Acórdão nº 45/08 de Tribunal Constitucional (Port, 23 de Janeiro de 2008

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução23 de Janeiro de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 45/2008 Processo n.º 676/07 2.ª Secção

Relator: Conselheiro Mário Torres

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

1. Relatório

O representante do Ministério Público no Tribunal da Relação de Coimbra interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o acórdão do referido Tribunal, de 9 de Maio de 2007, “porquanto a predita decisão judicial declarou inaplicável o contido no artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada, na versão que actualmente lhe confere o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, sustentando a inconstitucionalidade especificamente incidente sobre o segmento da redacção que constitui o último parágrafo da mencionada norma estradal por integrante da presunção inilidível que acarreta a derrogação do direito de defesa ampla do arguido enquanto restrito à possibilidade de abranger o âmbito delineado pela gravidade da infracção e aplicável sanção de inibição de conduzir”.

O referido acórdão foi proferido em recurso interposto da sentença de 6 de Dezembro de 2006 do Tribunal Judicial da Comarca de Penamacor, que, não concedendo provimento ao recurso de contra-ordenação, manteve na íntegra a decisão administrativa proferida pela Governadora Civil do Distrito de Castelo Branco, de 24 de Outubro de 2005, que aplicou a A. (que procedera ao pagamento voluntário da coima correspondente à prática da contra-ordenação prevista no artigo 21.º, n.º 1, do Regulamento de Sinalização de Trânsito – não cumprimento do sinal de paragem obrigatória num cruzamento), a sanção acessória de inibição de conduzir, especialmente atenuada nos termos do artigo 140.º do Código da Estrada, pelo período de 30 dias.

A motivação do recurso da recorrente para o Tribunal da Relação de Coimbra terminava com a formulação das seguintes conclusões:

“I – A arguida, no dia, hora e local em causa, parou ao sinal STOP que se encontrava no cruzamento em questão [e], tendo verificado que não circulava qualquer veículo na outra via, iniciou novamente a sua marcha com a correcta e devida segurança, pelo que não cometeu qualquer infracção.

II – A arguida só pagou voluntariamente a coima, como consta da decisão recorrida, porque pensou assim estar obrigada, mas não reconheceu nem reconhece ter cometido a infracção por que foi condenada.

III – O Tribunal a quo não concedeu provimento ao recurso de contra-ordenação interposto pela arguida por basear a sua decisão no facto de a coima ter sido paga voluntariamente, não podendo agora ser questionada a prática da contra-ordenação, devendo antes dar-se como assente – artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada –, e não admitindo a alegação de factos que possam pôr em causa a existência do ilícito contra-ordenacional.

IV – Esta interpretação e aplicação das normas do RGCO restringe direitos de defesa da arguida e os direitos à tutela efectiva, na dimensão de garante de controlo judicial das decisões administrativas que lesem direitos e interesses legítimos, mostrando-se ferida de ilegalidade e de inconstitucionalidade, pois viola o disposto nas normas conjugadas dos artigos 55.º, 59.º, n.ºs 1 e 3, do RGCO e dos artigos 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

V – No processo de contra-ordenação valem os direitos e garantias constitucionalmente consagrados de direito de audiência e de defesa dos arguidos e de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, na dimensão da garantia de controlo das decisões finais administrativas que lesem direitos e interesses legalmente protegidos, caso contrário estar-se-ia a violar a Constituição.

VI – Apesar de paga voluntariamente a coima, pode-se discutir a existência de contra-ordenação quando for aplicada uma sanção acessória.

VII – O Tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre questões que deveria ter apreciado, o que torna a sentença nula – alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP.

VIII – Se não fosse possível discutir a existência da infracção, estamos perante uma inconstitucionalidade por restrição dos direitos fundamentais – violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

IX – A douta sentença recorrida é manifestamente contraditória quando dá por provado que a arguida necessita da carta de condução, porquanto lhe é imprescindível a utilização do automóvel para o exercício das suas funções laborais e que a aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias põe em risco a sua situação laboral e a séria possibilidade de poder tornar-se trabalhadora «normal» da referida entidade, e, por outro, mantém a decisão da autoridade administrativa de aplicar a sanção de inibição de conduzir por um período de 30 dias, colocando em risco o emprego da arguida (com a precariedade a nível laboral, se tiver de cumprir a sanção acessória de inibição de conduzir, a arguida com toda a certeza perderá o emprego e não poderá procurar outro).

X – Também se pode afirmar que a douta sentença entra em contradição ao concluir que as sanções acessórias terão de ser aferidas ao facto ilícito cometido e à culpa do agente, e, por outro lado, não permitiu que se alegassem factos que põem em crise a existência do ilícito contra-ordenacional e partiu de uma presunção de culpabilidade.”

O Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão ora recorrido, desenvolveu a seguinte fundamentação jurídica:

“Das várias questões aportadas pela recorrente sobressai como primacial a da não admissão de defesa quanto ao cometimento da infracção, na procedência da qual ficarão prejudicadas as restantes.

E assim que se tenha escrito, como supra se viu: «A título de questão prévia cumpre referir que o presente recurso apenas se destina à apreciação da gravidade da infracção e à aplicação da sanção acessória. Na verdade, como refere a recorrente, esta procedeu ao pagamento voluntário da coima, pelo que o presente recurso encontra-se circunscrito à apreciação da aplicação da referida sanção acessória e da gravidade da infracção, tal como resulta do disposto nos artigos 72.º, n.º 5, e 175.º, n.º 4, do Código da Estrada. Assim, a questão decidenda nos presentes autos consiste em se apurar da gravidade da infracção e se se encontram preenchidos os pressupostos para a suspensão da execução da sanção de inibição de conduzir».

Mas «… só em audiência de julgamento é atribuído à confissão o seu valor especial de meio de prova e, mesmo neste caso, fica sujeita ao controle do tribunal sobre o seu carácter livre, a veracidade dos factos confessados…» [Código de Processo Penal Anotado, de Simas Santos e Leal Henriques, 2.ª edição, II volume, p. 364].

Ora, não foi permitido à recorrente pronunciar-se sobre a veracidade dos «factos confessados», incluindo-os, sem mais, no acervo factual provado.

Admitindo-se e concordando-se mesmo que em causa estará não o n.º 1 do artigo 32.º da CRP, mas «apenas» o seu n.º 10, aplicável aquele em processo penal e este em processo contra-ordenacional, teremos de admitir alguma hipocrisia se dissermos que, sendo ao arguido conferidos os «direitos de audição e de defesa» – n.º 10, citado –, se haja de limitar (ainda) esta defesa a questões subsequentes a uma anunciada e legalmente imposta condenação: o cerne da questão, o crime é indiscutido e indiscutível.

Só que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado de sentença de condenação, devendo ser julgado … com as garantias de defesa – artigo 32.º, n.º 2, da CRP.

Ora, a nosso ver, a falada restrição apenas pode ser aportada a uma mera presunção – juris tantum – de que o pagamento voluntário da coima implica a prática da contra-ordenação, mas não a de que tal pagamento implica necessariamente a presunção inilidível – juris et de jure – do cometimento da infracção.

Deste modo, a consagrada presunção constitucional de inocência é afastada, e de modo...

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