Acórdão nº 445/08 de Tribunal Constitucional (Port, 23 de Setembro de 2008

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução23 de Setembro de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 445/2008 Processo n.º 546/08 2.ª Secção

Relator: Conselheiro Mário Torres

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

1. Relatório

A. instaurou acção de despejo contra B., L.da, pedindo a declaração da resolução do contrato de arrendamento relativo à loja do prédio sito na Rua …, n.º..-.., em Lisboa, e a condenação da ré na entrega do local à autora, livre de pessoas e bens, e no pagamento das rendas vencidas e vincendas até à efectivação dessa entrega. Alegou, em síntese, que a ré, locatária da referida loja, celebrou, em 1 de Maio de 2003, com C. e D. um contrato, denominado de cessão de exploração, por via do qual eles passariam a explorar por sua conta o estabelecimento comercial aí instalado, pelo prazo de 12 meses, renovável por iguais e sucessivos períodos, mediante o pagamento da quantia mensal de € 650,00, actualizável anualmente, mas fê-lo sem pedir autorização à senhoria e também sem fazer a comunicação legal referida no artigo 1038.º, alínea g), do Código Civil, que impõe ao locatário a obrigação de “comunicar ao locador, dentro de quinze dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos quando permitida ou autorizada”, resultando da precedente alínea f) a obrigação de o locatário “não proporcionar o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, excepto se a lei o permitir ou o locador o autorizar”.

Por despacho saneador do 7.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, de 13 de Abril de 2007, o pedido de resolução do contrato de arrendamento foi julgado improcedente por se haver entendido que a ré não estava obrigada a pedir autorização à autora para celebrar tal contrato nem tinha de proceder à comunicação a que se reporta a alínea g) do artigo 1038.º do Código Civil, pelo que da omissão desses actos não resultava a possibilidade de resolução do contrato de arrendamento. Após recordar que, nos termos do n.º 1 do artigo 111.º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, “não é havido como arrendamento do prédio urbano (…) o contrato pelo qual alguém transfere temporária e onerosamente para outrem, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial (...) nele instalado”, o despacho saneador desenvolveu a seguinte argumentação:

“O referido contrato é um contrato atípico ou inominado, que não se identifica nem com o arrendamento, nem com o trespasse e cujo regime jurídico não se encontra expresso na lei.

O que há de característico em tal contrato não é a cedência da fruição do imóvel nem a do gozo do mobiliário ou do recheio que nele se encontra, mas a cedência temporária do estabelecimento como um todo, uma universalidade, uma unidade económica mais ou menos complexa.

Através desse contrato não se dá a transmissão do direito ao arrendamento, não envolvendo o mesmo a transferência definitiva do estabelecimento nem sequer a transferência do arrendamento sobre o imóvel, como sucede no trespasse, já que o cedente conserva a titularidade da relação locatícia.

Nesse contrato, o negócio não incide directamente sobre o prédio, sendo este apenas um dos elementos do estabelecimento comercial propriamente dito, não ocorrendo consequentemente uma transmissão do arrendamento, sendo o cedente quem perante o senhorio continua a responder, como locatário, perante qualquer violação contratual que seja fundamento de resolução.

Como sustenta a ré, decorre de todo o exposto que a lei exclui o mencionado contrato de cessão de exploração do âmbito do contrato de locação, sujeitando-o ao princípio da liberdade contratual (a este propósito, vide, por todos, a posição do Ex.mo Juiz Conselheiro Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7.ª edição, Livraria Almedina, pág. 647 e seguintes).

A este propósito também já o Tribunal Constitucional se pronunciou no Acórdão n.º 289/99, de 12 de Maio (DR, II Série, de 14 de Julho de 1999), e no Acórdão n.º 77/2001, de 14 de Fevereiro (DR, II Série, de 26 de Março de 2001), no sentido de que a falta de comunicação ou de autorização do senhorio a que aludem as alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil, estando em causa a cessão de exploração do estabelecimento, não é contrária à Constituição, antes compatibilizando o eventual conflito dos direitos que se consagram nos artigos 61.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, do diploma fundamental, e não constituindo fundamento para a resolução do contrato (vide também obra citada, pág. 648).

Assim, sendo certo que o contrato que a ora ré celebrou com C. e D. foi um contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial, conclui-se que a pretensão da autora não pode proceder, porquanto a ré não estava obrigada a pedir autorização à autora para celebrar tal contrato nem tinha que proceder à comunicação a que se reporta a alínea g) do artigo 1038.º do Código Civil, pelo que não se verifica existir qualquer fundamento para a resolução do contrato de arrendamento existente entre autora e ré.”

Contra esta decisão apelou a autora para o Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando, em suma, que a comunicação ao locador da cessão de exploração pelo locatário é obrigatória, nos termos do artigo 1038.º, alínea g), do Código Civil, e tinha de ser feita no prazo de 15 dias a contar da respectiva escritura, resultando da falta dessa comunicação a ineficácia da cessão em relação ao senhorio e fundamento de resolução do contrato de arrendamento.

A ré apelada contra-alegou, sustentado a confirmação da decisão recorrida e logo aduzindo que “a interpretação do teor das alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil no sentido de que a cessão de exploração de estabelecimento comercial instalado em prédio arrendado em termos de a sua validade estar condicionada à prévia autorização do senhorio e de o arrendatário estar sujeito ao dever de comunicação ao senhorio após a sua realização, constituindo qualquer dessas faltas fundamento de despejo previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 64.º do RAU, como o faz a recorrente, constitui inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade, que aqui desde já se invoca para os devidos e legais efeitos, uma vez que pelos atrás referidos acórdãos do Tribunal Constitucional [Acórdãos n.ºs 289/99 e 77/2001] ficou assente que a cessão de exploração de estabelecimento comercial não é contrária à Constituição, antes compatibilizando o eventual conflito dos direitos que se consagram nos artigos 61.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, da CRP, e não constituindo fundamento para a resolução do contrato de arrendamento”.

Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22 de Abril de 2008, foi julgada procedente a apelação da autora, revogada a decisão apelada, declarado resolvido o contrato de arrendamento e condenada a ré na entrega do locado, livre de pessoas e bens, e no pagamento da quantia de € 132,50 por cada mês que decorrer até essa efectiva entrega. Para alcançar essa solução, o referido acórdão desenvolveu a seguinte fundamentação:

“4.2. O inquilino está ou não obrigado a notificar ao senhorio a cessão de exploração do locado, no prazo de 15 dias contados a partir da data da celebração desse contrato?

4.2.1. A questão que aqui cumpre dirimir – e que se consubstancia na interpretação do estatuído na alínea g) do artigo 1038.º do Código Civil («São obrigações do locatário: …. comunicar ao locador, dentro de 15 dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos, quando permitida ou autorizada» – sendo esses «títulos» os enunciados na alínea f) desse mesmo normativo) – originou jurisprudência e doutrina não só diversa mas diametralmente oposta.

O que será, talvez, pouco agradável tendo em conta a previsão do n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil e a necessidade de garantir à comunidade a segurança e certeza jurídicas pelas quais esta tanto anseia.

Porém, a verdade é que os princípios interpretativos estabelecidos pelo legislador nos três números do artigo 9.º do aludido Código permitem essas divergências desde que a interpretação proposta tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa (n.º 2).

Ainda assim, esse não é o único critério a atender, pois o julgador terá sempre que ter em conta as condições específicas do tempo em que a norma jurídica está a ser aplicada (n.º 1) e que presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3, cabendo acrescentar que por soluções acertadas se deve entender aquelas que são eticamente conformes à hierarquia de valores que estrutura e dá consistência ao tecido social comunitário, ou, mais simplesmente, as que cabem nos limites da boa fé, dos bons costumes e do fim económico e social do direito – artigo 334.º do Código Civil).

Mas, repete-se, essas regras não são entendidas de um modo uniforme e, por isso, são tão diversamente aplicadas – daí a necessidade dos acórdãos para uniformização de jurisprudência (artigos 732.º-A e 732.º-B do CPC).

4.2.2. Só que a tudo isto acresce que, como avisava Marco Túlio Cícero no século I AC, o tempora o mores, e, sopesando bem todas as consequências sociais que resultaram da predominância dada, durante décadas, aos interesses dos inquilinos sobre os dos senhorios, a comunidade começou a inverter esse seu entendimento e essa sua prática – e, em boa verdade, esse predomínio, no caso dos arrendamentos para fins comerciais e industriais, dada a concreta natureza dos interesses em colisão, não é nem ética nem sociologicamente sustentável (v. artigos 334.º e 335.º do Código Civil, especialmente este último).

O NRAU – que consubstancia o mais recente (actual) pensamento legislativo – e, em particular, a nova redacção dada ao n.º 2 do artigo 1109.º do Código Civil, é disso um sinal evidente, um sinal que o julgador não pode ignorar, nomeadamente porque tem como função social e institucional administrar a justiça em nome do...

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