Acórdão nº 214/11.8PCCBR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 23 de Janeiro de 2013

Magistrado ResponsávelLU
Data da Resolução23 de Janeiro de 2013
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

I – RELATÓRIO No âmbito do Processo Comum (Singular) nº 214/11.PCCBR, do 3º Juízo Criminal Coimbra, foi submetido a julgamento o arguido A... (melhor identificado nos autos), que vinha acusado pelo Ministério Público da prática, como autor material e em concurso efectivo de um crime de peculato, p. e p. pelo art.º 375º, n.º 1 do Código Penal, com referência aos arts 26º, 30º e 386º n.º 1 al. a) do mesmo código, e de um crime de violação de segredo de correspondência ou telecomunicações, p. e p. pelo art.º 384º a) do Código Penal, com referência aos arts 26º, 30º e 386º n.º 1 al. a) do mesmo código.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida a sentença (constante de fls. 163 a 172vº) onde se decidiu (transcrição): “Pelo exposto, e sem necessidade de mais considerações, decido:

  1. Absolver o arguido da prática do crime de peculato na forma continuada, p. e p. pelos arts. 30º e 375º n.º 1 do C. Penal b) Absolver o arguido da prática de um crime de violação de segredo de correspondência ou telecomunicações, p. e p. pelo art.º 26º, 30º e 386º n.º 1 al. a) do CP.

  2. convolar o crime de peculato, p. e p. pelo art.º 375, n.º 1 do C. Penal em crime de furto, p. e p. pelo art.º 203º n.º 1 do Código Penal e, considerando as disposições conjugadas dos artigos 116º/2 e do 51º do Cód. Proc. Penal, julgar válida e plenamente eficaz a desistência da queixa formulada, homologando-a por sentença e em consequência, por falta de legitimidade do Ministério Público para o fazer prosseguir, declarar extinto, o procedimento criminal contra o arguido pela prática de um crime de furto p. e p. pelo art.º 203º n.º 1 do CP.

  3. convolar o crime continuado peculato, p. e p. pelo art.º 30º e 375, n.º 1 do C. Penal em crime continuado de furto, p. e p. pelo art.º 30º e 203º n.º 1 do CP e, por falta de queixa crime, absolver o arguido da instância.

  4. por convolação jurídica do imputado crime de violação de segredo de correspondência ou telecomunicações, p. e p. pelo art.º 26º, 30º e 386º n.º 1 al. a) do CP., condenar o arguido A... pela prática de um crime continuado de violação de correspondência ou telecomunicações, p. e p. pelo art.º 26º, 30º e 194º n.º 1 do CP, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de €:6,00, o que perfaz €:540,00, fixando a prisão subsidiária em 60 dias.

  5. Condenar o mesmo arguido nas custas criminais do processo (art.º 513º do CPP), fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (cfr. Tabela II Anexa ao RCP).

    (…) ” Inconformado quanto ao assim decidido, o Ministério Público interpôs recurso (constante de fls. 177 a 188), retirando da correspondente motivação as conclusões seguintes (transcrição): “CONCLUSÕES 1 - A sentença padece do vício da contradicão insanável da fundamentação a que alude a al. b) do nº 2 do art. 410º do CPPenal.

    2 - Pois existe incompatibilidade dos factos provados descritos sob os nºs 2), 3), 4), 5), 6), 8), 15), 16) e 17) com o facto não provado mencionado sob a aI. g).

    3 - A explicação dada na motivação e os factos assentes atrás referidos importam dar como provada a factualidade indicada na apontada al. g), ou seja, que «a correspondência que o arguido retirou apenas lhe era acessível em razão das suas funções de Carteiro, no exercício das quais lhe incumbia especialmente zelar pelo bom funcionamento dos serviços postais e pela garantia do segredo daquela correspondência».

    4 - O Tribunal ao absolver o arguido da prática do crime de peculato não fez uma correcta e justa aplicação da lei, violou a norma comida no nº 1 do art. 375º do Código Penal.

    5 -Ao considerar que a expressão «que lhe seja acessível em razão das suas funções», contida naquela norma, exige que o agente do crime tenha o objecto de que se apropria na sua posse, no sentido de que pode dispor do bem ou conseguir a sua detenção material mediante um acto para o qual tem competência em razão das suas funções, o Tribunal não interpretou correctamente essa norma.

    6 - O art. 375º nº 1 do Código Penal, na parte respeitante à apropriação pelo funcionário de dinheiro ou coisa móvel que lhe seja acessível em razão das suas funções, diz respeito à apropriação do bem que, por força das suas funções, lhe está próximo e lhe pode aceder com facilidade, não se exigindo que lhe tenha sido entregue ou o detenha directa ou indirectamente.

    7 - A conduta do arguido integra a prática de um crime de peculato, p. e p. pela conjugação dos arts. 375º nºs 1 e 2 e 202º, al. c), do Código Penal, pelo qual deverá ser condenado.

    Vossas Excelências, Senhores Desembargadores, dando provimento ao presente recurso, farão JUSTIÇA” O arguido, a fls. 190 a 193, respondeu ao recurso, negando que a sentença recorrida tenha incorrido em qualquer contradição insanável de fundamentação e defendendo que o tribunal a quo fez uma correcta interpretação do artigo 375º do Código Penal. Termina concluindo que deverá ser negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida.

    Nesta Relação, a Exma Procurador-Geral Adjunta emitiu parecer, constante de fls. 201 a 203, concluindo “no sentido da improcedência do interposto recurso e, consequente manutenção do decidido.

    ” No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, o arguido não respondeu.

    Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

    II - FUNDAMENTAÇÃO: Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (arts 403º e 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

    No caso vertente, e vistas as conclusões do recurso, as questões suscitadas são as seguintes: A) - Saber se a sentença recorrida enferma de contradição insanável da fundamentação; B) - Saber se o tribunal “ a quo” fez ou não uma incorrecta interpretação do artigo 375º nº 1 do Código Penal e, nesta segunda hipótese, se o arguido deverá ser condenado pelo crime de peculato.

    * Vejamos então a decisão recorrida (na parte que tem relevo para as questões em análise e que, de seguida, transcreveremos): 1. 1 Factos Provados: 1) Os Correios de Portugal, SA (CTT) são uma empresa pública com capitais exclusivamente públicos, com sede na Rua de São José, nº20, em Lisboa.

    2) O arguido A... iniciou o seu percurso profissional nos CTT como assalariado, em 1983, e a partir de Maio de 1984, foi admitido como funcionário, com a categoria profissional de Carteiro (CTR), trabalhando sob as ordens, direcção e fiscalização desta entidade.

    3) Desde 1996 e até 15 de Abril de 2011, exerceu as suas funções no Centro de Distribuição Postal 3020 Coimbra, situado na Estrada Municipal nº537, em Eiras, área desta comarca de Coimbra, data esta em que foi suspenso preventivamente na pendência de um processo disciplinar que lhe foi instaurado, no termo do qual lhe foi aplicada a pena de despedimento.

    4) No âmbito das suas funções de Carteiro, cabia ao arguido a distribuição de correspondência no Giro UC002, que compreende a localidade da Pedrulha e a Zona Industrial da Pedrulha, bem como ocasionalmente a distribuição de correspondência noutros giros.

    5) Entre Dezembro de 2010 e o dia 14 de Abril de 2011, no Centro de Distribuição Postal 3020 Coimbra, o arguido, aproveitando-se da circunstância de, em razão das suas funções de Carteiro, ter livre acesso aos objectos postais, retirou dos circuitos postais correspondência destinada a clientes, residentes noutras áreas de distribuição, que abriu e fez sua.

    6) Assim, no dia 16/12/2010, o arguido retirou do móvel de expedição de correio uma correspondência prioritária da categoria publicação periódica, que continha no interior uma revista Visão, com o valor aproximado de 3€ (três euros), cuja morada do destinatário era insuficiente, que assim fez sua, e posteriormente abriu a correspondência e inteirou-se do seu conteúdo.

    7) No dia 17 de Janeiro de 2011, o arguido retirou do móvel de grossos uma correspondência da categoria pacote postal procedente de … , da Suécia, e destinada a … , contendo dois pares de óculos de sol com o valor global concretamente não apurado mas certamente não superior a €:20,00 e ainda 400€ (quatrocentos euros) em notas do BCE, que assim fez sua, sendo que posteriormente abriu esta correspondência, inteirando-se do respectivo conteúdo, à excepção dos valores, que nunca conseguiu descobrir por estarem escondidos sob o forro de uma das caixas de óculos.

    8) No dia 14 de Abril de 2011, o arguido retirou do móvel de expedição de correio a correspondência prioritária da categoria publicação periódica que continha no interior a revista Sábado, edição nº363, com o valor aproximado de 3€ (três euros), destinada ao cliente … e que seguia em devolução ao remetente.

    9) Seguidamente, o arguido retirou do circuito de distribuição do giro UC006 a correspondência da categoria pacote postal, remetida por … e destinada a … .

    10) Levando consigo a publicação periódica e o pacote postal, que assim fez seus, o arguido acondicionou-os na bagageira da sua viatura, para posteriormente os abrir e se inteirar do seu conteúdo.

    11) Porém, tal não veio a suceder por motivos alheios à vontade do arguido.

    12) Com efeito, na sequência de diversas reclamações relacionadas com extravio de correspondência, os Serviços de Auditoria e Inspecção dos CTT realizaram em 13 e 14 de Abril de 2011 um teste ao circuito postal interno do Centro de Distribuição Postal 3020 Coimbra.

    13) Para tanto, no...

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