Acórdão nº 511/10.0TBSEI-E.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 15 de Janeiro de 2013

Magistrado ResponsávelHENRIQUE ANTUNES
Data da Resolução15 de Janeiro de 2013
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: 1.

Relatório.

O credor reclamante da insolvência de “C…, Lda.”, A… impugnou, no tocante ao seu crédito, a lista de credores reconhecidos pelo Administrador da insolvência, pedindo que se reconheça o seu direito de retenção sobre seis fracções autónomas de edifício e a qualificação daquele seu crédito, de €1.001.583,22, como privilegiado.

Fundamentou a impugnação no facto de o seu crédito, naquele valor, respeitante ao sinal em dobro do preço que pagou pela promessa de compra, à insolvente, daquelas fracções, ter sido reconhecido como comum, mas de esse crédito, por lhe terem sido entregues as respectivas chaves, gozar de direito de retenção.

O credor reclamante, D…, SA, respondeu que aquelas fracções se mantêm e sempre estiveram na posse da insolvente, que nunca entregou as chaves ao impugnante.

Seleccionada a matéria de facto, procedeu-se – com registo sonoro dos actos de prova levados a cabo oralmente – à audiência de discussão e julgamento no terminus da qual se decidiu, sem reclamação, o único facto seleccionado para a base instrutória.

A sentença final da causa – com fundamento em que o crédito do impugnante goza de direito de retenção - julgou a impugnação procedente e graduou o crédito do reclamante, pelo remanescente do produto do prédio urbano apreendido nos autos sito na Avenida … - FRACÇÕES F,G, H, J, L e K -, imediatamente a seguir ao crédito do Estado por IMI, mas imediatamente antes do crédito de D…, SA.

É esta sentença que o credor D…, SA impugna no recurso ordinário de apelação no qual pede se proceda à sua alteração, por forma a graduar a ora Apelante, preferencialmente face ao credor A...

A recorrente extraiu da sua alegação estas conclusões: ...

Na resposta, o recorrido concluiu, naturalmente, pela improcedência do recurso.

  1. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

    2.1. Foi seleccionado para a base instrutória este único enunciado de facto: 1º Não obstante a não celebração da escritura, a insolvente entregou ao impugnante, A…, as chaves das fracções F), G), H), L), J) e k)? 2.2. O enunciado referido em 2.1. obteve do Tribunal da audiência, esta resposta: Provado.

    2.3. O decisor de facto da 1ª instância adiantou, para justificar o julgamento referido em 2.2., esta motivação: Na formação da sua convicção, o tribunal apreciou de forma livre, crítica e conjugada a prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como a prova documental constante dos autos, de harmonia com o princípio consagrado no artigo 655º do Código de Processo Civil.

    Com efeito, a convicção em que se alicerçou a decisão sobre a matéria de facto, resultou do conjunto de prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente, dos depoimentos das testemunhas, conjugado com critérios das regras da experiência e da normalidade.

    … 2.2. O Tribunal de que provém o recurso julgou provada, no seu conjunto, a factualidade seguinte: ...

  2. Fundamentos.

    3.1.

    Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

    O objecto do recurso é, antes de mais, delimitado pelo objecto da acção, pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao recorrente. Mas este pode também, no requerimento de interposição ou nas conclusões da sua alegação, limitar o âmbito, objectivo ou subjectivo, do recurso (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

    A sentença impugnada é a que, além de julgar a impugnação deduzida pelo recorrente contra a lista de créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência, procedeu á verificação dos créditos e à sua graduação, i.e., a sua hierarquização entre si.

    A recorrente não discute no recurso – como não discutiu na resposta à impugnação deduzida pelo recorrido contra a apontada lista – a declaração do crédito daquele como verificado. A única coisa que a recorrente controverte na apelação é a graduação daquele crédito, i.e., a sua hierarquização.

    Segundo a sentença recorrida, o crédito do apelado, porque, no seu ver, goza de direito de retenção, prevalece sobre o da recorrente, garantido por hipoteca; de harmonia com a alegação da recorrente, o seu crédito deve prevalecer sobre o do recorrido, por esta razão simples: o crédito do recorrido não goza daquela garantia real.

    Numa palavra: a recorrente limitou objectivamente o âmbito do recurso à questão da graduação do seu crédito no confronto com o do apelado.

    Todavia, a exacta delimitação do âmbito objectivo do recurso reclama esclarecimentos suplementares.

    Tendo em conta a finalidade da impugnação, os recursos ordinários podem ser configurados como um meio de apreciação e de julgamento da acção por um tribunal superior ou como meio de controlo da decisão recorrida.

    No primeiro caso, o objecto do recurso coincide com o objecto da instância recorrida, dado que o tribunal superior é chamado a apreciar e a julgar de novo a acção: o recurso pertence então à categoria do recurso de reexame; no segundo caso, o objecto do recurso é a decisão recorrida, dado que o tribunal ad quem só pode controlar se, em função dos elementos apurados na instância recorrida, essa decisão foi correctamente decidida, ou seja, se é conforme com esses elementos: nesta hipótese, o recurso integra-se no modelo de recurso de reponderação[1].

    No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento.

    Como o pedido e a causa de pedir só podem ser alterados ou ampliados na 2ª instância se houver acordo das partes – eventualidade mais que rara – bem pode assentar-se nisto: que os recursos interpostos para a Relação visam normalmente apreciar o pedido formulado na 1ª instância com a matéria de facto nela alegada.

    Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que não hajam sido formulados.

    Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas[2].

    Excluída está, portanto, a possibilidade de alegação de factos novos - ius novarum nova – na instância de recurso.

    Em qualquer das situações, salvaguarda-se, naturalmente, a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, da matéria de conhecimento oficioso[3].

    Ao tribunal ad quem é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida.

    Estas questões – como, v.g., o abuso do direito, os pressupostos processuais, gerais ou especiais, ou a litigância de má fé, oficiosamente cognoscíveis – constituem um objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente, embora, quando isso suceda, de modo a assegurar a previsibilidade da decisão e evitar as chamadas decisões-surpresa, o tribunal ad quem deva dar uma efectiva possibilidade às partes de se pronunciarem sobre elas (artº 3 nº 3 do CPC).

    Face ao modelo do recurso de reponderação que o direito português consagra, o âmbito do recurso encontra-se objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal ad quem que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi apresentada e decidida na 1ª instância.

    A função do recurso ordinário é, no nosso direito, a reapreciação da decisão recorrida e não um novo julgamento da causa.

    O modelo do nosso sistema de recursos é, portanto, o da reponderação e não o de reexame[4].

    A questão concreta controversa em torno da qual gravita o litígio é de saber se o crédito do apelado está ou não garantido por direito de retenção.

    Para sustentar a resposta negativa, a apelante alega, como fundamento da impugnação, que a compra das fracções não se destinava à habitação do credor A…, mas sim à sua posterior venda a terceiros ou arrendamento, que aquele não actuou como consumidor e não é consumidor.

    Simplesmente uma leitura, ainda que meramente oblíqua quer da matéria de facto julgada provada pelo Tribunal de que provém o recurso – que neste ponto não é objecto de impugnação - quer das alegações produzidas pelas partes na instância recorrida, torna patente, de um aspecto, que aqueles factos não foram julgados, e de outro – o que é mais – que nem sequer foram alegados naquela instância.

    A única coisa que a este propósito se julgou provado foi que o recorrido reside no Brasil e não habita as fracções. Mas deste facto não decorre, como corolário que não possa ser recusado, que o apelado destinava aquelas fracções à venda ou a arrendamento.

    Como melhor se procurará detalhar, um dos pressupostos do direito de retenção é a existência de um nexo causal entre o crédito e a coisa: é o que decorre da declaração da lei de que o crédito deve resultar de despesas por causa da coisa ou de danos por ela causados (artº 754 do Código Civil).

    Contudo, essa conexão pode também ser estabelecida pelo facto de a detenção resultar de uma relação legal ou contratual à qual a lei reconheça, como garantia, aquele direito.

    Está nestas condições, precisamente, a retenção reconhecida ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real para quem a coisa objecto mediato definitivo prometido tenha sido traditada, no tocante ao crédito resultante do não cumprimento dele pelo outro promitente (artº 755 nº 1 f) do Código Civil).

    Sem paralelo noutros ordenamentos, o direito de retenção assinalado foi introduzido na nossa ordem jurídica na década de 80 com o fito declarado de proteger o promitente adquirente de prédios urbanos ou de fracções autónomas destes do não cumprimento, por promitentes pouco escrupulosos, da promessa correspondente (artº 442 nº 3 do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei nº 236/80, de 18 de Julho).

    Todavia, a verdade é que o texto da lei...

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