Acórdão nº 620/07 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Dezembro de 2007
Magistrado Responsável | Cons. Carlos Fernandes Cadilha |
Data da Resolução | 20 de Dezembro de 2007 |
Emissor | Tribunal Constitucional (Port |
ACÓRDÃO N.º 620/2007
Processo n.º 1130/2007
Plenário
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
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Relatório
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O Presidente da República requereu, nos termos do n.º 1 do artigo 278.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do n.º 1 do artigo 51.º e do n.º 1 do artigo 57.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade com a Constituição da República das seguintes normas do Decreto da Assembleia da República n.º 173/X, recebido na Presidência da República no dia 21 de Novembro de 2007 para ser promulgado como lei:
- norma constante do n.º 3 do artigo 2.º e, a título consequente, as normas do n.º 2 do artigo 10.º e do n.º 2 do artigo 68.º;
- normas constantes do proémio do n.º1 do artigo 80.º assim como das respectivas alíneas a) e c); do proémio do n.º 1 do artigo 101.º e das suas alíneas a) e b) bem como do n.º 2 do mesmo preceito; e do proémio do n.º 1 do artigo 112.º assim como das respectivas alíneas a), b) e c);
- normas constantes da alínea b) do n.º 2 e do n.º 4 do artigo 35.º;
- norma constante do n.º 3 do artigo 36.º bem como, a título consequente, as normas previstas nos n.ºs 4 e 5 do mesmo artigo e, ainda, com fundamento em reenvio para o n.º 3 do artigo 36º, a norma constante do n.º 2 do artigo 94.º;
- norma constante do n.º 2 do artigo 54.º;
- norma constante do n.º 1 do artigo 55.º conjugada com as demais normas do mesmo preceito;
- norma constante do n.º 8 do artigo 56.º;
- norma constante do nº 3 do artº 68º e norma prevista no nº 5 do mesmo artigo.
Fundamentou o seu pedido nas seguintes ordens de considerações:
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As normas que são objecto do presente pedido de fiscalização da constitucionalidade integram o decreto aprovado pela Assembleia da República que «estabelece os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas», o qual revoga, em bloco, toda a legislação vigente sobre a mesma matéria, nela se encontrando incluída legislação de bases, como é o caso do Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, que estabelece princípios gerais em matéria de emprego público, remunerações e gestão do pessoal da função pública.
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O decreto sindicado, pese o facto de incidir no âmbito de uma matéria relativamente à qual a alínea t) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP prevê a edição de legislação de bases, não se auto-qualifica como um acto legislativo dessa natureza, embora contenha no seu preceituado, a par de uma normação maioritária de tipo comum, diversos princípios gerais e comandos paramétricos sobre outras leis, susceptíveis de serem identificados como bases gerais, pelo que, em razão do valor heterogéneo das disposições que o integram, o mesmo acto é passível de ser qualificado como uma lei «mista».
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Aplicação do diploma aos magistrados dos tribunais judiciais
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A norma constante do n.º 3 do artigo 2º do decreto, a qual dispõe sobre o seu âmbito subjectivo de aplicação, determina expressamente que «sem prejuízo do disposto na Constituição e em leis especiais, a presente lei é ainda aplicável, com as necessárias adaptações, aos juízes de qualquer jurisdição e aos magistrados do Ministério Público».
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O n.º 1 do artigo 215.º da CRP determina que os juízes dos tribunais judiciais «formam um corpo único e regem-se por um só estatuto», do que decorre:
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Que a mesma categoria de juízes possui uma especificidade estatutária própria em face dos restantes juízes, bem como em relação ao Ministério Público e aos funcionários públicos em geral;
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Que sendo os tribunais judiciais órgãos de soberania (n.º1 do artigo 110.º da CRP) e os juízes titulares dos mesmos órgãos (n.º 1 do artigo 215.º da CRP), impõe-se que o conteúdo nuclear e funcional do seu estatuto conste necessariamente de lei aprovada pela Assembleia da República ao abrigo da sua reserva absoluta de competência legislativa (alínea m) do artigo 164.º da Constituição).
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Não deixa de ser legítimo inferir, no plano lógico e no teleológico, sob pena de incongruência, que se a norma do n.º 3 do artigo 2.º do decreto coloca os juízes dos tribunais judiciais no âmbito subjectivo de aplicação desse mesmo diploma é porque se propõe dispor utilmente sobre o estatuto dos mesmos juízes, matéria que figura no Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ).
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Ora, quanto ao sentido dessa incidência normativa, não tendo a disposição constante do n.º 3 do artigo 2.º do decreto que salvaguarda a vigência de leis especiais qualquer intenção derrogatória do EMJ pelo diploma “sub iuditio”, restará circunscrever a aplicação útil e possível do referido decreto aos magistrados, a apenas dois tipos de relações jurídico-normativas, a saber:
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A sua aplicação como legislação supletiva em relação ao EMJ;
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A aplicação paramétrica de alguns dos seus princípios ou bases gerais ao conteúdo do EMJ, quando tal decorra do decreto.
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Abordando a hipótese da supletividade configurada na alínea a) do número anterior, resulta da Constituição que os juízes dos tribunais judiciais são titulares de órgãos de soberania, cuja independência funcional e orgânica é, por seu turno, predicada pelas garantias de independência, inamovibilidade e irresponsabilidade dos mesmos magistrados, pelo que caberá em exclusivo ao respectivo estatuto – ao qual o artigo 215.º da CRP impõe um conteúdo necessariamente especial – determinar qual a legislação supletiva que lhe será aplicável e qual o âmbito dessa aplicação.
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Verifica-se, por conseguinte, à luz dessa especialidade estatutária conformada por força de uma imposição constitucional, que:
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Uma realidade será o EMJ, como lei especial constitucionalmente qualificada e integrada na reserva absoluta de competência legiferante da Assembleia da República, definir qual a legislação supletiva que se lhe aplica;
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Outra, bem diferente, será uma lei integrada na reserva relativa de competência da mesma Assembleia, assim como na esfera concorrencial desta com o Governo e tendo por objecto o estabelecimento dos regimes de vinculação de carreiras e de remunerações dos trabalhadores da função pública, impor-se ao EMJ como legislação subsidiária.
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A solução contida no decreto que se encontra em apreciação é precisamente a inversa da solução constitucionalmente exigível e que consta da alínea a) do número anterior deste pedido, dado que do n.º 3 do artigo 2.º do decreto (conjugado com outras disposições, como a do artigo 101.º), se retira uma imposição de aplicação aos juízes, dos regimes dos trabalhadores que exercem funções públicas, mesmo na eventual qualidade de legislação supletiva, invertendo-se a regra decorrente do n.º 1 do artigo 215.º da CRP que reserva ao estatuto único dos magistrados judiciais a regulação de todo o regime legal que lhes é funcionalmente aplicável, nele compreendida a determinação da legislação subsidiária.
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Por consequência, o facto de o n.º 3 do artigo 2.º do decreto deslocar a determinação de legislação subsidiária virtualmente aplicável ao EMJ, do estatuto para os regimes de vinculação, carreiras e remunerações da função pública, não deixa de poder ter como efeito a sua inconstitucionalidade, bem como a inconstitucionalidade consequente de outras normas do diploma aplicáveis aos juízes como o nº 2 do artº 10º e o nº 2 do artº 68º, dado que:
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O alargamento do âmbito material da legislação subsidiária aplicável aos juízes, em relação àquele que se encontra presentemente consagrado circunscritamente no n.º 2 do artigo 10º-A, no artigo 32.º, no artigo 69.º e no artigo 131.º do EMJ, altera, por força de uma ampliação operada por lei geral, a previsão mais restrita do direito supletivo fixada por essas normas estatutárias, o que envolve a sua inconstitucionalidade fundada em violação da especialidade qualificada do EMJ, garantida pelo n.º 1 do artigo 215.º da CRP, da qual decorre que seja apenas o estatuto a identificar a respectiva legislação subsidiária;
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A assimilação ou equiparação, mesmo parcial, do cargo dos juízes – titulares de órgãos de soberania cujo exercício de funções é garantido pelos princípios constitucionais da independência, inamovibilidade e irresponsabilidade – ao estatuto qualitativamente diverso dos trabalhadores da função pública, o qual supõe uma relação de hierarquia e dependência funcional com a tutela do Governo (artigo 182.º da CRP) e a aplicação dos regimes relativos às relações de emprego e trabalho subordinado, suscita a questão da inconstitucionalidade da norma sindicada, por ofensa aos princípios constantes do artigo 203.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 216.º da CRP;
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Abordando agora as relações de parametricidade a que se refere a alínea b) do número 6º do pedido, cumpre identificar, pelo menos, três disposições normativas legais sobre a normação constantes do decreto que se afiguram susceptíveis de definição como legislação de bases e que vertem comandos vinculativos sobre diversas leis especiais, das quais o Estatuto dos Magistrados Judiciais não se encontra excluído, como será o caso:
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Da norma que declara a prevalência do próprio decreto e de leis que o regulamentem sobre «leis especiais aplicáveis a carreiras especiais» e que emerge da conjugação do proémio do n.º 1 do artigo 80.º do decreto e das suas alíneas a) e c) com o n.º 2 do artigo 10.º, dela resultando a exigência de conformidade do EMJ com princípios estruturantes do diploma em matéria de nomeação;
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Do disposto no n.º 1 do artigo 101.º, que prescreve a obrigatoriedade de revisão das leis que aprovam regimes especiais e corpos especiais no prazo de 180 dias, tendo por fim a observância dos princípios e objectivos fixados nas correspondentes alíneas, bem como no n.º 2, não se encontrando excepcionadas as leis especiais que aprovam o estatuto dos juízes e dos magistrados do Ministério Público;
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A norma constante do n.º 1...
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