Acórdão nº 1536/09.3GDLSB.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 06 de Dezembro de 2011

Magistrado ResponsávelANA BARATA BRITO
Data da Resolução06 de Dezembro de 2011
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1.

No processo nº 1536/09.3GDLSB do 2ºjuízo do Tribunal Judicial de Portalegre foi proferido acórdão que condenou o arguido PL, pela prática em co-autoria e em concurso efectivo de um crime de roubo dos arts 26°, 210° nºs 1 e 2 alínea b), na pena de 5 (cinco) anos de prisão; de um crime de roubo tentado dos arts 26°, 210° nºs 1 e 2 alínea b), na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão; de um crime de sequestro dos arts 26° e 158° n° 1 todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão; e, em cúmulo, na pena única de 6 (seis) anos de prisão. Mais foi decidido absolver o arguido da prática de um crime de detenção de arma proibida dos art. 2° n° 1 alínea a), art. 86° n° 1 alínea c) e n° 2 todos da Lei nº 5/2006 de 23/02, na redacção dada pela Lei nº 17/2009 de 6 de Maio.

Inconformado com o assim decidido exclusivamente na parte respeitante à absolvição, recorreu o M.P., concluindo da forma seguinte: “1.Vem o recurso interposto do acórdão absolutório proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre no âmbito do Proc. N.º 1536/09.3GDLSB, que absolveu o arguido PL da prática do tipo objectivo de ilícito de detenção de arma do art.º 2º, nº 1, alínea ar), art.º 86º, nº 1, alínea c) e nº 2, todos da Lei nº 5/2006 de 23/02, na redacção que lhe foi conferida pela Lei nº 17/2009 de 6 de Maio. Decisão absolutória com a qual não se concorda.

  1. Consabidamente, o princípio fundamental em matéria de aplicação da lei penal no espaço é o princípio da territorialidade (neste sentido, Prof. Albin Eser, For Universal Jurisdiction: Against Fletcher" s Antagonism, Tulsa Law Review, n. 39, 2003-2004, pp. 954; Prof. D. Ohler, Internationales Straftrecht, 2, Aufl., Koln/Berlin, 1983 && 3-7; Prof. D. Flore, Reconnaissance mutuelle, double incrimination et territorialité, La Reconnaissance mutuelle, 2002, pp. 74; Prof. C. Amaltifano, Confliti di giurisdizione e riconoscimento delle decisioni penali nella Unione europea, Milano, Giufré, 2006, pp. 32, nota 51).

  2. “O Estado aplica o seu direito penal a todos os factos penalmente relevantes que tenham ocorrido no seu território, com indiferença por quem ou contra quem foram tais factos cometidos" (neste preciso sentido, Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Volume I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 230).

  3. Pelo que o princípio da territorialidade, na sua dimensão positiva, estipula que qualquer infracção penal praticada dentro de um Estado, dá a esse Estado o poder de julgar e punir (neste sentido, Prof. José de Faria Costa, O princípio da territorialidade: entre Portugal e o Brasil, Revista de legislação e de jurisprudência, Coimbra, Coimbra Editora, Ano 137, n23950, Maio - Junho de 2008, pp. 285-293; no mesmo sentido, Prof. Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais de Direito Penal, Teoria Geral do Crime, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 208- 237; neste sentido, na vertente da globalização e dos problemas do direito penal transnacional, Prof. Augusto Silva Dias, "Dellicto in se" e "Delicta mere prohibita"; uma análise das descontinuidades do ilícito penal moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica, Tese de Doutoramento, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 223 e ss).

  4. Todavia, para obviar às assimetrias emergentes da delimitação da jurisdição punitiva de cada Estado Membro da União Europeia, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem-se debruçado, em sede de reenvio prejudicial de interpretação do art. 54.º da Convenção de Aplicação do Acordo Schengen (neste sentido, Prof. Anabela Miranda Rodrigues, Direito Penal Europeu, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 123 e ss; sobre o papel do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias em matéria de terceiro pilar, Prof. Nuno Piçarra, Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e o novo espaço de liberdade, de segurança e de justiça, Revista Themis, Coimbra, Almedina, 2000, pp. 81 e ss).

  5. A norma fundamental que consagra a proibição do ne bis in idem é o art.º 54.º, da CAAS que, na formulação oficial de língua portuguesa, dispõe: Aquele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma acção judicial intentada por um outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja actualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão foi proferida".

  6. A partir daqui avulta muito mais a nebulosidade, do que a meridiana clareza, em torno da definição dos conceitos normativos densificados no art.º 54.º, do CAAS.

  7. Com efeito, o sentido e alcance que se devem atribuir em termos normativos aos conceitos "definitivamente julgado" (o problema do "bis") e de "mesmos factos" (o problema do "idem") constantes do art.º 54.º, da CAAS têm constituído acesa fonte de dúvidas e divergências no já perluxo e abundante panorama doutrinal (neste sentido, Prof. H. Schemers, Non Bis in Idem, Du Droit international au droit de l'integration, Liber Amicorum Pierre Pescatore, Baden - Baden, Nomos, 1987, pp. 611;) e jurisprudencial(Acórdão do Tribunal de Justiça Gozutok/Brugge, processos C - 187/01 (caso Gozutok), e C - 385/01 (caso Brugge); Acórdão do Tribunal de Justiça Miraglia, Processo C - 469/03, decidido em 10 de Março de 2005; Acórdão do Tribunal de Justiça Van Esbroeck, processo C - 436/04, decidido em 09 de Março de 2006; Acórdão do Tribunal de Justiça Van Straaten, processo C - 150/05, decidido em 28 de Setembro de 2006; Acórdão do Tribunal de Justiça Gasparini, processo C - 467/04, decidido em 28 de Setembro de 2006; Acórdão do Tribunal de Justiça Kraaijenbrink, processo C - 367/05, decidido em 18 de Julho de 2007; Acórdão do Tribunal de Justiça Kretzinger, processo C - 288/05, decidido em 18 de Julho de 2007; Acórdão do Tribunal de Justiça Bourquain, processo C - 297/07, decidido em 12 de Dezembro de 2008; Acórdão do Tribunal de Justiça Turanskv, processo C - 288/05, decidido em 22 de Dezembro de 2008).

  8. O denominador comum de todos os arestos do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias acima citados, é o traço absolutamente difuso e impreciso do recorte típico de "definitivamente julgado", e, primacialmente, a noção taxionómica de "mesmos factos".

  9. Donde a (imperiosa e inderrogável) necessidade de o Tribunal Recorrido, tendo como horizonte teleológico o apuramento do que são "os mesmos factos", suscitar a questão do reenvio prejudicial junto do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, tendo em vista esclarecer se a circunstância de o arguido cometer em Portugal um crime de roubo qualificado e um crime de sequestro, com recurso a detenção de arma proibida, e de, posteriormente, colocar-se em fuga para Espanha, com a referida arma proibida, onde é mais tarde detido, julgado e condenado pelo crime de detenção de arma proibida, arma proibida, essa, que foi a mesma que o arguido utilizou para realizar o roubo qualificado e o crime de sequestro em Portugal, preclude a possibilidade de, em Portugal, o mesmo arguido ser julgado e punido pela prática de um crime de detenção de arma proibida.

  10. E se, decorrentemente, o acervo fáctico acima referido engloba-se na noção de "os mesmos factos", nos termos e para os efeitos da noção terminológica de ne bis idem contida no art. 54º da Convenção de Aplicação do Acordo Schengen (CAAS), precludindo, assim, a possibilidade de o Estado Português perseguir criminalmente o arguido Pl pela prática do referido tipo legal de crime de detenção de arma proibida (art. 2º), art.º 86.º, alínea c), todos da Lei nº 5/2006 de 23/02, na redacção que lhe foi conferida pela Lei nº 17/2009 de 6 de Maio).

  11. Assim, o Tribunal recorrido, por não estar perante um acto claro (Acórdão do Tribunal de Justiça ClLFIT, Recueil, 1982, pp. 3430, n.2 17), no que tange à determinação do sentido, alcance, e limites do conceito terminológico de "os mesmos factos" (art.s 54.º, da CAAS), tinha sobre si o inafastável dever funcional de suscitar a questão do reenvio prejudicial junto do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, tendo em vista esclarecer a questão da (eventual) violação do princípio do ne bis idem (art.s 54.º, do CAAS) (Neste sentido, Prof. Manuel Nogueira Serens, A obrigação de Reenvio Prejudicial decorrente do art.s 234.9 & 3.9, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos de Ferreira de Almeida, Volume IV, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 639; e do efeito preclusivo do caso julgado (eventualmente) emergente da decisão emitida pelo Estado Espanhol (Neste sentido, sobre o sentido teleológico do caso julgado, João Conde Correia, O Mito do Caso Julgado e a Revisão Propter Nova, Tese de Doutoramento, Coimbra, Coimbra EditorajWolters kluwer, 2011, pp. 121-157).

  12. Deste modo, o Tribunal recorrido ao furtar-se à pronúncia expressa da necessidade (ou desnecessidade) de suscitar o reenvio prejudicial de interpretação do art.º 54.º, do CAAS para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, incorre na nulidade por omissão de pronúncia [art. 379.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP).

  13. O tribunal recorrido estava legal (art.º 1,º, n.º 1, do CP) e constitucionalmente (art.º 29.º, n.º 1, da CRP) obrigado a conhecer (exaustivamente) toda a matéria ilícita típica submetida à sua cognição (princípio da unidade ou da indivisibilidade do objecto do processo penal), na medida em que uma tal cognição corre no mesmo sentido do princípio da celeridade processual, e, reflexamente, das próprias garantias processuais de defesa do arguido.

  14. Porquanto, impendia sobre a douta decisão recorrida um mandado de esgotante apreciação daquele "pedaço de vida", daquele "facto histórico unitário", é dizer, daquele concreto e específico facto ilícito - típico sujeito à cognição do tribunal naquele processo penal.

  15. Eis que chegamos ao nódulo...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT