Acórdão n.º 164/2008, de 10 de Abril de 2008

Acórdáo n. 164/2008

Processo n. 1042/07

Acordam na 3.ª Secçáo do Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - O presente recurso vem interposto pelo Ministério Público, com natureza obrigatória, ao abrigo do artigo 280., n. 1, alínea a), e n. 3, da CRP e dos artigos 70, n. 1, alínea a), e 72., n. 3, ambos da LTC, do despacho proferido pelo Ex.mo Juiz da 8.ª Vara Criminal de

16392 Lisboa em 8 de Outubro de 2007 (fls. 225 a 231), que recusou a aplicaçáo do disposto no artigo 371. -A do Código de Processo Penal, na interpretaçáo segundo a qual pode o condenado requerer a abertura da audiência para aplicaçáo de uma lei nova mais favorável apenas para ponderaçáo da natureza ou medida da pena que náo viola o limite máximo abstractamente fixado para a incriminaçáo, por violaçáo do princípio constitucional de respeito pelo caso julgado, ínsito nos artigos 2., 111., n. 1, e 205., n. 2, e 282., n. 3, da Constituiçáo da República Portuguesa (fls. 231).

Entre outras consideraçóes, a decisáo recorrida entendeu que:

Por isso, quanto a tais limites, se aceita que atinjam o caso julgado, em salvaguarda a liberdade das pessoas e da igualdade da sua situaçáo face aos demais cidadáos que praticaram idênticas condutas posterior-mente (ou que sáo julgados posteriormente).

Mas este raciocínio já náo pode ser aceite sem restriçóes quanto aos restantes casos que já resultaram em condenaçáo com trânsito em julgado.

Numa primeira linha de argumentaçáo, é verdade que, como se afirma, novamente, no Acórdáo n. 644/98 do Tribunal Constitucional, 'a superveniência de uma lei penal cujo conteúdo pudesse, num juízo prospectivo, apontar para a possibilidade de, em concreto, ser mais favorável ao arguido, náo obstante este já ter sido condenado por decisáo judicial transitada, iria criar uma enormíssima perturbaçáo na ordem dos tribunais judiciais'.

Como explica aquele alto tribunal (contra o entendimento expresso em alguns votos de vencido), a aplicaçáo de um novo regime penal náo é algo de aplicaçáo automática, matemática ou aritmética; implica, isso sim, a realizaçáo de um efectivo novo julgamento, ainda que parcial.

Por um lado, o tribunal da condenaçáo náo tem de ter a mesma composiçáo [parece mesmo que actualmente nenhum dos juízes do anterior julgamento pode intervir na reapreciaçáo da causa face ao impedimento criado pela revisáo do Código de Processo Penal operada pela Lei n. 48/2007, de 28 de Agosto, quanto ao artigo 40.,alínea c), desse Código].

Ainda que se defendesse que o tribunal da condenaçáo tinha de ser o mesmo, quando tal já náo pudesse acontecer (designadamente em caso de cessaçáo de funçóes ou morte), apenas a integral repetiçáo do julgamento permitiria a aplicaçáo do novo regime.

Ainda que esteja em causa 'apenas' a aplicaçáo de um novo regime penal nenhuma vinculaçáo pode existir para o tribunal quanto ao anterior juízo de culpa, à sua medida ou à consideraçáo dos fins das penas.

No limite estará o tribunal impedido de alterar os factos provados (mesmo a situaçáo pessoal do arguido náo poderá ser revista, pois apenas se prevê uma aplicaçáo de um novo regime penal).

Náo tendo o caso julgado protecçáo face a qualquer mudança da lei penal (só se conhecerá do seu carácter mais favorável em concreto depois da aplicaçáo), estar -se -á a obrigar à repetida realizaçáo de um juízo sobre a tipicidade dos factos, grau de culpa, fins de prevençáo que se faziam sentir, medida e espécie da pena concreta.

Nada obriga à manutençáo de tais juízos, que seráo feitos por diferentes aplicadores, a menos que o regime jurídico aplicável em concreto se mantenha absolutamente imodificado.

Por exemplo, com a introduçáo em lei nova de uma alteraçáo na medida abstracta da pena correspondente a uma incriminaçáo náo se impóe a correspondente proporcionalidade na medida concreta; como, a propósito da ponderaçáo de uma medida substitutiva de pena anterior, nada obriga ao respeito das consideraçóes adoptadas na anterior condenaçáo.

Mesmo nos casos em que o Tribunal da Relaçáo ou o Supremo Tribunal de Justiça modificaram a decisáo da 1.ª instância, é duvidoso que este tribunal esteja vinculado a superiores considerandos.

Em síntese, aplicar um novo regime jurídico náo consiste em mera aplicaçáo de aritmética, neutra, mas sempre na realizaçáo de um novo julgamento (através da realizaçáo de um juízo de culpa, do seu grau, da ponderaçáo humana sobre os fins das penas e da ponderaçáo sobre o valor dos factos).

As razóes expostas em primeira linha náo se referem, em rigor, a questóes de difícil praticabilidade (que sáo muitas), mas à inaceitabili-dade da repetiçáo de um juízo de culpa a propósito de qualquer mudança quantitativa ou qualitativa das penas abstractamente aplicáveis em cada caso concreto.

Náo é que se esteja a pretender aplicar a esta situaçáo o disposto no artigo 29.°, n.° 5, da Constituiçáo, mas a verdade é que a certeza e segurança jurídicas próprias de um Estado de direito democrático impóem que, mesmo a favor de um condenado, náo se possa determinar constantemente a reapreciaçáo de uma condenaçáo (note -se o número de alteraçóes só do actual Código Penal, sem ponderaçáo de outra legislaçáo penal).

De outra forma também náo se compreende a restriçáo dos casos em que é possível a revisáo das sentenças penais, até porque essa revisáo

poderia trazer para o condenado mais benefícios do que a aplicaçáo de uma nova lei penal.

É verdade que por esta via existirá alguma diferença entre os condenados, com condenaçáo transitada em julgado, antes e depois da entrada em vigor de uma nova lei penal.

Mas essa desigualdade é, por vezes, inultrapassável, justifica -se pela necessidade social da segurança e certeza jurídicas e tem como limite o que se entende ser, em cada momento, como necessário para um tipo de situaçáo (a desigualdade é inultrapassável nos casos em que a pena cominada na nova lei apenas poderia ser aplicada retroactivamente; os casos mais comuns sáo, como o dos autos, os dos condenados a pena superiores entre 3 e 5 anos de prisáo, cuja suspensáo da execuçáo se poderia equacionar face ao estipulado no artigo 50.° do Código Penal, mas em que, a ser concedida tal suspensáo, nos termos do disposto no artigo 51.° do Código Penal, os condenados ficariam obrigatoriamente sujeitos a regime de prova com a mesma duraçáo da pena, mas esse período já decorreu em boa parte).

Numa outra linha de argumentaçáo, também sustentada no Acórdáo n. 644/98, náo é verdade que as leis de amnistia e os perdóes (genéricos ou náo) também violem o caso julgado; e a referência a essas figuras é útil precisamente porque permitem compreender o argumento anterior. Para além do pensamento constante do mencionado aresto, e afastando os perdóes singulares, porque esses, sim, póem em causa o princípio da igualdade sem qualquer fundamento de idêntico valor, é fácil verificar que as amnistias e perdóes genéricos afectam o conteúdo de uma decisáo já transitada em julgado, mas náo afectam qualquer juízo concretizado a propósito da condenaçáo e, dessa forma, náo violam a protecçáo do caso julgado.

Ou seja, as amnistias e os perdóes genéricos incidem directamente sobre o dispositivo de uma condenaçáo e náo sobre a ponderaçáo judicial que levou a esse dispositivo.

Perdoar uma pena de prisáo ou amnistiar uma infracçáo náo exige a repetiçáo de um qualquer juízo concreto de culpa e ponderaçáo dos fins concretos das penas próprios de uma condenaçáo, táo -só uma decisáo genérica relativa ao resultado da condenaçáo já transitada em julgado.

Pode uma lei nova, ao fazer variar os limites das penalidades correspondentes a uma incriminaçáo, determinar a mesma variaçáo (desde que seja favorável) para todos os condenados com decisáo transitada em julgado, sem violaçáo do princípio do caso julgado; e isto ocorre, precisamente, porque náo se repete o julgamento ou a condenaçáo (pode, por exemplo, uma lei alterar a pena que consta de uma incriminaçáo que variava entre 30 dias e 5 anos de prisáo e passou a variar entre 30 dias e 4 anos de prisáo, e determinar que todos os condenados segundo essa incriminaçáo vejam perdoado um quinto da sua pena de prisáo).

2 - Perante esta decisáo, o Ministério Público fixou o objecto do recurso, para si obrigatório, nos seguintes termos:

[...] notificado do despacho de V. Ex.ª, com data de 8 de Outubro de 2007, exarado a fls. 225 dos autos supra -referenciados, no qual se recusa a aplicaçáo do disposto no artigo 371. -A do Código de Processo Penal, com fundamento na sua inconstitucionalidade enquanto interpretado no sentido de que o condenado pode requerer a reabertura da audiência para aplicaçáo de uma lei nova mais favorável apenas para ponderaçáo da natureza ou medida da pena que náo viola o limite máximo abstractamente fixado para a incriminaçáo, por violaçáo do caso julgado, ínsito nos artigos 2., 111., n. 1, 205., n. 2, e 282., n. 3, da Constituiçáo da República Portuguesa, dele vem interpor recurso

(fl. 239).

3 - Notificado para alegar, o Ministério Público apresentou as suas alegaçóes, cujo teor ora se reproduz:

1 - Apreciaçáo da questáo de constitucionalidade suscitada:

1.1 - Foi interposto recurso obrigatório pelo Ministério Público, nos termos dos artigos 70.°, n. 1, alínea a), e 72°, n. 1, alínea e), e n. 3, ambos da Lei n. 28/82, de 15 de Novembro, tendo por objecto a apreciaçáo da conformidade constitucional da norma do artigo 371.° -A do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que o condenado pode requerer a reabertura da audiência para aplicaçáo de uma lei nova mais favorável apenas para ponderaçáo da natureza ou medida da pena, que náo viola o limite máximo abstractamente fixado para a incriminaçáo, a que a decisáo recorrida recusou aplicaçáo por entender verificar -se violaçáo do princípio constitucional de respeito pelo caso julgado, ínsito nos artigos 2.°, 111.°, n. 1, 205.°, n. 2, e 282., n. 3, da Constituiçáo.

1.2 - Vai a decisáo recorrida buscar o essencial da sua fundamentaçáo à tese que fez vencimento...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT