Acórdão nº 07S3528 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 19 de Dezembro de 2007

Magistrado ResponsávelPINTO HESPANHOL
Data da Resolução19 de Dezembro de 2007
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça: I 1.

Em 19 de Outubro de 2005, no Tribunal do Trabalho do Porto, Empresa-A, L.da, intentou a presente acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho contra AA, pedindo que, declarada ilícita a resolução do contrato de trabalho por parte da ré trabalhadora, esta fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 15.362,44, a título de indemnização por todos os prejuízos sofridos, acrescida dos juros de mora legais vencidos até integral pagamento.

Alegou, em síntese, que admitiu a ré ao seu serviço, em 1 de Junho de 2000, mediante contrato de trabalho sem termo, mas que aquela sua trabalhadora, em 30 de Junho de 2005, invocando justa causa, resolveu o contrato de trabalho, sendo que nunca aceitou os fundamentos invocados para tal resolução, o que logo, e por mais de uma vez, lhe manifestou, sempre se tendo disponibilizado para pagar as férias e o respectivo subsídio vencidos em 1 de Janeiro de 2005 e os proporcionais de férias e de subsídios de férias e de Natal relativos a 2005, o que a ré recusou, reclamando também o pagamento de indemnização pela resolução do contrato de trabalho.

Entretanto, foi confrontada com diligência para arresto de todos os seus bens para garantia do pagamento da quantia de € 10.245,47, decretada em providência cautelar intentada pela ré, em 4 de Agosto de 2005, arresto que, a consumar-se, iria determinar o seu encerramento imediato, com o consequente abandono das várias dezenas de crianças e jovens que recorrem aos seus serviços de apoio psicológico, pedagógico e terapêutico, bem como enormes prejuízos ao seu bom nome e imagem, pelo que, para que a ré desistisse do referido arresto, viu-se obrigada a celebrar, em 8 de Setembro de 2005, acordo para pagamento dos alegados créditos, o que fez sem que, em momento algum, tivesse reconhecido a existência da totalidade da dívida ou aceite a existência de justa causa.

A ré contestou, alegando que a autora, em 8 de Setembro de 2005, aceitou pagar-lhe, sem qualquer reserva, além dos demais créditos, a indemnização por resolução do contrato com justa causa, assim os reconhecendo, em consequência do que, após a cobrança do cheque que titulou esse pagamento, requereu a extinção da instância relativa ao procedimento cautelar, por inutilidade superveniente da lide.

No despacho saneador, que conheceu do mérito da causa, julgou-se a acção improcedente, absolvendo-se a ré do pedido, por se considerar que se verificava, por parte da autora, abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

  1. Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação, que o Tribunal da Relação julgou improcedente, confirmando a decisão recorrida, sendo contra esta decisão do Tribunal da Relação que a autora agora se insurge, mediante recurso de revista, em que formula as seguintes conclusões: «1.º Segundo os Venerandos Desembargadores que negaram provimento ao recurso de apelação deduzido pela Recorrente Empresa-A, as duas questões juridicamente relevantes, face ao objecto dessa apelação, para uma boa decisão da causa, foram: a) A repercussão do Acordo de Pagamento celebrado entre as partes no direito da Recorrente, entidade patronal, de impugnar judicialmente, porque ilícita, a resolução do contrato de trabalho aqui em causa; b) A existência ou não de abuso de direito; 2.º Ora, pela análise cuidada do acórdão recorrido, verifica-se que o acordo celebrado entre as partes e a sua repercussão nos direitos da sociedade Recorrente foi o ponto decisivo para os Venerandos Desembargadores chegarem à decisão final, totalmente contrária às pretensões da Recorrente, pois apenas se debruçaram sobre esta questão de Direito, fazendo uma análise exaustiva e minuciosa da mesma; 3.º Sucede que os Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, ao apreciarem tal questão, extravasaram claramente o objecto do presente recurso, pois as conclusões formuladas pelo recorrente delimitam esse mesmo objecto e a posterior apreciação jurídica do mesmo por parte do tribunal competente, conforme dispõe a respectiva lei processual; 4.º Desde logo, do teor da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, conclui-se que a respectiva Juíza julgou improcedente a acção, apenas e tão só por considerar que se estava perante uma situação prática que, objectivamente, se podia integrar num caso de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, que tornava ilegítimo o uso pela Recorrente desse direito a intentar essa mesma acção, não tendo utilizado qualquer outro argumento jurídico na douta decisão recorrida; 5.º Da mesma forma e, por maioria de razão, a Recorrente, como se pode comprovar pelas suas conclusões de recurso, apenas baseou o objecto do mesmo na eventual existência de abuso de direito, tendo discordado da interpretação, a seu modesto ver, incorrecta, que essa sentença fazia do artigo 334.º do Código Civil, sendo certo que a Recorrente também não fez uso de qualquer outra fundamentação jurídica para sustentar a sua posição neste processo; 6.º Assim, o douto acórdão recorrido, ao apreciar, da forma tão exaustiva como o fez, uma questão de Direito que não foi suscitada, nem sequer aflorada pela Recorrente nas conclusões do seu recurso nem foi levantada pela Juíza do Tribunal do Trabalho na sentença recorrida, foi para além do que a lei processual dispõe, por ultrapassar largamente o âmbito do objecto deste recurso, nos termos do disposto nos arts. 684, n.º 3, e 690, n.os 1 e 3, do C.P.C., aplicáveis ex vi do disposto nos arts. 1.º e 87.º do C.P.T.; 7.º Pelo que a apreciação jurídica desta questão, que foi decisiva para a decisão tomada nesse acórdão, não deve ser tida em consideração na análise do objecto deste recurso, para todos os efeitos legais; 8.º Mas, mesmo que assim não fosse, sempre se dirá que, da análise da matéria de facto considerada provada na 1ª instância, se conclui facilmente que, em nenhum momento de todo este processo, a Recorrente reconheceu ou confessou a existência de justa causa de resolução do contrato por parte da Recorrida e, por maioria de razão, que esta tivesse direito à respectiva indemnização; 9.º Sendo certo que também não se pode retirar minimamente essa conclusão pelo teor do acordo, que só foi celebrado, porque não havia outro meio, legal ou outro, que pudesse evitar a concretização do arresto nesse mesmo dia, o que traria consequências desastrosas para a empresa, como se encontra provado; 10.º Mais, a hipótese sugerida pelos Venerandos Desembargadores de a Recorrente fazer valer os seus direitos, lançando mão do recurso ou da oposição, nos termos do art. 388° do C.P.C., não era viável, pois, na prática, significaria que a Recorrente teria de fechar de imediato, pois ficaria desapossada de todos os seus bens, e, por isso, não poderia continuar a laborar, até que houvesse uma decisão final sobre o caso, o que poderia levar meses, o que seria incomportável para a Empresa-A e para os jovens que dependem do seu trabalho; 11.º Resta-nos então analisar a questão, e é só esta, que deve ser apreciada para uma boa decisão neste processo, que tem a ver com a existência ou não de abuso de direito por parte da Recorrente e, desde logo, convirá referir que não deixa de ser sintomático que os Venerandos Desembargadores praticamente ignorem esta questão na fundamentação jurídica do acórdão, limitando-se, nessa parte, a remeter para as considerações feitas na sentença do Tribunal do Trabalho de Santo Tirso, abstendo-se assim de efectuar, uma análise mais profunda e rigorosa do instituto do abuso de direito e da sua aplicação no caso em apreço; 12.º O acórdão recorrido acaba por não responder minimamente a todas as dúvidas e questões pertinentes levantadas pela Recorrente nas suas conclusões sobre essa matéria, sendo certo que a apreciação cuidada e a posterior procedência das mesmas era e é essencial para uma boa decisão da causa, e, por via disso, para se concluir de que não existe aqui qualquer abuso de direito por parte da Recorrente; 13.º De facto, para existir abuso de direito, na forma de venire contra factum proprium, tal como está definido no artigo 334.º do Código Civil e é unanimemente aceite na doutrina e jurisprudência (Cfr. Galvão Telles, Obrigações, 3.ª Ed., 6; Ac. RC, 8-11-1983, CJ, 1983, 5.º-52; Ac. STJ, 8-11-1984, BMJ, 341.º-418; Ac. STJ, 10-4-1991, AJ, 18.º-23; Ac. RP, 19-5-1994, CJ, 1994, 3.º-211; Ac. STJ, 3-5-1990.T J, 6.º-315), é fundamental: - Que o respectivo titular exceda manifestamente os limites impostos nesse artigo 334.º; - Em termos clamorosamente ofensivos da justiça; - De uma forma anormal quanto à sua intensidade ou à sua execução; - Pressupondo a existência de dolo, não se bastando com a negligência, mesmo que grosseira; - Havendo ainda uma conduta contraditória por parte do titular, que crie a convicção justificada na contraparte de que tal direito não será exercido; - Nomeadamente, quando deixa passar muito tempo sem o exercer; - Quando a contraparte tomou medidas com base nessa convicção; - E quando tal exercício lhe acarreta agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado; 14.º Ora, da análise dos factos constantes do processo, é fácil chegar-se à conclusão que, no caso em apreço, não se verifica nenhuma das condições tidas por necessárias para que haja abuso de direito na modalidade referida pela Mmª Juíza do Tribunal de 1ª instância; 15.º Desde logo, não existe qualquer conduta contraditória por parte da Recorrente, que possa legitimar a convicção justificada da Recorrida de que a presente acção nunca seria intentada, porquanto a Recorrente sempre referiu ao longo deste tempo que não concordava de todo com os motivos invocados pela Recorrida para a resolução por justa causa do contrato de trabalho em causa e disse-lhe isso logo pessoalmente, depois, através de carta enviada em 27 de Junho de 2005 e, posteriormente, em 30/06/05, quando lhe...

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