Acórdão nº 275/02 de Tribunal Constitucional (Port, 19 de Junho de 2002

Magistrado ResponsávelCons. Mota Pinto
Data da Resolução19 de Junho de 2002
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 275/02

Processo n.º 129/01

  1. Secção

    Relator - Cons. Paulo Mota Pinto

    Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:

    1. Relatório

    Por Acórdão de 14 de Julho de 2000, do Tribunal Judicial de Torres Vedras, A foi condenado, como autor material de um crime de homicídio na forma consumada, previsto e punido no artigo 131º do Código Penal, na pena de 12 (doze) anos de prisão, bem como no pagamento de uma indemnização no valor total de 28.236.422$00 à assistente B, que vivia em união de facto com a vítima, e filhos menores da assistente e da vítima, na seguinte proporção (conforme citado acórdão):

    "(...) a pagar à assistente e aos filhos menores da assistente e da vítima, C e D , a título de danos patrimoniais, a quantia de Esc: 14.236.422$00;

    (...) a pagar aos filhos menores da vítima, a título de danos não patrimoniais, a quantia de Esc: 14.000.000$00, sendo 8.000.000$00 pela perda do direito à vida da vítima e 3.000.000$00 por danos morais para cada um dos filhos."

    Não concordando com esta decisão, na parte em que julgou improcedente o pedido de indemnização por danos não patrimoniais de 5.000.000$00 pelo sofrimento da vítima desde o disparo até à sua morte, bem como o pedido de 5.000.000$00 de indemnização por danos morais devidos à assistente, veio esta interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça alegando "(...) uma questão de igualdade entre os casais e de respeito pelo facto de viver, como viveu em União de Facto com o infeliz F", logo pedindo que fosse julgado inconstitucional "(...) por violação do artigo 13 da Lei Fundamental, o artigo 496-2 do Código Civil, na parte em que não admite, que a pessoa que viva em União de Facto com a vítima de um crime de que resulte a morte dessa vítima, tem direito a, por esse facto, receber uma indemnização por danos não patrimoniais."

    Respondeu o Ministério Público na primeira instância, bem como o arguido, no sentido de dever ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida " por justa, correcta e legal."

    Por Acórdão de 7 de Dezembro de 2000, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu negar provimento ao recurso e confirmar o Acórdão recorrido, com os seguintes fundamentos:

    "Alegam os recorrentes que a vítima teve ‘uma agonia atroz, com dores lacinantes (...), mas o certo é que aquela ‘agonia atroz, com dores lacinantes’, que fundamentaria uma indemnização, não se revela de entre os factos dados como provados, dos quais, aliás, isso também se não pode presumir, mesmo com recurso às regras da experiência comum, o que quer dizer que infundada é a pretensão dos recorrentes, neste particular.

    Tal como é no que respeita ao desiderato da recorrente de condenação do arguido e demandado civil a pagar-lhe 5.000.000$00 de indemnização por danos morais, que ela funda no evidenciado facto de viver maritalmente, ou, por outras palavras em união de facto com a vítima.

    E ela própria o reconhece quando alega que ‘o legislador quis proteger a união de facto com a transmissão do arrendamento post mortem – art. 85-1-E do R.A .U. – Dec.-Lei 321/B/90 – 15 Out., com os alimentos – art. 2020 do Cód. Civil –, mas por razões que se desconhecem, não protegeu o afecto, a dor e a perda de uma vida daquele que vive em união de facto, impondo-se a alteração do disposto no art. 496-2 do Cód. Civil de molde a incluir aqueles que vivam em união de facto com o inditoso F e recorrente’.

    Outro não podia ser o decidido pelo Tribunal a quo neste particular. Na falta de direito positivo, não lhe cabia criar normativo para acolher o pretendido pela recorrente, sendo indubitável também estar fora das suas atribuições pronunciar-se sobre situações e soluções a ponderar, eventualmente, no plano do direito constituendo.

    De resto, não se alcança que o art. 496, n.º 2 do Cód. Civil, esteja ferido de inconstitucionalidade por violação do art. 13º da C.R.P., que consagra o princípio da igualdade, sendo que as situações invocadas pela recorrente manifestamente que se reconduzem a excepções em relação a princípios gerais do direito civil."

    Notificada deste Acórdão, veio a demandante, por si e em representação dos seus filhos, pedir a sua aclaração e apontar àquele aresto omissão de pronúncia sobre a não interposição de recurso por parte do Ministério Público na 1ª Instância, o que a seu ver, conduziria "à improcedência do recurso no tocante ao pedido de agravamento da pena", bem como, relativamente à alegada inconstitucionalidade da interpretação do artigo 496º, n.º 2 do Código Civil, sobre as razões em concreto pelas quais um casal em "união de facto não tem, relativamente aos casamentos constituídos no plano dos direitos civis/católicos os mesmos direitos".

    Por Acórdão de 29 de Janeiro de 2000, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu o pedido de aclaração com os seguintes fundamentos:

    " Há que conhecer:

    E, conhecendo, diremos que nada há a esclarecer. E isto porque o acórdão recorrido não contem, a nosso ver, qualquer deficiência, obscuridade ou contradição, sendo certo que só tais vícios justificariam um esclarecimento.

    (...) E que também se não impunham mais considerandos sobre a questão da inconstitucionalidade do art. 496º, nº 2, do Cód. Civil por violação do art. 13º da C.R.P., certo como é que o que a ora recorrente pretendia era a extensão daquela norma de direito civil aos casais em ‘união de facto’, ou seja, criação de direito vedada ao poder judicial, e não a inaplicabilidade da mesma norma com fundamento em inconstitucionalidade. Acresce que dissertar sobre direito a constituir se traduziria numa prática de actividade inútil."

    Inconformada, a demandante interpôs o presente recurso de constitucionalidade ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade do artigo 496º, n.º 2 do Código Civil, que a recorrente considera inconstitucional, por violação do art. 13º da Constituição da República, na medida em que, com base nele, "a Douta Decisão sob recurso (...) considera inexistir direito à recorrente de, em consequência da morte do companheiro em União de Facto, receber qualquer indemnização por danos não patrimoniais." .

    A recorrente concluiu as suas alegações nos seguintes termos:

    "1ª A improcedência do pedido de condenação do arguido A em quantia, mesmo que simbólica, por danos morais devidos à assistente pelo facto de esta viver em união de facto com a vítima é desajustada e imerecida.

  2. Na verdade, o actual ius connubi não pode afastar as tradições familiares, os ritos, as diversas religiões, seitas e formas de constituição da família na comunidade.

  3. A morte de um pai ou de um filho, de um ‘enteado’ ou de um ‘padrasto’, de um companheiro em ‘união de facto’ não depende de um casamento e tão respeitável é a dor de um cônjuge ‘casado segundo os ritos da Igreja Católica/ Conservatória do Registo Civil’, como sofrimento de um praticante de budismo, da Igreja Ortodoxa ou de uma ‘companheira em união de facto’...

  4. O legislador quis proteger a união de facto com a transmissão do arrendamento post mortem – art. 85-1-E do R.A .U.- Dec.-Lei 321/B/90 – 15 Out., com os alimentos – art. 2020 do Cód. Civil, mas por razões que se desconhecem, não protegeu o afecto, a dor e a perda de uma vida daquele que vive em união de facto, impondo-se a alteração do disposto no art. 496-2 do Cód. Civil de molde a incluir aqueles que vivam em união de facto com o inditoso F e recorrente.

  5. Na verdade, ‘a igualdade consiste em tratar por igual o que é essencialmente igual e em tratar diferentemente o que essencialmente for diferente. A igualdade não proíbe pois o estabelecimento de distinções, proíbe , isso sim, as distinções arbitrárias ou sem fundamento material bastante...’ – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n. 433/87 in B.M.J. 371, 145 e ss, pelo que,

  6. deverá ser declarado inconstitucional, por violação do art. 13 da Lei Fundamental, o artigo 496 – 2 do Código Civil, na parte em que não admite, que a pessoa que viva em união de facto com uma vítima de um crime de que resulte a morte dessa vítima, tem direito a, por esse facto, receber uma indemnização por danos não patrimoniais."

    O Exm.º representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade da norma objecto do recurso, concluindo as suas contra-alegações nos seguintes termos:

    "1 - A norma constante do n.º 2 do artigo 496º do Código Civil, interpretada em termos de desconsiderar – para efeitos de atribuição de um direito de indemnização por danos morais pessoalmente sofridos por quem convivia maritalmente com a vítima de um crime doloso – a existência de uma situação de união de facto, estável e duradoura, existindo filhos menores do casal, viola o disposto no nº 1 do artigo 36º da Constituição da República Portuguesa.

    2 - Na verdade, constitui solução manifestamente excessiva e desproporcionada a que se traduz em negar sempre relevância jurídica ao dano moral sofrido por quem, nessas condições, convivia em união de facto com o falecido."

    Cumpre apreciar e decidir.

    1. Fundamentos

      1. Delimitação do objecto do recurso

        O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e tem por objecto a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 496º, n.º 2, "na parte em que não admite que a pessoa que viva em união de facto com uma vítima de um crime de que resulte a morte dessa vítima tem direito a, por esse facto, receber uma compensação por danos não patrimoniais".

        Como se sabe, são requisitos específicos do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, além do esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam, que a inconstitucionalidade normativa tenha sido suscitada durante o processo e que a norma em causa haja sido aplicada, pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi.

        Tais requisitos estão verificados no presente caso, pois a inconstitucionalidade da norma em causa...

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