Acórdão nº 3225/12.2YXLSB-2 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 12 de Agosto de 2013

Magistrado ResponsávelPEDRO MARTINS
Data da Resolução12 de Agosto de 2013
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados: “A” Bank plc (= requerente) requereu a presente providência contra “B” (= requerida), para apreensão de veículo e respectivos documentos, ao abrigo do disposto no art. 15º do Dec.-Lei 54/75, de 12/02, alegando, em síntese e no que importa às questões colocadas neste recurso, que: A “C”, SA (= vendedor), vendeu à requerida um automóvel, reservando para si a propriedade do veículo até que fosse pago o empréstimo que a requerente fez à requerida e com o qual esta lhe pagou o preço do veículo. Depois, o vendedor transferiu a reserva da propriedade para a requerente e a requerida sub-rogou a requerente nos direitos do vendedor. Mais tarde a requerida deixou de cumprir as obrigações do empréstimo, pelo que a requerente resolveu o empréstimo, do que decorre o direito à restituição do veículo ao abrigo do DL invocado. Cita normas legais e acs. do TRL de 30/05/2006 (CJ.III.105) e 08/03/2007 (CJ.II.76) que apoiam a construção feita.

No despacho saneador, a providência foi julgada improcedente com base, em síntese, no seguinte: i) Tendo em conta o preceituado no art. 409/1 do Código Civil, apenas ao alienante é conferido o direito de resolução do contrato de compra a venda (com a consequente restituição do bem objecto desse contrato), com fundamento no incumprimento das obrigações estipuladas num contrato de compra e venda ou de falta de verificação da condição suspensiva convencionada entre as partes para a transmissão da propriedade do bem e perante as demais condições que permitam a resolução do contrato (neste sentido, cfr. Raúl Ventura, ROA, ano 43.º, p. 605, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, p. 176 e Luís Miguel Lima Pinheiro, A Cláusula de Reserva de Propriedade, 1988, pp. 17 e segs., 62 e 63, assim como os acórdãos do TRL de 22/05/2007 - 4139/2007-7, 14/12/2007 - 8993/2007-7, 15/04/2008 - 2596/2008-7 e 17/07/2008 - 6158/2008-7, com voto de vencido; todos na base de dados do ITIJ [a precisa identificação dos acórdãos invocados foi feita por este acórdão do TRL]).

ii) Pelo contrário, ao mutuante apenas assistirá o direito de exigir o cumprimento coercivo das obrigações pecuniárias assumi-das no contrato de financiamento (arts. 1142, 817 e 804 e segs do CC) ou o direito de resolver o contrato e exigir a restituição do que houver prestado, acrescido de indemnização pela frustração do contrato, nos termos dos arts. 1142, 432 e seguintes, 801 e 562 e seguintes do CC e do DL 359/91, de 21/09). Por conseguinte, na medida em que a requerente não alega a celebração de qualquer contrato de compra e venda do veículo, pelo qual tenha reservado para si a propriedade do mesmo até ao cumprimento das obrigações derivadas para o comprador ou até à verificação de qualquer outro evento, limitando-se a alegar a sua qualidade de mutuante, carece de fundamento a exigência de restituição do veículo.

iii) A convenção, em contrato de crédito ao consumo no qual não interveio o vendedor do bem - como é o caso dos autos - e nos termos da qual, em garantia do mútuo, a mutuante goza de reserva de propriedade, é nula, por incidir sobre objecto legalmente impossível – art. 280/1 do CC - já que não existe qualquer direito substantivo que atribuísse à requerente a propriedade sobre o bem.

iv) “O registo de reserva de propriedade a favor de entidade que apenas intervém numa operação de financiamento para aquisição de veículo e que, nessa medida, é terceiro relativamente ao negócio de aquisição do veículo, viola as características elementares do instituto, deixando transparecer uma situação que mais se assemelha a uma hipoteca do que a um ónus de reserva de propriedade, ganhando contornos semelhantes aos da alienação fiduciária em garantia, vigente noutros sistemas, mas que não logrou ainda alcançar consagração legal entre nós” (ac. do TRL de 27/05/2003 - 4667-03) v) “O regime específico de apreensão de veículos automóveis apenas convive com o princípio de que essa faculdade radica na esfera do vendedor com reserva de propriedade e já não com a entidade financiadora, mesmo que lhe tenha sido transmitida a titularidade dessa reserva. Aliás, não seria compatível esta faculdade com a instauração da acção, a propor obrigatoriamente pela financiadora, para resolução do contrato de alienação, sendo que apreensão do veículo integra precisamente o primeiro passo no caminho da resolução desse contrato. (…) São realidades distintas e de efeitos diferentes o contrato de alienação com reserva de propriedade, que implica a transferência, sob condição suspensiva, da propriedade do veículo, e o contrato de mútuo que produz apenas a transferência para o mutuário da quantia entregue e em que a sua resolução implica o vencimento das prestações convencionadas, mas já não a restituição do veículo.” (ac. do STJ de 16/09/2008 - 08B2181; no mesmo sentido, ainda, os acs. do STJ de 02/10/2007, 10/07/2008 e de 31/03/2011). Ou seja, existiria o obstáculo formal resultante do art. 18, nºs 1 e 3, do mesmo diploma que fixa o nexo de instrumentalidade da providência não em relação à resolução do contrato de mútuo, mas sim em relação à resolução do contrato de alienação (invoca-se também o ac. do TRP de 15/04/2008 – 0821988).

vi) Contra isto, não serve de argumento a invocação do disposto no art. 6/3f) do DL 359/91 (relativo ao contrato de crédito ao consumo), pois o facto de se prever como cláusula dos contratos de crédito ao consumo “o acordo sobre reserva de propriedade”, não confere legalidade à sua estipulação a favor da entidade financiadora quando esta ocupa a posição de terceira relativamente ao contrato de alienação, pois tal disposição legal apenas se reporta às situações em que o pagamento do preço ao vendedor é diferido para momento posterior ao da entrega do bem, sendo este (o vendedor) o beneficiário da reserva de propriedade clausulada.

* A requerente interpôs recurso deste saneador-sentença, para que seja revogado, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (sintetizadas aqui): A) A reserva de propriedade foi constituída no âmbito do contrato de compra e venda e a favor do vendedor e não da requerente/mutuante; B) O efeito jurídico da transferência da propriedade ficou condicionado ao pagamento integral à requerente/mutuante das prestações acordadas no empréstimo, o que é previsto e permitido pelo art. 409 do CC (“até à verificação de qualquer outro evento”) – acs. do TRL de 22/06/2006 (4667/2006-6 ou 3629/2006-6) e do STJ de 12/09/2006 (06A1901); C) O que se passou é que a titularidade da reserva – da propriedade reservada - foi transmitida pelo vendedor à requerente/mutuante, o que é perfeitamente admissível, ao abrigo da liberdade contratual (art. 405/1 do CC); D) E a requerida/mutuária sub-rogou expressamente, no mútuo, nos termos dos arts. 588 e 591 CC, a requerente/mutuante nos direitos do vendedor, nomeadamente os decorrentes da reserva da propriedade; E) Pelo que não há qualquer nulidade na constituição da reserva da propriedade e tendo esta sido transmitida para a requerente, podia ela requerer a providência; F) O art. 18/1 do DL 54/75, ao estabelecer que o titular do registo de reserva de propriedade deve propor acção de resolução do “contrato de alienação”, deve ser lido tendo em conta a existência dos dois contratos conexos: a compra e venda e o mútuo e que a reserva de propriedade visa garantir, no caso, o cumprimento das prestações deste e não daquele, pelo que o contrato ali em causa é aquele cujo regular cumprimento se encontra garantido pela reserva de propriedade, ou seja, o mútuo [neste sentido, os acs. do TRL de 20/10/2005 (8454/2005-6); de 05/05/2005 (3843/2005-6); de 01/02/2007 (733/2007-6); de 30/05/2006 (CJ.III.105); de 22/06/2006 ((4667/2006-6); 26/01/2009 (decisão individual - 11279/2008-1); de 18/03/2010 (4847/09.4TBALM-A.L1-6); de 12/10/2010 (1129/10.2TBBNV.L1-1); e do STJ de 12/09/2006 (06A1901)].

Não foram apresentadas contra-alegações.

* A 11/07/2013 foi proferida uma decisão sumária/singular do tribunal da relação de Lisboa, julgando improcedente o recurso, com a seguinte fundamentação, sintetizada: I. A apreensão efectiva do veículo tem de ser pedida como medida antecipatória da restituição definitiva sequencial à resolução do contrato de compra e venda (art. 18/1 do DL 54/75), sendo por isso o regime jurídico desta providência cautelar incompaginável com os efeitos jurídicos da resolução do contrato de mútuo; assim, o art. 18/1 consubstancia um obstáculo formal ao uso da providência pelo mutuante; II. Entre a requerente e a requerida não foi celebrado qualquer contrato de compra e venda; III. A favor da requerente foi acordada a reserva da propriedade do automóvel, reserva de algo que a requerente nunca teve, pelo que não se está no âmbito do circunstancialismo previsto no texto do art. 409 do CC, mesmo que interpretado actualisticamente, sendo por isso nula a cláusula de reserva (art. 294 do CC); IV. Só o vendedor podia manter na sua esfera jurídica a propriedade que vendera, para efeitos de poder resolver o contrato e obter a restituição do veículo (art. 934 do CC); V. A lei não admite a cláusula da reserva a favor do mutuante; VI. Não houve declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de sub-rogação do mutuante nos direitos do credor; VII. O mutuante tem outras formas de se proteger não tendo necessidade de reservar a propriedade do automóvel; VIII. O art. 6/3f) do DL 359/91, de 21/09, não tem aplicação aos casos em que o vendedor não é o mutuante; * A requerente veio então requerer que sobre a matéria da decisão singular recaísse um acórdão da conferência.

* Questões que importa decidir: se no requerimento inicial constam os pressupostos necessários à procedência da providência cautelar requerida e se por isso o recurso devia ter sido julgado procedente.

* No tribunal recorrido e depois na decisão singular...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT