Acórdão nº 3584/04.0TVLSB.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 03 de Outubro de 2013

Magistrado ResponsávelMARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Data da Resolução03 de Outubro de 2013
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça: 1. AA – …, Lda. (posteriormente, AA – …, Lda.) instaurou uma acção contra EDP – DISTRIBUIÇÃO ENERGIA SA, pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização de € 30.107,24 por danos patrimoniais, com os juros de mora que se vencerem até integral pagamento, e de € 50.000,00 por danos não patrimoniais.

Para o efeito alegou, em síntese, que em 8 de Março de 2004 ocorreu uma interrupção do fornecimento de energia eléctrica pela ré, em violação culposa do contrato entre ambas celebrado e que, em consequência dessa falha, foi forçada a parar o funcionamento da sua unidade fabril e impedida de satisfazer diversas encomendas; que uma das máquinas ficou danificada; que teve de realizar diversas despesas, nomeadamente com o envio para abate das aves que deixou de poder abater nas suas instalações, que teve custos adicionais e que perdeu vendas; e ainda que a sua imagem e prestígio foram abalados.

A ré contestou. Em resumo, alegou que, quando ocorreu a interrupção, procedeu imediatamente às diligências necessárias à detecção da avaria e à sua reparação, vindo a encontrar sucessivamente uma cegonha electrocutada, que foi removida, e um curto circuito na instalação de um outro cliente, que implicou o “seccionamento” da instalação e, posteriormente, um defeito num seccionador de difícil acesso; que actuou no mais curto espaço de tempo possível; que as linhas e equipamentos são submetidas a inspecções periódicas; e que as que agora estão em causa tinham sido inspeccionadas em Janeiro e Fevereiro de 2004.

Para além disso, objectou que a autora deveria ter instalado equipamento que minimizasse os riscos decorrentes de eventuais falhas de energia e impugnou os danos alegados e os demais pressupostos da obrigação de indemnizar; em particular, invocou a existência de caso fortuito ou força maior – “acção da cegonha” – e de intervenção de terceiro – “PT de cliente avariado”, enquanto causas legais de exclusão da sua responsabilidade.

A autora replicou.

A acção foi julgada parcialmente procedente, pela sentença de fls. 255. Apesar de ter entendido que se não poderia responsabilizar a ré por incumprimento culposo do contrato, a 1ª Instância considerou verificada uma situação de responsabilidade pelo risco, abrangida pelo artigo 509º do Código Civil, uma vez que não ocorreu nenhuma eventualidade que se pudesse qualificar como “caso de força maior ou caso fortuito”, tal como vem definido no Regulamento de Qualidade de Serviço e no nº 1 da cláusula 3ª do contrato-tipo de fornecimento de energia eléctrica, aprovado pelo Despacho nº 7952-A/2002 (Diário da República, 2ª Série, de 17 de Abril de 2002).

Assim, a ré foi condenada a pagar uma indemnização pelas despesas em que a autora “não teria incorrido não fora a interrupção do fornecimento de electricidade em causa nos autos”: € 10.520,81, com IVA, “a título de reparação do autómato, de transporte dos animais de um para outro local, de abate dos mesmos, de eliminação de resíduos e de refeições aos seus funcionários”, acrescido de juros de mora comerciais.

Ambas as partes recorreram; e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de fls. 402 concedeu provimento à apelação da ré, absolvendo-a do pedido, e julgou prejudicada a apelação da autora.

A Relação considerou que o pedido da autora tinha de ser analisado no âmbito da responsabilidade contratual, que “a electrocussão da cegonha na linha 3146 reun[ia] simultaneamente as condições de exterioridade, imprevisibilidade e irresistibilidade (inevitabilidade), sendo caso para se falar de caso fortuito ou de força maior e excluir a culpa da R. relativamente às falhas de fornecimento de energia eléctrica que a tiveram por causa” e, ainda, que a ré provou que “agiu de forma diligente, tendo desenvolvido os possíveis e adequados esforços para realizar a prestação devida, pelo que não poderão imputar-se os prejuízos sofridos pela A. a conduta culposa da R.”.

  1. A autora recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça; o recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, foi admitido como revista, com efeito devolutivo.

    Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões: A.

    A Recorrente discorda da decisão do acórdão do Tribunal a quo que julgou procedente o recurso apresentado pela Recorrida com fundamento no facto de esta não ter agido com culpa ao abrigo das disposições aplicáveis à responsabilidade civil contratual, nomeadamente o artigo 799.º do Código Civil, afastando assim a aplicação ao caso concreto do artigo 509.º do Código Civil.

    B.

    A questão da qualificação/concurso entre as responsabilidades contratual e extracontratual não possui uma solução linear na doutrina e na jurisprudência.

    C.

    De acordo com o o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Abril de 2005 (processo n.º 10341/2004-7) “a questão não é pacífica como se acentua na citada obra (13). Todavia, como bem se refere neste mesmo estudo (pag. 194) “não há dois danos distintos, nem há duas condutas diferentes, nem do ponto de vista naturalístico, nem no plano jurídico. O que há são dois regimes legais de protecção do lesado que prevêem tal conduta e visam reparar tal dano. Mas cada regime com a sua teleologia própria.” D.

    Existindo autores (vejam-se, neste particular, Vaz Serra, Rui de Alarcão e António Pinto Monteiro) que defendem a possibilidade de escolha ou de subsidiariedade entre ambas as responsabilidades, não estando prevista qualquer prevalência da responsabilidade contratual em relação à responsabilidade extracontratual.

    E.

    Ainda que se adopte a teoria da consumpção da responsabilidade extracontratual pela responsabilidade contratual, tal só se pode verificar na prática caso os requisitos desta segunda estejam cumpridos, sob pena de se verificarem situações em que, estando cumpridos os requisitos da responsabilidade extracontratual e já não da responsabilidade contratual, o responsável civil por danos provocados na esfera de outrem, seja totalmente isentado da sua responsabilidade.

    F.

    Caso se admitisse, sem mais, a doutrina da consumpção da responsabilidade civil extracontratual pela responsabilidade civil contratual, daí resultaria o total esvaziamento da responsabilidade objectiva prevista no artigo 509.º, n.º 2 do Código Civil, violando-se o princípio da responsabilidade objectiva e o disposto no artigo 60.º, n.º 1 da CRP.

    G.

    Pelo que só se poderá concluir que, no caso concreto, caso se considerasse não existir responsabilidade contratual da Recorrida, o que apenas por mero dever de patrocínio se admite, os danos causados à Recorrente deverão ser-lhe sempre imputados ao nível da responsabilidade extracontratual, com aquela concorrente.

    H.

    O critério jurídico primário para aferição da existência de responsabilidade da Recorrida quer ao nível contratual, quer ao nível extracontratual, está na existência ou não de causa de força maior ou caso fortuito, que se reconduz a um conceito unívoco com as características que são dadas a estes conceitos no âmbito da responsabilidade extracontratual.

    I.

    Nos termos do artigo 2.º. n.º 4 do RQS, são considerados casos fortuitos ou de força maior os que reúnam simultaneamente as condições de exterioridade, imprevisibilidade e irresistibilidade, não se consignando aí, ainda que exemplificativamente, quaisquer problemas com aves ou situações similares.

    J.

    Por coordenação com o conceito de força maior do Código Civil é pacificamente aceite que é necessário que os requisitos da exterioridade, imprevisibilidade e irresistibilidade estejam cumpridos para que possa haver exclusão da responsabilidade do fornecedor de energia eléctrica.

    K.

    O que não é, manifestamente, o caso dos autos, uma vez que a aterragem de pássaros nas linhas eléctricas e, em especial, de cegonhas, é um facto recorrente, evitável e relativamente previsível, como aliás reconhece, como princípio, o acórdão aqui recorrido.

    L.

    Em acórdão de 8 de Novembro de 2007, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que existem factos que, não obstante serem factos da natureza, são tidos como correntes e previsíveis na sua verificação, o que faz com que devam ser considerados como factos comuns e não causas de força maior: 5 - Uma rede de condução e entrega de energia eléctrica não pode localizar fora de si própria a existência normal de trovoadas e de raios que, por isso, não podem dizer-se independentes do seu funcionamento e utilização, embora exteriores a ela. 6 – E, por isso, não preenchem o conceito de causa de força maior tal como o define o nº2 do art.509º, como excludente da responsabilidade objectiva prevista no nº1 do artigo.” M.

    Tal como na exploração de uma rede eléctrica se assume como consequência necessária a ocorrência de descargas eléctricas provocadas por raios, também se assumirá como estando correlacionada com aquela rede o pousar de aves, particularmente cegonhas, nas linhas e nos postes, bem como a construção de ninhos nestes.

    N.

    Em suma, consideramos ser pacificamente aceite que certos factos da natureza são consequências necessárias da actividade levada a cabo pela Recorrida (vejam-se os exemplos dos raios e das aves como os mais manifestos desta ideia), sendo de rejeitar que possam ser considerados como exteriores à mesma.

    O.

    Não podendo aqui falar-se de factos exteriores à rede e, em consequência, independentes do seu funcionamento e utilização, nem tão-pouco de irresistibilidade uma vez que, como bem refere o acórdão supra mencionado, dificilmente se aceita que estes factos não possam ser evitados por uma empresa como a Recorrida.

    P.

    À falta de cumprimento dos elementos de exterioridade e inevitabilidade do conceito de força maior acresce que, conforme tem sido aceite pela jurisprudência, desde há muito tempo, e ao contrário do que refere o acórdão aqui recorrido, o apoio de pássaros nas linhas eléctricas não constitui uma causa de força maior, para efeitos do disposto no artigo 509.º do Código Civil: III – O mero poisar de um...

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