Acórdão nº 24/98 de Tribunal Constitucional (Port, 22 de Janeiro de 1998

Magistrado ResponsávelCons. Guilherme da Fonseca
Data da Resolução22 de Janeiro de 1998
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 24/98

Processo nº 621/97

Plenário

Relator: Cons. Guilherme da Fonseca

(Cons. Ribeiro Mendes)

Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:

I

1. Nos termos do artigo 278º, nºs. 1 e 3, da Constituição e dos artigos 51º, nº 1, e 57º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, o Presidente da República veio requerer a apreciação da constitucionalidade de todas as normas do Decreto nº 196/VII da Assembleia da República, recebido na Presidência da República em 17 de Novembro de 1997 para ser promulgado como lei. O pedido de fiscalização preventiva deu entrada na secretaria do Tribunal Constitucional em 24 daquele mesmo mês de Novembro.

2. O Presidente da República fundamentou do seguinte modo as dúvidas de constitucionalidade suscitadas quanto as normas do identificado diploma que visa a "reposição do IC 1 entre Torres Vedras e Leiria e do IP 6 entre Peniche e Santarém como vias sem portagens" (a epígrafe do Decreto) :

"A- O lanço Torres Vedras (Sul) - Bombarral da AE 8 CRIL - Leiria foi integrado transitoriamente, por força do disposto no art. 1º do Decreto-Lei nº 208/97, de 13 de Agosto, na concessão da BRISA - Auto-Estradas de Portugal, S.A. (abreviadamente referida como BRISA), para efeitos de conservação e exploração, enquanto não viesse a ser atribuída a concessão Oeste, prevista no Decreto-Lei nº 9/97, de 10 de Janeiro. De harmonia com aquele diploma legal (art. 3º, nº 2), as taxas de portagem a praticar nesse lanço seriam fixadas por regulamento ministerial (portaria conjunta dos Ministros das Finanças e do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território).

O art. 1º do Decreto-Lei nº 294/97, de 24 de Outubro, aprovou modificações às Bases do contrato de concessão da construção, conservação e exploração de auto-estradas outorgado com a BRISA, de forma a que o referido lanço de auto-estrada do Oeste passasse a integrar o objecto da concessão para efeitos de conservação e exploração, sujeito ao regime de portagem, a reverter para a concessionária. O art. 2º deste diploma autorizou os Ministros das Finanças e do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território a subscreverem, em nome e representação do Estado, as alterações ao contrato de concessão, nos termos indicados.

De harmonia com tais disposições legais, o Estado e a BRISA acordaram as alterações ao contrato de concessão, havendo entretanto sido publicada a Portaria nº 693-A/97, de 14 de Agosto, a qual fixou as taxas de portagem que passaram a ser cobradas naquele lanço.

Deste modo, por força das normas legais e dos actos administrativos referidos, a BRISA 'viu perfeita e validamente consolidado na sua esfera jurídica o direito subjectivo à exploração, com cobrança de portagens, do lanço Torres Vedras (Sul) - Bombarral' da AE 8.

O Decreto nº 196/VII, se vier a concretizar-se em lei, extinguirá este direito subjectivo, embora se mantenha o aludido lanço, transitoriamente, na concessão da BRISA, mas só para efeitos de conservação, sendo retirado o anterior direito à exploração do concessionário (arts. 1º e 4º, nº 1) e abolido, com carácter definitivo e imediato, o regime de taxas de portagem em todo o lanço (art. 2º). Ainda por força do mesmo Decreto é alterada a Base I do contrato de concessão referido, sendo retirado do objecto da concessão o identificado lanço (art. 4º, nº 2).

Assim:

1- a)- Com tal conteúdo, o Decreto nº 196/VII da Assembleia da República, designadamente as normas referidas, tem o carácter de lei restritiva do direito à propriedade da BRISA, na medida em que tais normas afectam decisivamente a própria existência do direito da BRISA à exploração, com cobrança de portagem, do lanço Torres Vedras (Sul) - Bombarral da AE 8, sendo certo que é pacificamente reconhecido na doutrina e na jurisprudência dos Estados membros da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Primeiro Protocolo adicional à CEDH) que o direito de propriedade constitucionalmente reconhecido não se restringe à protecção do direito real de propriedade, mas abrange, seguramente, os restantes direitos de conteúdo patrimonial que, na esfera de titularidade do particular, forem susceptíveis de avaliação pecuniária. Os direitos patrimoniais de natureza real ou creditícia podem ser afectados, restringidos ou suprimidos, mas tão-só nos termos da Constituição.

A BRISA, enquanto concessionária da construção, conservação e exploração de auto-estradas, é titular de direitos patrimoniais, nomeadamente havendo exploração com o direito de cobrar portagens, que 'devem ser integrados no âmbito de protecção que, por força do art. 12º, nº 2, da Constituição, lhe é garantido pelo art. 62º, nº 1, da Constituição. E, pelo menos na sua dimensão de garantia de não poder ser privada desses direitos patrimoniais a não ser nos termos e segundo as formas constitucionalmente previstas, a BRISA titula essa garantia enquanto direito fundamental análogo a direitos, liberdades e garantias'.

'Nada permite, na ordem jurídica portuguesa, excluir do âmbito de protecção do art. 62º da Constituição os direitos subjectivos patrimoniais adquiridos com base em norma jurídico-pública ou relativos a bens do domínio público, sobretudo quando ao direito de exploração adquirido por concessão é imanente uma exigência de segurança de existência em tudo idêntica à situação típica de propriedade'.

A circunstância de a BRISA, sociedade anónima, ter uma larga participação de capitais públicos, e deter poderes de natureza pública, enquanto concessionária, não cria 'quaisquer obstáculos à sua qualificação como pessoa jurídica com capacidade de titular direitos fundamentais e direitos subjectivos públicos contra o Estado, aos quais deve ser reconhecida, até por exigências próprias da racionalidade de funcionamento do mercado, tutela jurídico-constitucional idêntica à dos direitos de propriedade de qualquer outra entidade privada'.

O direito subjectivo da BRISA à exploração do referido lanço goza da protecção do art. 62º, nº 1, da Constituição e, pelo menos, a garantia de não poder essa concessionária ser privada daquele direito, a não ser nos termos constitucionalmente previstos, 'beneficia do regime especial de protecção que, por força do art. 17º da Constituição, lhe é garantido pelo art. 18º, nº 3. Assim, a lei só poderia restringir esse direito e, designadamente, aquela garantia, caso preenchesse os restantes requisitos constitucionais e, para o que agora nos interessa, revestisse carácter geral e abstracto'. Na falta desse carácter geral e abstracto, tais normas podem ser consideradas inconstitucionais por violação do art. 18º, nº 3, da Constituição.

1- b)- Não pode sustentar-se que as referidas normas constituem normas conformadoras do conteúdo e limites desse direito, em vez de normas restritivas do direito garantido no art. 62º, nº 1, da Constituição. De facto, por um lado, tais normas têm 'uma natureza material claramente ablativa de um direito e não determinadora do seu conteúdo, e, por outro, mesmo que se situassem, o que não é o caso, numa zona de fronteira, só poderiam ser consideradas conformadoras do conteúdo e limites caso revestissem, também, uma natureza geral e abstracta, ou quando muito fossem, o que não é manifestamente o caso, meras concretizações de anteriores limites de conformação expressos ou implícitos'. Não se trata in casu de lei que determinasse, com carácter geral e abstracto, as condições de resgate de uma concessão, nem sequer se está perante uma medida, ainda que tomada sob a forma de lei, que determinasse o resgate de uma concessão concreta com fundamento no preenchimento daquelas condições. Assim, 'é restritiva a lei que, à margem da previsão contratual ou da genérica previsão legal existente, e exclusivamente com base em razões de mérito político - por mais relevantes que elas sejam para o interesse público - opostas às razões que haviam fundamentado a anterior concessão legal e contratual de um direito de exploração de um lanço de auto-estrada com cobrança de portagem, extinga esse direito sem prévio acordo do concessionário'.

2- Considere-se agora um entendimento que postule que a medida constante do Decreto nº 196/ /VII escapa ao regime constitucional exigido para as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (nomeadamente, ao disposto no art. 18º, nº 3, da Constituição), 'na medida em que, constituindo uma intervenção concretizadora do estabelecimento implícito, por parte do legislador, de uma preferência do interesse público sobre um interesse patrimonial concreto, essa intervenção reveste, por definição, um carácter não geral e abstracto e se destina funcionalmente, não a restringir um direito, mas a extingui-lo'.

Em tal caso, a medida legal de privação do direito patrimonial da BRISA teria um carácter materialmente expropriatório, que implicaria que não lhe seria exigido o cumprimento de todos os requisitos constitucionais das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, designadamente o requisito da generalidade e abstracção. 'Independentemente da designação utilizada (expropriação material, expropriação de sacrifício, quase - expropriação, intervenção equivalente a expropriação), é também expropriação, e necessariamente sujeita ao mesmo regime constitucional, qualquer «acto de império» do poder público dirigido à ablação de posições jurídicas integradas no âmbito de protecção do direito fundamental à propriedade e que se traduza numa intromissão onerosa e especial do Estado na esfera jurídico-patrimonial do seu titular, independentemente de produzir, ou não, alterações na titularidade de um bem e de se fundar na declaração ou invocação prévias de utilidade pública'.

Entre os requisitos constitucionais específicos de um acto materialmente expropriatório, ainda que praticado sob a forma de lei, 'e não apenas por força do art. 62º, nº 2, da Constituição, mas também como garantia ínsita no âmbito de protecção do nº 1 do mesmo artigo, e ainda como exigência decorrente do princípio do Estado de Direito do art. 2º e...

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