Acórdão nº 56/03.4TAETZ-D.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 18 de Outubro de 2011

Magistrado ResponsávelFERNANDO RIBEIRO CARDOSO
Data da Resolução18 de Outubro de 2011
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, precedendo conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I – Relatório No presente processo comum, vindo do Tribunal Judicial de Estremoz, por sentença de 02-07-2007, já transitada em julgado, foram condenados os arguidos J, BLda e VLda, pela prática de vários crimes, na forma continuada, de abuso de confiança fiscal e o primeiro ainda de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, em penas de multa, sendo certo que apenas o primeiro efectuou o respectivo pagamento e, consequentemente, essa pena foi declarada extinta.

O Ministério Público, considerando que das diligências realizadas foi apurado que as referidas sociedades arguidas já não laboravam, nem tinham bens susceptíveis de penhora, requereu que o arguido J, gerente das arguidas, à data dos factos, e também ele condenado pelos mesmos factos, fosse declarado responsável pelo cumprimento das penas de multa em que ambas as arguidas foram condenadas, nos termos do art. 8.º, n.º1 do RGIT, e que aquele fosse notificado para, no prazo de 10 dias, proceder ao seu pagamento ou requerer o pagamento em prestações.

Após notificação dos arguidos para se pronunciarem sobre a promoção do Ministério Público, e do arguido J se ter pronunciado no sentido da sua não responsabilização, foi proferido, em 14 de Abril de 2011, o seguinte despacho: “Por sentença, proferida em 2 de Julho de 2007 e transitada em julgado, foi o arguido J condenado pela prática de quatro crimes de abuso de confiança fiscal na forma continuada, previstos e punidos pelo artigo 105.º do RGIT e, bem assim, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 107.º e 105.º do RGIT, na pena única de 650 dias, à razão diária de €7,50, num total de €4.875,00. Pela mesma sentença foi a arguida BLda. condenada pela prática de dois crimes de abuso de confiança fiscal na forma continuada, previstos e punidos pelo artigo 105.º do RGIT, na pena única de 500 dias de multa, à razão diária de €5,00, num total de €2.500,00. Por fim, foi a arguida VLda. condenada pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, previstos e punidos pelo artigo 105.º do RGIT, na pena única de 250 dias de multa, à razão diária de €5,00, num total de €1.250,00.

Em sede de execução da pena, veio o Ministério Público, promover que o arguido J, por ser civil e solidariamente responsável, fosse notificado para proceder ao pagamento da multa em que foi condenada a sociedade arguida.

Regularmente notificado o arguido J veio opor-se ao requerido pelo Ministério Público por considerar que o disposto no artigo 8.º do RGIT é violador de princípios penais e constitucionais, nomeadamente o princípio da intransmissibilidade das penas e o princípio do non bis in idem, consagrados, respectivamente, no artigo 30.º n.º 3 e 29.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

Tendo tido conhecimento da posição assumida pelo arguido o Ministério Público veio reiterar a posição anteriormente manifestada.

Cumpre apreciar e decidir.

O artigo 8.º n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) – sob a epígrafe “Responsabilidade civil pelas multas e coimas” – estabelece a responsabilidade civil subsidiária dos administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por sua culpa que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento.

Para além desta responsabilidade subsidiária, prevê o n.º 7 do citado preceito que quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso (redacção dada pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro de 2005 – cujo teor equivale ao anterior n.º 6). Incorrerão nesta responsabilidade civil os co-autores e cúmplices de infracções tributárias, relativamente às sanções que vierem a ser aplicadas aos seus co-arguidos, cumulativamente com a sua própria responsabilidade.

Neste caso está-se perante uma solidariedade em primeiro plano, podendo as dívidas ser originariamente exigidas, desde logo, aos responsáveis solidários, independentemente da existência de bens do autor da infracção (neste sentido, LOPES DE SOUSA, Jorge e SIMAS SANTOS, Manuel – Regime Geral das Infracções Tributárias – Anotado, Áreas Editora, 2.ª edição [actualizada e ampliada], Janeiro de 2003, pág. 93/95 e Acórdão da Relação do Porto de 27 de Maio de 2009, processo n.º47/02.2IDPRT-B.P1, relator: Maria Leonor Esteves, www.dgsi.pt). Trata-se, portanto, de uma norma claramente distinta da prevista no n.º 1 do artigo 8.º do RGIT, porquanto nos casos aí previstos a responsabilidade é meramente subsidiária e respeita a crimes praticados por terceiro (a sociedade), suscitando-se a sua aplicação apenas em sede de execução, quando o património da sociedade seja insuficiente para o pagamento da multa que lhe foi aplicada e estiverem reunidos os demais pressupostos para desencadear a responsabilização subsidiária.

Saliente-se que o n.º 1 do artigo 8.º do RGIT já foi objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional no que se refere à sua constitucionalidade, não existindo uniformização da jurisprudência nesta matéria, senão vejamos.

Com efeito, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 26/2011 de 12 de Janeiro de 2011 (processo n.º 207/2010, Diário da República de 9 de Março de 2011, n.º 48, 2.ª Série, pág. 11253) julgou inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, a norma do artigo 8.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho, com as alterações posteriores), na parte em que se refere à responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra -ordenação fiscal, efectivada através do mecanismo da reversão da execução fiscal. Porém, no sentido da inconstitucionalidade de tal preceito pronunciou-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 129/2009 de 12 de Março de 2009 (processo n.º 649/08, relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha, www.tribunalconstitucional.pt). Pode ler-se em tal aresto que o artigo 8.º n.º 1 do RGIT não consagra uma qualquer forma de transmissão de responsabilidade penal ou contra-ordenacional imputável à sociedade, estabelecendo, antes, a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente e que constitui causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas (tratar-se-ia de uma responsabilidade de natureza civil extracontratual dos gerentes e administradores, resultante do facto culposo que lhes é imputável por terem causado uma situação de insuficiência patrimonial da empresa, determinante do não pagamento da coima, ou por não terem procedido ao pagamento da coima quando a sociedade foi notificada para esse efeito ainda durante o período de exercício do seu cargo).

De acordo com o segundo segmento da jurisprudência do Tribunal Constitucional, a responsabilidade pelas multas e coimas prevista no artigo 8.º do RGIT deve ser vista como uma responsabilidade civil e não como a transmissão da responsabilidade penal. Esta diversa natureza da responsabilidade afasta liminarmente a argumentação feita com base na intransmissibilidade das penas. Em suma, a responsabilidade subsidiária estabelecida no artigo 8.º do RGIT é de natureza meramente civil e não penal, pelo que essa norma não viola nenhum princípio constitucional em matéria penal.

Ora, no caso dos autos não está em causa a aplicação da norma estatuída no n.º 1 do artigo 8.º do RGIT, mas, ao invés, a do n.º 7 do mesmo preceito. Conforme já se referiu, não estamos perante uma responsabilidade subsidiária, mas sim perante uma responsabilidade solidária por parte de quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária, ou seja, perante uma responsabilidade fundada na “colaboração dolosa” na prática da infracção. Não vemos assim qualquer óbice de constitucionalidade à aplicação do citado preceito, sufragando o entendimento expresso no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 129/2009 de 12 de Março de 2009, no Acórdão da Relação do Porto de 23 de Junho de 2010, processo n.º 248/07.7IDPRT-A.P1, www.trp.pt e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12 de Janeiro de 2011, processo: 243/05.0IDPRT-A.P1, relator: Maria da Graça Silva, www.dgsi.pt) para o qual remetemos. Com efeito, as finalidades da punição não podem ser invocadas para afastar a responsabilidade civil, ainda que fundada no mesmo facto ilícito, uma vez que o fundamento desta é essencialmente a reparação de um dano, ou seja, a consideração de que não deve ser o lesado a suportar um prejuízo ilicitamente causado por um comportamento alheio. Daí que o princípio da necessidade ou proporcionalidade, no que respeita à génese da responsabilidade civil, não seja ofendida por um regime jurídico que impõe o dever de indemnizar a quem causar (ou contribuir para sua causa) um dano. Trata-se, aliás, do regime regra da obrigação de indemnizar, conforme resulta do artigo 497.º do Código Civil.

Tal conclusão não é afastada mesmo nos casos em que não há qualquer menção expressa ao mesmo na sentença condenatória porquanto é pressuposto da referida responsabilização que o arguido também tenha sido condenado pela prática do crime imputado à sociedade, tendo, necessariamente, oportunidade de exercer os seus direitos...

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