Acórdão nº 99/02 de Tribunal Constitucional (Port, 27 de Fevereiro de 2002

Magistrado ResponsávelCons. Luís Nunes de Almeida
Data da Resolução27 de Fevereiro de 2002
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃ0 Nº 99/02

Proc. nº 482/01

  1. Secção

Rel.: Consº Luís Nunes de Almeida

Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:

I

1. L... foi condenado no 2° Juízo Criminal da Comarca de Lisboa, por sentença de 24 de Março de 2000, como autor material de um crime de exploração de jogo ilícito, previsto e punido pelos artigos 3°, nº 1, 4°, nº 1, alínea g), e 108° do Decreto-Lei n° 422/89, de 2 de Dezembro. Operada a soma das penas parcelares, foi a pena global fixada na multa única de 155.000$00, subsidiariamente em 23 dias de prisão.

Desta sentença interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo suscitado, na respectiva motivação, a questão da inconstitucionalidade das disposições com base nas quais foi condenado.

Alegou então o recorrente:

III – Finalmente, impõe-se a absolvição do arguido, por inconstitucionalidade material do art. 108°, n° 1, conjugado com os arts. 3° e 4°, n° 1, alínea g) do D.L. 422/89-12-02, resultante da violação do princípio da proporcionalidade das penas, consagrado no art. 18° da Constituição.

É que, como bem se acentuou já em sentença do 4° Juízo Criminal de Lisboa, “retira-se, assim, da finalidade da proibição de exploração de jogos de fortuna ou azar, fora dos locais legalmente autorizados, que tal proibição se mostra despida de conteúdo ético. De outro modo, não se compreenderia que o legislador proibisse a exploração de jogos de fortuna e azar nuns locais e o permitisse noutros. Com efeito, se essa exploração fosse ético-socialmente desvaliosa, o legislador tê-la-ia proibido pura e simplesmente, independentemente do local onde fosse praticada. Ao não o fazer limitando-se a proibi-la, apenas, em determinados locais, é evidente que o que está em causa é a salvaguarda de receitas”.

(...)

O legislador não considera, manifestamente, o jogo socialmente pernicioso!

O que o legislador considera é que o jogo deve gerar receitas para o Estado e os concessionários do jogo!

E, quanto às máquinas, o que quer é impedir a concorrência nos casinos e, assim, salvaguardar as receitas ... dos concessionários dos casinos!

Repare-se na curiosa técnica legislativa:

a) No art° 3° define-se que “a exploração e prática de jogos de fortuna ou azar só são permitidos nos casinos existentes em zonas de jogo (…)” legalmente autorizadas;

b) No art° 4°, elenca, de a) a f) um conjunto de jogos nitidamente de fortuna ou azar;

c) Na alínea g) inventa outro tipo de situação que legalmente equipara a jogo de fortuna ou azar, o de “máquinas que, não pagando directamente fichas ou moedas (…)”.

Ora, como é evidente, nenhuma máquina que não pague prémios em fichas ou moedas é explorada ou explorável em casino autorizado!

(...)

(...) o legislador (...) sabe perfeitamente que as máquinas aí previstas não são nem nunca serão utilizadas ou utilizáveis em zonas de jogo legalmente autorizadas!

O seu único objectivo é proibir que, fora dessas zonas, se utilizem essas máquinas – máquinas que não dão prémios, nem em fichas, nem em dinheiro, note-se!

Obviamente que apenas e tão só para proteger os casinos da concorrência dessas máquinas (pois elas não dão prémios).

(...)

Ou seja, sob a aparência de defesa do cidadão, pretende-se é levá-lo a jogar... no casino!

O que se protege com esta norma? Apenas e tão só as receitas dos concessionários dos casinos!

(...)

Este propósito de protecção aos concessionários de zonas de jogo não é claramente a tutela de um princípio ético.

Também (verdade se diga) não tem em si um desvalor ético: é aceitável que, impondo o Estado ao concessionário de zonas de jogo o pagamento de vultosas quantias, o Estado proteja a actividade do concessionário.

simplesmente, Viola o princípio da proporcionalidade ínsito no art. 18°, n° 2 da Constituição que efectue essa protecção através de sanção penal.

Sancionar penalmente conduta que não é ético-socialmente desvaliosa, mas que foi apenas proibida para proteger determinados interesses económicos (dos concessionários das zonas de jogo), viola claramente, rudemente, brutalmente o princípio da Proporcionalidade.

Atentos os objectivos prosseguidos pela proibição, constitucionalmente apenas é admissível uma sanção de natureza contra-ordenacional – é para isso que ela serve !!! -, nunca de natureza Criminal.

E se o legislador agiu de uma forma desproporcionada, irrazoável, logo inconstitucional, deve o Tribunal usar o poder que lhe detém e que a Constituição lhe impõe:recusar a aplicação da norma, com fundamento em inconstitucionalidade.

E concluiu deste modo:

(...)

9. O art. 108°, n° 1, aplicado conjugadamente com os artigos 3°, n° 1 e 4°, n° 1, alínea g), todos do DL 422/89-12-02, está viciado de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade das penas, consagrado no art. 18° da Constituição.

10. Com efeito, a finalidade da proibição da exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados está despida de conteúdo ético, pois de outro modo não se compreenderia que o legislador proibisse a exploração de jogos de fortuna ou azar nuns locais e os permitisse noutros, nem que permitisse, eufemisticamente chama de “jogos sociais”, o País seja um autêntico casino-gigante, com a apologia dos Jackpots e das Rodas dos Milhões e das Santas Casas nas televisões e nos anúncios das rádios e nos cartazes e em tudo o que é sítio.

11. A única finalidade da proibição é a da salvaguarda de receitas para os concessionários dos jogos e, no caso, particularmente através da proibição de concorrência aos casinos.

12. Mais: a norma até obriga aquele que gosta de jogar videopoker a não o poder fazer por diversão, em qualquer salão de jogos e a ter de ir jogar a dinheiro nos casinos.

13. Assim, atento o objectivo de protecção do lucro de alguns da norma, e não a protecção de qualquer valor ético, consagrar sanção criminal viola claramente o sentido da proporcionalidade ínsito no art. 18°, n° 2 da Constituição.

14. Com efeito, apenas é admissível sanção contra-ordenacional – é para isso que o direito de mera ordenação social serve -, nunca de natureza criminal.

2. O Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, por

acórdão de 22 de Fevereiro de 2001.

Aí se apresentam, inter alia, as seguintes razões:

Ao contrário do que pretende o recorrente, a proibição do jogo fora dos casinos tem outras finalidades que não a de proibir a concorrência desleal aos titulares da concessão de jogo.

Desde logo, surge a finalidade de melhor proteger os menores de 18 anos, os incapazes, inabilitados e culpados de falência fraudulenta que não tenham sido reabilitados, e todos os demais cidadãos com propensão para o vício do jogo que nos casinos podem, até por sua iniciativa, solicitar ao Inspector geral de jogos que lhes impeça o acesso às salas de jogos.

Desta enumeração meramente exemplificativa resulta bem claro que a proibição de jogo fora dos casinos tem por finalidade proteger o cidadão mais incauto e desprevenido, bem como os menores, da atracção sobre eles exercida pelo jogo, com todos os problemas que lhe são inerentes se o utilizador dos mesmos tiver propensão para o jogo, desde os empréstimos superiores às suas possibilidades de pagamento a outras vicissitudes, mais controláveis (ainda que não completamente) se o jogo apenas for permitido em determinados locais com concessão para o efeito, e que para a manter têm de obedecer a regras estritas.

Por outro lado, não vislumbramos que direito fundamental do recorrente esteja posto em crise por tal legislação, e que tenha sido ofendido pela alegada violação do princípio da proporcionalidade. É que nenhum direito fundamental seu pode ter como consequência a possibilidade de violação dos direitos fundamentais de terceiro por parte do recorrente.

A nosso ver, a legislação cuja inconstitucionalidade o recorrente pretende ver declarada tem como objectivo proteger os incautos da possibilidade de acabarem explorados pelo jogo através do qual apenas pretendiam passar umas horas de lazer.

Daí que nenhuma violação do princípio da proporcionalidade na fixação das penas exista, nem os jogos na televisão se lhe possam sequer comparar pois esses são, pelo menos, fiscalizados pelo Governo Civil respectivo.

3. Inconformado, interpôs o arguido recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto na alínea b) do n° 1 do artigo 70° da LTC.

Nas suas alegações, continua a defender a inconstitucionalidade do artigo 108°, n° 1, conjugado com os artigos 3°, n° 1, e 4°, n° 1, alínea g), do Decreto-Lei n° 422/89, por violação do princípio da proporcionalidade ínsito no art° 18°, n° 2, da Constituição.

Essas alegações concluem da forma seguinte:

1. O interesse juridicamente protegido pelas disposições conjugadas dos arts. 108°, n° 1 – 3°, n° 1 e 4°, n° 1, al. g) do DL n° 422/89-12-02 é a tutela dos interesses dos concessionários de jogo.

2. Este interesse não é constitucionalmente protegido.

3. Logo, não é admissível restrição ao direito fundamental “liberdade individual” através de sancionamento penal em pena de prisão.

4. De qualquer forma, ainda que protegido constitucionalmente fosse aquele interesse ou também fosse outro interesse também tutelado por tais normas, sempre a restrição ao direito “liberdade individual” operada por sancionamento penal com pena de prisão é desproporcionada, por desnecessária.

5. Com...

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