Acórdão nº 6651/08.8TAVNG.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 20 de Junho de 2012

Magistrado ResponsávelMARIA LEONOR ESTEVES
Data da Resolução20 de Junho de 2012
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Recurso Penal nº 6651/08.8TAVNG.P1 Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: 1.Relatório No 2º juízo criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, em processo comum com intervenção de tribunal colectivo, foram submetidos a julgamento, além de outro[1], os arguidos B…, C… e D…, SA, devidamente identificados nos autos, tendo no final sido proferida sentença, na qual se decidiu, além do mais, condenar cada um deles pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 107º nº 1, por referência ao art. 105º nº 5, ambos do RGIT, 30º nº 2 e 79º do C. Penal, o primeiro e o segundo nas penas de 2 anos e 2 meses de prisão e de 3 anos de prisão, respectivamente, com execução suspensa pelo mesmo período e subordinada a demonstrarem, no mesmo prazo, o pagamento à segurança social da quantia global de 295.618,20 €, acrescida de juros de mora sobre os valores e períodos referidos nos pontos a. a t. da al. b) dos factos ali considerados como provados, e a terceira em 900 dias de multa à taxa diária se 50 €, num total de 45.000 €.

Na procedência parcial do pedido de indemnização civil que contra eles havia sido deduzido pelo Instituto da Segurança Social, também constituído como assistente nos autos, foram os três arguidos condenados, solidariamente, a pagar ao demandante a quantia de 623.701,57 € com os juros de mora devidos.

Inconformados com a sentença, dela interpuseram recurso os referidos arguidos, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que contemple as alterações à decisão da matéria de facto que propugnam e os absolva da prática do crime em questão ou, se assim se não entender, os dispense da respectiva pena ou a considere especialmente atenuada, para o que apresentaram as seguintes conclusões: I.

Com o presente RECURSO versa-se matéria de direito e impugna-se matéria de facto, tendo, por isso, como objecto, também a reapreciação da prova gravada.

II.

No que respeita à matéria de facto, entendem os Arguidos que o Tribunal a quo não terá ponderado devidamente toda a prova carreada para os autos, violando, assim, o artigo 127.° do Código de Processo Penal (CPP).

III.

Em primeiro lugar, a redacção da alínea m) da matéria de facto provada deverá ser alterada, na medida em que, para além de tal facto decorrer do sector de actividade da sociedade Arguida, se demonstrou em audiência de julgamento, nomeadamente através dos depoimentos dos ARGUIDOS B… (cuja gravação se inicia às 10h22m25s e termina às 10h38m31s) e C… (cuja gravação se inicia às 10h39ml0s e termina às 10h59m33s) que as despesas inerentes ao tipo de actividade desenvolvida pela sociedade arguida - prestação de serviços de segurança - se traduzem essencialmente nos vencimentos a pagar aos trabalhadores (vigilantes).

IV.

Assim, a alínea m) da matéria de facto dada como provada deverá passar a ter a seguinte redacção; “Os arguidos B… e C… actuaram num quadro de dificuldades financeiras sofridas pela sociedade arguida naqueles períodos, o que os determinou a canalizar os recursos financeiros para outras despesas inerentes à actividade da sociedade, essencialmente vencimentos dos trabalhadores, de modo a manter os postos de trabalho e a laboração normal da empresa”.

V.

Em segundo lugar, existem determinados factos relevantes para a aferição da ilicitude e da culpa da conduta dos ARGUIDOS, que não foram seleccionados para a matéria de facto.

VI.

O Tribunal, na selecção da matéria de facto dada como provada, limitou-se a mencionar as dificuldades financeiras da sociedade, bem como os atrasos dos pagamentos dos clientes, “principalmente os clientes públicos”, sem especificar, como devia, qual a situação que afectou de forma mais significativa as disponibilidades financeiras da ARGUIDA, levando-a ao não pagamento dos montantes sub iudice: a dívida da Câmara Municipal ….

VII.

O Tribunal não teve em conta, por um lado, o teor da certidão emitida pelo Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 4, junta como Doc. n.° 25 à Contestação, onde se declara a existência de diversas penhoras de créditos, nomeadamente as penhoras dos créditos do Município … que totalizam o montante de € 863.661,58.

VIII.

Por outro lado, não foram igualmente considerados os depoimentos dos ARGUIDOS B… (cuja gravação se inicia às 10h22m25s e termina às 10h38m31s) e C… (cuja gravação se inicia às 10h39ml0s e termina às 10h59m33s), os quais destacaram o valor elevado da dívida que a Câmara Municipal … detinha para com a sociedade arguida e como tal dívida condicionou a possibilidade de pagamento atempado tanto das contribuições à Segurança Social como dos impostos.

IX.

Da mesma forma, a testemunha E…, cuja gravação do depoimento se inicia às 12h01m38s e termina às 12h04m21s, demonstrou conhecer a existência da dívida do Município ….

X.

Denota-se/ assim, dos elementos enunciados, que os factos descritos tiveram uma relevância extrema na evolução desfavorável das condições financeiras da sociedade ARGUIDA, o que terá levado ao não pagamento das contribuições à Segurança Social, XI.

Tendo ficado igualmente demonstrado que os ARGUIDOS contaram sempre, isto é, todos o meses, com o pagamento da Câmara Municipal …, o que possibilitaria o cumprimento atempado das suas obrigações perante a Segurança Social. Como é evidente, esta matéria é de extrema relevância para a aferição da ilicitude e da eventual culpa dos ARGUIDOS, não podendo deixar de estar inserida expressamente no acervo de factos provados.

XII.

Nessa medida, devem ser aditados à matéria de facto provada os seguintes factos: - “A dívida que o Município … detinha para com a sociedade Arguida ascendeu, pelo menos, ao montante de € 863.661,58”; - “O montante de € 863.661,58, relativo aos créditos que a sociedade Arguida detinha perante o Município …, foi penhorado pelo Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 4”; - “No momento de cada uma das resoluções mensais referidas em g) os Arguidos confiaram no recebimento dos montantes devidos pelo Município …”.

XIII.

No que respeita à matéria de Direito, entendem os ARGUIDOS que o conjunto da situação de facto dada como provada, mormente nos factos descritos nas alíneas m) a y), bem como na matéria cujo aditamento se requereu, revela a inexistência de ilicitude ou de culpa na prática dos factos imputados aos ARGUIDOS.

XIV.

O Tribunal a quo afasta a aplicabilidade das causas de exclusão da ilicitude ou de desculpa, ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, nomeadamente quando está em causa o pagamento dos salários dos trabalhadores e dos custos essenciais à manutenção da laboração da empresa, em detrimento do pagamento das contribuições à segurança social, limitando-se a seguir a linha jurisprudencial que tem vindo a ser (mal) defendida pelos Tribunais Superiores.

XV.

Esta tomada de posição, sem ter o cuidado de apreciar os factos concretos que se podem subsumir numa situação de exclusão da ilicitude ou da culpa, é absolutamente inadmissível.

XVI.

No caso dos autos, o circunstancialismo que originou a falta de pagamento atempado das contribuições à Segurança Social pode sintetizar-se da seguinte forma: i) Os ARGUIDOS depararam-se com uma situação financeira da sociedade ARGUIDA muito diferente daquela que lhes tinha sido apresentada inicialmente [alínea n) a u) da matéria de facto provada], ii) Foi necessário proceder ao pagamento de contribuições e impostos anteriores ao período de administração dos ARGUIDOS; iii) Nos períodos em que existia alguma disponibilidade financeira, esta teve que ser direccionada essencialmente para o pagamento dos vencimentos dos trabalhadores [alínea m) da matéria de facto provada]; iv) Verificaram-se atrasos acentuados no pagamento dos serviços prestados aos clientes [alínea x) da matéria de facto provada]; v) A Câmara Municipal … deixou de pagar atempadamente à sociedade ARGUIDA facturas no montante de, pelo menos, € 863.661,58 (alíneas cujo aditamento se requereu); vi) Todos os meses, quando procediam ao pagamento dos salários, os ARGUIDOS contavam com o pagamento das dívidas do Município …, o que lhes permitiria, no dia 15 seguinte, procederem ao pagamento das contribuições à Segurança Social (alíneas cujo aditamento se requereu); vii) Os ARGUIDOS canalizaram os recursos financeiros disponíveis para pagar os vencimentos dos trabalhadores, na medida em que não lhes era possível cumprir ambas as obrigações [alínea m) e alíneas cujo aditamento se requereu].

XVII.

O condicionalismo descrito enquadra-se, necessariamente, numa situação de exclusão da ilicitude, por aplicação do conflito de deveres, previsto no artigo 36.° do Código Penal (CP). Se assim não se entender, a situação enunciada sempre teria que se enquadrar na figura do estado de necessidade desculpante, previsto no artigo 35.° do CP.

XVIII.

Coloca-se, em primeira linha, a questão de saber se no caso dos autos poderiam os ARGUIDOS licitamente ter cumprido o dever de pagar os salários dos trabalhadores, em detrimento do pagamento das contribuições à Segurança Social. Trata-se da opção entre cumprir o dever de pagar as contribuições à Segurança Social e o dever de pagar aos trabalhadores e de garantir o seu posto de trabalho.

XIX.

Os bens jurídicos em causa em cada um dos deveres (ambos deveres legais) têm protecção constitucional, nos termos dos artigos 63.°, 103.°, 104.°, e 59.°, alínea a), e n.° 3, todos da CRP, não se podendo, nessa medida, aferir, à partida, qual terá maior preponderância.

XX.

Em bom rigor, não se pode fazer prevalecer o dever de pagar impostos ou contribuições à Segurança Social, por proteger um bem jurídico supra-individual, como faz o Tribunal a quo, já que o direito a receber a retribuição protege a dignidade da pessoa humana - direito com uma dimensão também ela universal. Mais, a norma que prevê a garantia de uma remuneração condigna ao trabalhador, e da correspectiva manutenção dos postos de trabalho, também ela visa proteger interesses de cariz supra...

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