Acórdão nº 871/05.4TBMFRE.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 14 de Janeiro de 2014

Magistrado ResponsávelMARIA CLARA SOTTOMAYOR
Data da Resolução14 de Janeiro de 2014
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

I – Relatório AA, Companhia de Seguros, S.A., intentou acção declarativa, com processo comum, sob a forma sumária, contra BB - …, S.A., pedindo a condenação da ré a pagar à autora a quantia de € 7.627,90, acrescida de juros de mora à taxa legal, estabelecida para os juros comerciais, até efectivo e integral pagamento. Alegando, para tanto e em suma, que, no exercício da sua actividade, celebrou com CC um contrato de seguro do ramo automóvel, pelo qual assumiu o risco de responsabilidade civil por danos emergentes da circulação do ligeiro de passageiros com a matrícula -LQ, bem como as coberturas facultativas de danos próprios. Ora, no dia 15-10-2003, ocorreu um acidente de viação envolvendo o referido veículo, conduzido pelo CC, ao Km 20,150 da auto-estrada n.º 8, no Concelho de Mafra, sentido Norte-Sul. Consistiu o acidente em despiste e consequente embate nos rails de protecção do separador central. Resultaram de tal embate danos vários, cuja reparação montou a € 6.664,00, que a autora pagou, para além de ter facultado ao segurado um veículo de aluguer durante os 8 dias que durou a reparação, com o que despendeu € 963,90.

O referido despiste ficou a dever-se à circunstância de o LQ ter perdido a aderência ao solo, devido ao extenso lençol de águas pluviais que se encontravam acumuladas na via. Pois a ré, concessionária da exploração e conservação daquela auto- estrada, não zelara pelo escoamento das águas da chuva.

A autora está assim sub-rogada no direito do seu segurado, e no confronto da ré, responsável pelo sinistro.

Contestou a ré, por impugnação, deduzindo ainda incidente de intervenção acessória provocada da Companhia de DD, S.A., para a qual alega ter transferido a sua responsabilidade por quaisquer indemnizações que lhe sejam exigidas em resultado de acidente decorrente das actividades relacionadas com a exploração e conservação do lanço da A8 em causa nos presentes autos. Por despacho de folhas 132-134, foi deferida a requerida intervenção e ordenada a citação da chamada, que contestou, por impugnação, invocando ainda a existência de franquia no valor de € 7.500,00 por sinistro, o excesso de velocidade do LQ, assim causal do despiste, e o indevido valor da taxa de juros peticionada.

O processo seguiu seus termos, com saneamento e condensação. Na audiência final, veio a ser oficiosamente suscitada a questão da incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, para conhecer do pedido, concedendo-se prazo às partes para se pronunciarem a propósito. O que aquelas fizeram, sustentando a autora a competência material do tribunal comum e atribuindo a ré tal competência aos tribunais administrativos.

Na sequência do que foi proferido o despacho de folhas 222-225, declarando o tribunal a quo “absolutamente incompetente em razão da matéria para julgar o presente litígio” e absolvendo “consequentemente (. . .) as RR. da presente instância”.

Inconformada, recorreu a autora para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, através de acórdão de 31 de Janeiro de 2013, decidiu julgar a acção procedente, revogar a decisão recorrida e reconhecer competência, em razão da matéria, ao Juízo de Pequena Instância Cível da Comarca da Grande Lisboa - Noroeste, Mafra.

É contra esta decisão que a ré agora se insurge, mediante recurso de revista, em que formula as conclusões que se passam a transcrever: A autora apresentou contra-alegações, em que pugna pela improcedência do recurso e pela confirmação do acórdão recorrido.

A) As empresas privadas concessionárias de bens públicos substituem a Administração nas relações com os particulares e actuam como se fossem entidades públicas.

B) No que se refere às acções de responsabilidade civil, há sempre um nexo funcional com a Administração Pública, sempre que empresas privadas prossigam uma função administrativa.

C) Com a reforma do contencioso administrativo, alterou-se, no âmbito da responsabilidade extracontratual, o critério determinante da competência material entre jurisdição comum e jurisdição administrativa, que deixou de assentar na clássica distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada.

D) A jurisdição administrativa passou a abranger a responsabilidade das pessoas colectivas de direito privado às quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

E) Qualquer que seja o entendimento deste Tribunal em relação à natureza da alegada responsabilidade da Ré, ora Recorrente, os tribunais administrativos serão sempre os competentes para conhecer do presente litígio.

F) São-no, desde logo, ao abrigo do que dispõe o artigo 1.º do ETAF, porquanto o presente litígio emerge de uma relação administrativa.

G) Porém, entendendo-se que a situação conflui para a aplicação do regime de responsabilidade obrigacional, deverá considerá-la como integrando a previsão normativa da primeira parte da alínea f) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF; H) Se a situação em apreço se subsumir no instituto da responsabilidade cível extracontratual, então deverá aplicar-se a alínea i) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, por reporte do artigo 1.º, n.ºs 1, 2 e 5 da lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro; I) Ou ainda antes da sua vigência, por aplicação directa da alínea f) do n.º1 do 4.º etaf, considerando, até em coerência com a alínea d) deste preceito legal, que possa ser aplicável o referido regime substantivo de direito público do Estado à responsabilidade pelo exercício de poderes públicos por concessionários e por entes privados de mão pública; J) Ficando assim integrados na jurisdição administrativa os litígios sobre responsabilidade extracontratual desses sujeitos privados (e seus servidores) por danos resultantes de acções e omissões de gestão pública.

K) A competência em razão da matéria dos tribunais é determinada pela forma como o autor configura a acção na sua dupla vertente de pedido e da causa de pedir.

L) Por outro lado, a competência dos tribunais da ordem judicial é meramente residual (cfr. artigos 66.º do Código de Processo Civil e 18.º, n.º1 e 22.º, n.º 1 da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e ainda artigo 5.º, n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).

M) Na petição inicial, a ora Recorrida sustenta que o contrato de concessão celebrado entre o Estado e a Recorrida tem eficácia externa, sendo-lhe aplicável o regime dos arts 443.º e seguintes do Código Civil.

N) Os tribunais administrativos são os competentes por aplicação do artigo 4.º, n.º 1, alínea f), do ETAF, uma vez que a presente acção, no entendimento perfilhado pela Recorrente, suscita questões relativas à interpretação e execução de contrato sujeito ao direito público e em que uma das partes é uma concessionária que actua no âmbito da concessão e que está expressamente sujeita a regime de direito público.

O) O acórdão recorrido não fundamenta o motivo pelo qual considera estar desde logo afastada a competência dos tribunais administrativos.

P) O Acórdão recorrido veio invocar a Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, qualificando-a de interpretativa.

Q) Tal entendimento não pode ser acolhido.

R) A lei interpretativa consiste na lei que realiza a interpretação autêntica.

S) Para termos uma interpretação autêntica, é “necessário que a nova lei tenha por fim interpretar a lei antiga. Não basta pois que em relação a um ponto duvidoso surja uma lei posterior que consagre uma das interpretações possíveis para que se possa dizer que há interpretação autêntica” (Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e teoria Geral, 10.ª Edição, pág. 561).

T) A lei interpretativa pressupõe, pois, uma lei interpretanda, não existindo, in casu, lei ou norma que a legislação de 18 de Julho tenha vindo interpretar.

U) Com efeito, debatiam-se na Doutrina e na Jurisprudência inúmeras teorias, de acordo com as quais eram aplicáveis preceitos tão díspares quanto o art. 483.º, o art. 493.º, o art. 798.º, os arts 443.º e seguintes do Código Civil, entre outros.

V) O legislador, através do artigo 12.º do Diploma Legal acima referido, estabeleceu o ónus da prova a favor do utente da auto-estrada, apenas quanto a certas causas de acidentes rodoviários e desde que a causa seja verificada no local por autoridade policial competente.

X) Pelo que se trata de uma lei inovadora, porque resolve o conflito em termos diferentes, no sentido de renovar a posição antes assumida pela jurisprudência e doutrina.

Y) Não sendo interpretativa, a Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, não pode aplicar-‑se ao caso em crise nestes autos, porquanto apenas entrou em vigor no dia 19 de Julho de 2007 (cfr. artigo 14.º deste Diploma Legal) e as suas disposições não podem ser aplicadas retroactivamente..

Z) A responsabilidade civil é regulada pela lei vigente à prática do facto gerador da responsabilidade, não podendo, pois, aquele Diploma Legal aplicar-se a um acidente ocorrido em 15 de Outubro de 2013.

A

A) Sem conceder, mesmo que se acolhesse o entendimento de que a Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, tem natureza interpretativa, sendo aplicável ao caso sub iudice, o que apenas se admite por dever de patrocínio, a referida Lei encontra-se ferida de inconstitucionalidade, por violar diversos preceitos da Constituição da República Portuguesa.

BB) Com efeito, a referida lei viola o princípio da separação dos poderes e interdependência dos órgãos de soberania e o estatuto constitucional do Governo, previstos nos arts 111.º e 182.º e seguintes da Constituição da República Portuguesa.

CC) viola ainda o art. 62.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, uma vez que se atingem situações pré-constituídas em termos expropriativos e sem compensação.

EE) Por último, a responsabilização objectiva que é consagrada neste artigo 12.º não tem qualquer...

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