Acórdão nº 465-A/2002.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 23 de Setembro de 2008

Magistrado ResponsávelHENRIQUE ANTUNES
Data da Resolução23 de Setembro de 2008
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: 1.

Relatório.

A A....

CRL requereu, no processo de verificação do passivo do falido B....

, a adopção das medidas adequadas a evitar actos inúteis e futuros litígios entre os futuros adquirentes dos bens da massa falida e o credor hipotecário.

Fundamentou esta pretensão no facto de nunca ter sido citada para reclamar os seus créditos garantidos por hipoteca, constituída por terceiro, que onera dezassete prédios apreendidos para a massa falida, de o liquidatário judicial não os ter incluído na relação de créditos não reclamados e de existência provável nem a ter avisado para se pronunciar sobre a situação, de não ter sido observada o disposto na lei de registo, desconhecendo que as aquisições a favor dos devedores hipotecários haviam sido judicialmente anuladas, pelo que mantendo-se as inscrições de hipoteca em vigor, não vê como no processo se poderá vender os bens livres de ónus e encargos, sem que seja ouvida.

Ouvido sobre o requerimento, o Sr. Liquidatário Judicial observou que quando do registo da apreensão dos prédios, já se encontrava esgotado o prazo das reclamações de créditos, não lhe tendo sido possível proceder à notificação da requerente, credor cuja existência, até aquela data, desconhecia, que a segunda lista de credores de existência provável é meramente facultativa – mas que não colocará qualquer objecção ao reconhecimento e graduação do crédito daquela.

O falido declarou que concorda com a requerente; um dos credores – C....

– respondeu que os credores do falido foram citados por éditos publicados no DR de 24 de Setembro de 2003, tendo a A... reclamado o seu crédito, que foi verificado e graduado por sentenças de 3 de Maio e 24 de Maio de 2005, respectivamente, que a venda no processo de falência é feita livre de ónus ou encargos, e que a requerente, por decisão própria apenas reclamou os créditos que detinha sobre o falido, pelo que se houve erro, a si o deve, devendo, por isso, desatender-se a respectiva pretensão.

A A..., notificada do parecer do Sr. Liquidatário Judicial, requereu que se declarasse a lacuna da lei e se ordenasse a sua citação para reclamar os seus créditos.

Fundamentou a sua pretensão no facto de o CPEREF não prever a expressa e pessoal notificação do credor hipotecário para reclamar os seus créditos, sejam eles sobre o devedor, sejam eles sobre terceiro garante, de sem a sua admissão ao concurso de credores, os bens apreendidos não poderem ser transmitidos livres de ónus ou encargos e de a hipoteca não se destinar a garantir bens sobre o falido, mas sobre terceiro, razão pelo qual os não reclamou no tempo próprio.

Por despacho de 26 de Setembro de 2007, a Sra. Juíza de Direito indeferiu os requerimentos.

É este despacho que a D....

– que foi admitida a substituir-se à A..., entretanto extinta - impugna por via do recurso de agravo, pedindo a sua substituição por outro que lhe dê o direito a reclamar os seus créditos garantidos pela hipoteca de que é titular sobre os imóveis apreendidos, tendo cristalizado a sua discordância no tocante à decisão nele contida, nas conclusões seguintes: 1. Existindo registo de ónus real sobre os bens apreendidos, com registo prévio ao registo da apreensão, deveria ter sido ordenado o cumprimento do disposto no art. 178°, n° 2 do CPEREF aplicável e, por via disso, deveria ter sido dado cumprimento às leis do Registo Predial e legislação complementar, ao menos que fosse em obediência a uma interpretação correctiva/extensiva do citado art. 178°, n° 2 do CPEREF, no respeito pelo espírito do Sistema, abrigo do art. 9°, n° 1 do CC; 2. Não se entendo directamente aplicável, nem com esforço interpretativo preconizado, a norma do art. 178°, n° 2 do CPEREF, então estaremos perante uma lacuna legal que deveria ser integrada por recurso à analogia (art. 10°, n°s 1 e 2 do CC), caso em que é ostensiva a situação prevista no supra citado preceito, que assim, deveria aplicar.

3. Em qualquer caso, os direitos da titular activa do direito real com registo prévio à apreensão dos bens e ao registo desta mesma apreensão, não pode, sem mais, ser precludido sem que este seja expressamente chamado a pronunciar-se na instância própria em que terceiros pretenderam fazer valer os seus alegados direitos sobre os mesmos bens.

4. Em qualquer caso, mantendo-se em vigor a inscrição registral de hipoteca sobre os bens apreendidos a favor de um terceiro, que não o credor dos falidos (no caso sub judice a recorrente não tem essa veste) e não havendo causa jurídica para o seu cancelamento, deve ao respectivo titular ser dada a oportunidade expressa de reclamar os seus créditos, garantidos por aquela hipoteca.

5. Se tal não acontecer, para além do mais, serão postos em causa o Princípio do Contraditório e o Princípio da Confiança.

6. Enjeitando-se a interpretação correctiva do citado art. 178°, n° 2 do CPEREF, nos termos supra preconizados, ou sempre em outros semelhantes que contemple a situação configurada, ter-se-á de anuir que aquela norma padece de inconstitucionalidade, por omissão legiferante, constitucionalmente garantido que está, a todos, esse valor maior que é a segurança e certeza do comércio jurídico.

Ninguém respondeu.

2.

Factos provados.

É de considerar assente, por virtude da prova documental produzida, a factualidade seguinte: 1. A aquisição de parte do direito real de propriedade sobre os prédios descritos sob os nºs 0419, 0439, 04188, 04201, 04202, 04120, 04186, 04187, 04189, 04190, 01902 na conservatória do registo predial de Soure encontra-se inscrita a favor do falido, B....

2. A aquisição do direito real de propriedade sobre os prédios referidos em 1. encontra-se inscrita na conservatória do registo predial de Soure a favor de E...

e F....

desde 18 de Setembro de 1996 e 24 de Abril de 1997.

3. Sobre os prédios mencionados em 1. encontra-se inscrita hipoteca a favor da A...., para garantia do pagamento da quantia de 40 300 000$00, de capital, ao juro anual de 13,5%, elevável em caso de mora, da sobretaxa de 4%, e despesas no valor de 4 030 000$00, desde 24 de Abril de 1997.

4. A declaração de nulidade das aquisições mencionadas em 2. encontra-se inscrita na conservatória do registo predial de Soure desde 2000.

5. B... foi declarado falido por sentença de 1 de Setembro de 2003, tendo sido fixado, na sentença declaratória da falência, o prazo de 30 dias, contado desde a publicação da sentença no Diário da República, ocorrida no dia 24 de Setembro de 2003, para a reclamação de créditos.

6. A apreensão, no processo de falência, dos prédios mencionados em 1. encontra-se inscrita na conservatória do registo predial de Soure desde 26 de Julho de 2004.

7. A A..., entre outros credores, reclamou os seus créditos sobre o falido, B..., no valor de € 56 828.40.

9. A sentença de verificação e graduação de créditos foi proferida no dia 24 de Maio de 2006[1].

3.

Fundamentos.

3.1.

Delimitação objectiva e subjectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

O recurso foi interposto do despacho que, no processo de verificação do passivo falimentar, indeferiu ao titular de um crédito assegurado por hipoteca que incide sobre bens imóveis objecto de apreensão para a massa falida o requerimento da sua citação para reclamar o seu pagamento.

A questão concreta controversa que importa resolver é, assim, as de saber se o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por acórdão que ordene a citação da agravante para reclamar o seu crédito garantido por hipoteca.

Tendo em conta os parâmetros de cognição representados pelo conteúdo da decisão recorrida e das alegações da recorrente, o litígio tem subjacentes as seguintes questões: - O carácter universal ou colectivo da execução falimentar; - A garantia disponibilizada pela hipoteca; - A justificação da intervenção dos credores titulares de garantias reais na execução; - O procedimento de reclamação para verificação de créditos; - O princípio da protecção da confiança e a inconstitucionalidade por omissão; - Fundamentos finais do registo predial; - A aplicação analógica da norma contida no artº 178 do CPEREF; - O princípio do contraditório.

A sentença que declarou o estado de falência do devedor dos créditos reclamados foi proferida no dia de 1 de Setembro de 2003; a que procedeu à verificação e graduação desses créditos data de 24 de Maio de 2006; o recurso deve ser julgado em 2008.

Durante este arco temporal, como resultado directo da volubilidade do legislador, nitidamente assente na confusão entre legislar muito e legislar bem, que nunca lhe censuraremos bastante, registaram-se modificações legislativas extraordinariamente relevantes, tanto no plano substantivo como no domínio adjectivo, o mesmo é dizer, no tocante à lei que regula a matéria do procedimento e da causa.

Isto coloca naturalmente o problema de saber à luz de que lei deve este Tribunal julgar o recurso. É, por isso, inteiramente justificado que a exposição da argumentação do acórdão comece, precisamente, pelo problema da aplicação da lei no tempo e, correspondentemente, pela determinação da lei aplicável, tanto ao procedimento como ao objecto dele.

3.1.

Aplicação da lei no tempo e determinação da lei reguladora do procedimento e da matéria do recurso.

O princípio geral da lei civil em matéria de aplicação da lei no tempo é o da aplicação prospectiva, que assume duas faces, distintas mas complementares (artº 12 nºs 1 e 2 do Código Civil)[2].

A primeira é que contempla os simples factos: quanto a estes, na falta de disposição em contrário, a lei só se aplica aos factos futuros, entendendo-se como tais os factos que...

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