Acórdão nº 962/09.2TBABF.E1.S2 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 02 de Dezembro de 2013

Magistrado ResponsávelMARTINS DE SOUSA
Data da Resolução02 de Dezembro de 2013
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: I.

AA, cidadã de nacionalidade britânica, portadora do Bilhete de Identidade n.º …, emitido, em 28-05-2003, pelas autoridades competentes do Reino Unido, veio intentar a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra o Estado Português, pedindo que o réu (R.) seja condenado a pagar-lhe o montante de € 75 602,94 (setenta e cinco mil seiscentos e dois euros e noventa e quatro cêntimos) a título de indemnização pelos prejuízos resultantes da sua detenção e prisão ilegal, acrescida dos juros à taxa legal que se vencerem a partir da citação e até efectivo e integral pagamento, bem como as custas, procuradoria e demais encargos legais.

Alega a A., para tanto e em síntese, que foi detida em 03-05-2008, em Munique (Alemanha), ao abrigo de um Mandado de Detenção Europeu, emitido no âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 422/99.8 TBABF, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Albufeira, tendo permanecido detida até 15-05-2008.

Considera que a detenção foi manifestamente ilegal porque: a) os crimes por que vinha acusada não admitiam prisão preventiva; b) mesmo que admitissem prisão preventiva, a mesma era desnecessária, desadequada e desproporcionada às finalidades processuais, tendo, aliás, sido considerada desnecessária em sede de interrogatório judicial; c) o fundamento da decisão de emissão do Mandado de Detenção Europeu era o art. 337.º, n.º 1 e o art. 336.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), que só permitia a sua detenção até 24 horas, nos termos da al. b) do n.º 1, do art. 254.º do CPP; d) o Mandado de Detenção Europeu não pode ser passado para a prestação de Termo de Identidade e Residência (TIR), sendo manifestamente desadequado, desproporcionado e desnecessário para obter o referido Termo, havendo outro que é próprio para essa finalidade – a Carta Rogatória – sendo interpretação contrária manifestamente violadora do disposto nos arts. 18.º, n.º 2, 27.º e 28.º da Constituição da República Portuguesa (CRP); e), por fim, porque o procedimento criminal por todos os crimes que fundamentou a emissão de mandado se encontrava, há mais de um ano, prescrito.

Deste modo, a A. foi detida por facto relativamente ao qual a lei não permitia a detenção, conforme dispõe o art. 192.º, n.º 2, do CPP. Mesmo seguindo o entendimento de que se trataria de uma situação de prisão preventiva e não de detenção, sempre a mesma seria manifestamente ilegal por violação dos arts. 192.º, n.º 2, 193.º, n.ºs 1 e 2, 202.º, n.º 1, do CPP, e arts. 18.º, n.º 2, 27.º e 28.º da CRP, pois tratar-se-ia sempre de prisão preventiva ilegal, quer porque determinada por facto relativamente ao qual a lei não permite a aplicação de tal medida de coacção, quer porque o procedimento criminal quanto aos mesmos se encontrava prescrito.

Adicionalmente, a A. alega os danos sofridos em virtude da detenção.

O Estado Português contestou a acção, invocando, em síntese que, até à entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29-08, era admissível a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva a crimes com pena de prisão superior a três anos, e, como tal, aos crimes imputados à arguida, sendo que a partir da entrada em vigor daquela lei, ainda assim podia ser aplicável à arguida a medida de coacção de permanência na habitação, pelo que mesmo com a actual redacção do art. 202.º do CPP, era admissível a emissão de mandados de detenção, quer a nível nacional, quer europeu, sendo concebível a aplicação à arguida de todas as medidas de coacção com excepção da prisão preventiva.

Para além disso, decorre do art. 254.º do CPP que a detenção pode ter lugar independentemente de o crime admitir ou não prisão preventiva, sendo que, nos termos da al. a) do citado preceito, a detenção visa assegurar, no prazo de 48 horas a apresentação do arguido para julgamento em processo sumário ou para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de medida de coacção.

No caso concreto, estavam reunidos os pressupostos do art. 257.º do CPP visto que, em face das diligências feitas no processo para determinar o paradeiro da arguida, era manifesto que a mesma não se apresentaria voluntariamente em juízo.

Os mandados de detenção emitidos foram-no ao abrigo do disposto no art. 337.º, n.º 1, do CPP, que remete para o n.º 2 do art. 336.º, o qual refere que para além da prestação de TIR, o mandado pode servir para aplicação de outras medidas de coacção, tendo por conseguinte, sido emitidos ao abrigo do art. 254.º, n.º 1, al. a), do mesmo código.

Para além disso, era admissível a emissão de Mandado de Detenção Europeu, de acordo com o estabelecido na Lei n.º 65/2003 e na Decisão-Quadro do Conselho de 13-06-2002, porquanto o mesmo visa, entre outros objectivos, a entrega, por um Estado membro a outro Estado membro, de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal, sendo que nada permite garantir ou assegurar que um detido através de Mandado de Detenção Europeu venha a ficar em prisão preventiva, pois que, em qualquer caso, devem ser ponderados os pressupostos dessa medida de coacção.

Acresce que, os prazos previstos no art. 254.º do CPP são prazos que apenas podem ser tidos em consideração depois de entregue o detido às autoridades portuguesas, na medida em que o Estado Português não pode ser responsabilizado pelo que ocorre no estado da detenção, sendo certo que por lei, os arguidos podem ficar detidos por 60 dias, prorrogáveis por mais 30 dias, prazos esses que foram aceites pelo Estado Português e, no caso, nenhum desses prazos foi ultrapassado.

Conclui o R. que, no caso concreto, os Mandados de Detenção Europeus foram validamente emitidos, de acordo com a legislação em vigor, e foram necessários dado que a arguida incumpriu as obrigações do TIR que prestou, inviabilizando a sua notificação e, sendo de prever que não se iria apresentar em juízo voluntariamente, não havendo, assim, obrigação de indemnizar por parte do Estado.

Por fim, alega ainda que, a revogação dos Mandados de Detenção foi acertada face à jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2008, pese embora, a prescrição do procedimento apenas tenha vindo a ser declarada por despacho posterior, como se impunha pela prudência inerente às decisões judiciais.

Finda a fase dos articulados, e dispensada a realização de audiência preliminar, foi proferido despacho saneador/sentença e conhecido de imediato o mérito da causa, tendo-se decidido, a final, julgar “totalmente improcedente a presente acção declarativa de condenação intentada por AA e, em consequência, (…) absolver o réu Estado Português, da totalidade do pedido contra si deduzido”.

Não se resignando com esta decisão, dela recorreu a A., para o Tribunal da Relação de Évora, tendo-se aí, decidido: “…negar provimento ao presente recurso de apelação, confirmando integralmente a sentença recorrida” .

* Inconformada com esta decisão, veio a A. interpor recurso de revista excepcional, para o STJ, ex vi do art. 721.º-A do Código de Processo Civil (CPC).

Apreciados os pressupostos específicos de admissibilidade de revista excepcional, pela formação de juízes a que se refere o n.º 3 daquele art. 721.º–A, foi ela admitida, ao abrigo da respectiva alínea a), tendo-se considerado que as questões em apreço “respeitantes à validade dos mandados de detenção europeus em que Portugal seja o Estado emissor, delimitação dos pressupostos e finalidades inerentes à sua emissão, e consequências da sua emissão indevida, nomeadamente no tocante a eventual responsabilidade extracontratual do Estado – são questões que, podendo cada vez mais ser suscitadas devido à maior facilidade de deslocação de cidadãos de diversas nacionalidades entre Estados da União Europeia, revestem extrema relevância jurídica e suscitam muitas dúvidas quanto à sua resolução por não se mostrarem ainda suficientemente estudadas e analisadas pela jurisprudência e mesmo pela doutrina, tanto mais que resultam de legislação relativamente recente relacionada com instrumentos comunitários e conexa com princípios de direito da União Europeia, a ponto de serem semelhantes a questões em estudo e discussão internacional.

* No final das alegações recursivas, a A. alinhou, além do mais e no que aqui releva, as seguintes conclusões: “(…) 28.° O presente recurso pretende igualmente evidenciar que foram violadas, pelo Tribunal que ordenou a detenção da recorrente, e em consequência, pelo Tribunal ora recorrido, várias disposições da lei processual penal que determinaram a prática de um acto ilícito gerador de responsabilidade extracontratual do Estado e, por conseguinte, a violação de normas substantivas.

  1. No caso concreto, importava aferir se a detenção e prisão sofridas pela recorrente advinham da prática de um acto ilícito emitido no desempenho da função jurisdicional e esta aferição deveria ter sido efectuada não só à luz dos preceitos legais, constitucionais e convencionais que regulam a matéria, mas bem assim mediante a necessária produção de prova, designadamente testemunhal, com vista ao cabal e justo esclarecimento do que efectivamente determinou a emissão do mandado de detenção europeu e de quais os danos efectivamente sofridos pela recorrente na sequência da detenção e prisão a que foi submetida.

  2. À semelhança do que sucedera com o Tribunal de 1.ª instância constatou-se um julgamento errado e precipitado por parte dos Venerandos Desembargadores da Relação de Évora quanto à matéria controvertida.

  3. A decisão tomada pelas duas instâncias coarctou o cabal exercício do contraditório processual, para além de não permitir a produção e análise da prova pessoal essencial à demonstração dos factos alegados pela recorrente na petição inicial.

  4. A admissibilidade de uma decisão de mérito no despacho saneador está condicionada à existência no processo de todos os elementos para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de Direito e não apenas tendo em vista a propugnada pelo juiz da causa...

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