. de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo-se aí julgado parcialmente procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, declarando-se a nulidade do contrato-promessa com condenação dos RR. a restituírem aos AA. a quantia de € 36.000,00. 1-3- Irresignados agora com este acórdão, dele recorreram o RR. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.

Os recorrentes alegaram, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões: 1ª- As questões primordiais a decidir serão as de saber se se verificou algum vício na formação da vontade dos AA., ora recorridos, em contratar, designadamente por os RR., aqui recorrentes, não terem actuado com os ditames da boa fé nos preliminares e na conclusão do negócio, e se o contrato celebrado entre AA. e RR. padece de alguma nulidade.

2ª- E a existir esse vício, se a sua invocação pelos AA. constituiu abuso de direito.

3ª- E, finalmente, saber se o negócio é susceptível de conversão, como defendem os RR.

4ª- No caso dos autos, está provado que nem os RR. promitentes vendedores foram enganados, nem os AA. promitentes compradores pretenderam enganar aqueles. Quer o contrato promessa quer os sucessivos aditamentos são bem demonstrativos da boa fé dos ora recorrentes.

5ª- O contrato promessa celebrado foi o contrato que as partes conscientemente quiseram celebrar como é reconhecido no acórdão recorrido que se transcreve: "Embora os promitentes-compradores tivessem consciência da natureza do prédio prometido vender, sem alvará de loteamento e sem licença de utilização ou de construção, face às declarações constantes do contrato-promessa, e, por isso, não podiam ser enganados...

" 6ª- A invalidade do contrato-promessa, por si só, não é motivo suficiente para concluir que existe obrigação dos ora recorrentes restituírem o que receberam pois, 7ª- A nulidade em questão é uma nulidade atípica, visto que não é invocável por terceiros, nem pode ser conhecida oficiosamente pelo Tribunal.

8ª- Essa nulidade pode ser arguida pelo promitente comprador, destinatário da norma protectora, embora excepcionalmente, a parte final do nº 3 do art. 410° do Código Civil confira ao promitente vendedor a faculdade de invocar a omissão dessas formalidades, quando a mesma tenha sido causada, culposamente, pela outra parte.

9ª- Admitida a nulidade do contrato por falta da certificação da licença de utilização, importa saber se os AA., ora recorridos, podem invocar essa nulidade sem incorrer em abuso de direito, na modalidade de "venire contra factum proprium" .

10ª- Nos termos do art. 334º do Código Civil "é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

" 11ª- O conceito da boa fé, constante do art. 334º do Código Civil está em conexão com as exigências fundamentais da ética jurídica, "que se exprimem na virtude de manter a palavra e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do círculo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos" como ensina Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações. Portanto, um direito ainda que legítimo, não pode ser exercido de forma arbitrária, mas antes de um modo equilibrado, moderado, lógico e racional.

12ª- Os AA, ora recorridos celebraram um contrato promessa relativo ao imóvel dos autos, onde habitavam há alguns anos e sabedores de todas as vicissitudes do mesmo, e tentaram fazer crer aos RR., ora recorrentes, que estavam de boa fé no negócio, pedindo e sendo-lhes concedidas várias prorrogações e aditamentos.

13ª- Sabendo de tudo e vindo agora pretender o exercício do direito de invocar a nulidade do contrato, fere de tal modo o sentido ético-jurídico que deve nortear os comportamentos das partes contratantes e, necessariamente, impõem a conclusão de que se verifica um abuso de direito, na modalidade de "venire contra factum proprium".

14ª- É, assim inaceitável, à luz dos princípios ético-jurídicos aplicáveis e da tutela da confiança que os AA. venham agora desistir do negócio sem qualquer razão compreensível para tanto, prevalecendo-se de uma invalidade formal, cuja existência durante anos não os impediu de assumir comportamentos que levavam a concluir que não pretendiam prevalecer-se dessa mesma invalidade.

15ª- Há pois que concluir que não se verificou qualquer erro na formação da vontade dos AA. ao contratar, nem os RR. actuaram ao arrepio das boas e leais práticas nos preliminares e na celebração do contrato. Pois estando os AA. na posse de todos os elementos, tendo contratado de livre e espontânea vontade, insistindo nessa expressa vontade nos sucessivos aditamentos, seria de esperar que agissem em conformidade.

16ª-...

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