Acórdão nº 4719/10.0TBMTS-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 10 de Novembro de 2011

Magistrado ResponsávelALVES VELHO
Data da Resolução10 de Novembro de 2011
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. - AA e BB deduziram oposição à acção executiva para pagamento de quantia certa – 386.221,53€ e juros -, fundada em escritura pública de “confissão de dívida”, que lhes moveu CC.

Alegam, em suma, que não receberam da Exequente qualquer quantia a título de empréstimo e que, ainda que assim não fosse, sempre tal empréstimo seria nulo por falta de forma, não podendo a nulidade ser suprida por qualquer outro documento.

A Exequente contestou, pugnando pela improcedência da oposição. Alegou que os Oponentes não invocam a falsidade do título executivo, nem a existência de qualquer vício da vontade que pudesse inquinar a validade de tal documento, acrescentando que o documento dado à execução formaliza o contrato de mútuo, mas, mesmo que assim não fosse, sempre os Executados estariam obrigados à restituição à Exequente da quantia que lhes foi entregue, acrescida dos juros de mora legais.

No despacho saneador julgou-se a oposição parcialmente procedente, com a extinção da execução quanto ao montante de 3.174,53€, que representa juros moratórios convencionados, mas, no mais, determinou-se o prosseguimento da execução.

Os Executados interpuseram este recurso per saltum, pretendendo ver revogada a sentença e declarada a extinção total da execução, para o que argumentam nas conclusões da alegação, que se transcrevem: 1. Proposta uma execução com base em certo documento (dotado, formalmente, de força executiva), o fundamento da execução nunca é o próprio documento, outrossim a relação jurídica a que o documento se reporta.

  1. No caso dos autos, o fundamento do pretenso crédito da Exequente é um alegado contrato de mútuo de 386.221,53 euros.

  2. Não é possível um documento de confissão de dívida suportar uma acção executiva quando a confissão se refere a um (alegado) mútuo de valor superior a 25.000 euros, sem que tal contrato de mútuo tenha sido celebrado segundo a forma legalmente prescrita, forma essa que é o modo pelo qual devem ser expressas as declarações negociais constitutivas desse contrato.

  3. Não pode ser admitida execução para pagamento de quantia certa, a título de reembolso de mútuo de valor superior a 25.000 euros, se a execução não se fundar na respectiva escritura pública ou no respectivo documento particular autenticado, nos termos do disposto no art. 1143º do Código Civil.

  4. Para os efeitos do disposto no art. 364º do Código Civil, a formalidade exigida pelo art. 1143º do Código Civil para a celebração de contrato de mútuo constitui um requisito ad substantiam (e não meramente ad probationem), cuja falta é insusceptível de ser colmatada por outra qualquer via.

  5. Como tal, o n° 2 do art. 364º do Código Civil jamais poderá valer à Exequente destes autos, isto é, a omissão da forma prescrita no art. 1143º do Código Civil não pode ser suprida por outra via, nomeadamente pela confissão de dívida ajuizada.

  6. Na hipótese de a Exequente ter realmente emprestado 386.221,53 euros aos Executados, se as declarações negociais relativas ao negócio tivessem observado a forma exigida por lei, o título executivo destes autos teria de ser o respectivo documento, e não qualquer outro, pela que a presente execução não poderia ter por base o documento anexo ao requerimento executivo, dado que o mesmo (sendo mera confissão, sem virtual idade constitutiva do negócio) não tem condições de exequibilidade.

  7. E se, na mesma hipótese, as declarações negociais não tivessem sequer observado a forma legal, o alegado negócio de mútuo seria originariamente nulo, por vício de forma, não podendo essa falta ser suprida por um qualquer outro documento.

  8. A existência de uma confissão de dívida semelhante à constante do documento dado à execução apenas concede àquele que beneficia da confissão a dispensa da prova da relação fundamental, que se presume até prova em contrário, tal como resulta do n° 1 do art. 458º do CC.

  9. No nosso ordenamento jurídico, a regra é a da causalidade das obrigações e não a da abstracção, tanto mais que negócios puramente abstractos apenas existem no âmbito dos títulos de crédito, no direito comercial.

  10. Dado que a presunção fixada no nº 1 do art. 458º do Código Civil é apenas relativa, sempre teria de ser proporcionada aos Executados a oportunidade de ilidirem a presunção, o que é uma decorrência do princípio do contraditório e do direito de defesa, nos termos do art. 3º do Código de Processo Civil.

  11. Essa ilisão pode ser feita com recurso a argumentos de direito material, discutindo-se tanto a validade formal como a validade substancial do negócio, acrescendo que a natureza real quoad constitutionem do contrato de mútuo sempre impõe que ao alegado mutuário seja concedida a possibilidade de demonstrar que nenhuma quantia lhe foi entregue no âmbito do alegado mútuo.

  12. Ao contrário do que é (implicitamente) admitido na douta decisão recorrida, a circunstância de haver uma confissão de dívida expressa em escritura pública não impede a discussão (nomeadamente em oposição à execução) relativa à validade substancial e formal da obrigação assumida.

  13. Da conjugação dos arts. 1143°, 220°, 364°.1 e 458°.2 do Código Civil resulta que o documento dado à execução não tem a virtualidade de suprir a inobservância da formalidade exigida por lei para a emissão das declarações negociais relativas ao pretenso mútuo de 386.221,53 euros.

  14. A douta sentença recorrida, ao mesmo tempo que ignorou o regime do art. 458° do Código Civil, invocou o disposto no art. 371° do Código Civil, reconduzindo, indevidamente, a força probatória do documento autêntico à assunção da realidade material subjacente ao declarado perante o notário, realidade que está sempre excluída daquela força probatória.

  15. Tal opção levou a que o Tribunal convertesse num negócio abstracto aquilo que, por definição legal, é um negócio causal.

  16. Numa execução baseada em documento não constitutivo de um contrato de mútuo e do qual conste apenas a obrigação de entregar a quantia alegadamente mutuada, a declaração de nulidade do negócio correspondente implica que o documento não possa valer como título executivo, impondo a imediata extinção da execução.

  17. Nesse caso, declarada a nulidade, e mesmo assumindo que o alegado mutuário recebeu a quantia (recebimento não confirmado sequer nestes autos, já que o Tribunal impediu a prova sobre essa matéria), não será possível fazer prosseguir a execução com base no mesmo documento, a pretexto de que, então, se estará já em sede de efeitos da declaração de nulidade, providenciando pela restituição da quantia entregue, pois isso implicaria uma alteração da causa de pedir, não autorizada neste contexto.

  18. Serão inconstitucionais, por ofenderem o princípio do acesso ao direito e aos tribunais, na vertente do direito à defesa e ao contraditório, consagrado no art. 20° da Constituição da República, os arts. 371° e 458° do Código Civil e o art. 3° do Código de Processo Civil, se interpretados no sentido de que o subscritor de um documento autêntico de confissão de dívida relativa a um mútuo, demandado em execução com base nesse instrumento, fica impedido de questionar a validade formal do negócio subjacente ou de alegar que não recebeu a quantia em causa.

  19. Mostram-se violados os arts. 220°, 286°, 289°, 364°, 371°, 458° e 1143° do Código Civil, bem assim os arts. e 273° do Código de Processo Civil, impondo-se a revogação da douta decisão...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
8 temas prácticos
8 sentencias

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT