Acórdão nº 494/04 de Tribunal Constitucional (Port, 09 de Julho de 2004

Magistrado ResponsávelCons. Bravo Serra
Data da Resolução09 de Julho de 2004
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 494/04

Processo nº 530/2004

  1. Secção

    Relator: Conselheiro Bravo Serra

    1. Em 17 de Maio de 2004 proferiu o relator decisão com o seguinte teor:

    “1. Não se conformando com o acórdão proferido em 18 de Março de 2003 pelo Tribunal colectivo de Barcelos que, por entre o mais - pela prática de actos que foram, na acusação, considerados como integrando quarenta e seis ilícitos de abuso de confiança fiscal, previstos e puníveis pelos artigos 27º-B e 24º, números 1 e 4, ambos do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, mas que aquele acórdão considerou como integrando tão só o cometimento de um crime continuado de abuso de confiança fiscal, previsto por aqueles artigos, mas a ser punível pelo nº 1 do artº 105º do Regime Geral das Infracções Tributária, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, por esse regime se mostrar, em concreto, mais favorável -, o condenou na pena de cento e quarenta dias de multa à taxa de € 30, recorreu o arguido A. para o Tribunal da Relação de Guimarães.

    No «teor» da motivação adrede produzida, e para o que ora releva, o arguido, a dado passo, referiu:

    ‘............................................................................................................................................................................................................................................

    24.

    É por tudo isto que a lei configura uma ficção, atropelando outras normas legais, para dar cobertura à prisão por dívidas.

    E dívidas contraídas forçadamente, com trabalho gratuito e não remunerado, em que o devedor é colocado no papel de publicano do Estado, que o obriga, mensalmente, não só quanto a este imposto devido por terceiros, mas também com outros (IRS e IVA), a dispender avultadas quantias, em meios humanos e materiais, para exercer funções do Estado.

    O Recorrente conhece o argumento peregrino em que se funda a sujeição a que ele e outros são submetidos: é a justiça social e a solidariedade social.

    Não fora a falsidade e as consequências, estaríamos perante uma ‘blague’ com piada.

    Simplesmente, os bens e serviços que o Estado proporciona custam entre 3 a 5 vezes mais que idêntica prestação privada.

    Os serviços públicos inúteis são como cogumelos.

    Repare-se que foram extintos os reconhecimentos notariais, as escrituras de trespasse, arrendamento comercial e de numerosos actos das sociedades comerciais. Alguém notou a falta?

    E repare-se nisto: a compra e venda de um prédio, e a sua transformação, obriga os interessados a andar (pior do que de Herodes para Pilatos) a correr entre notário, câmara municipal, conservatória e finanças. Todas estas repartições cobram impostos ou taxas, passam certidões e licenças e ‘controlam’ a legalidade. A falta de correspondência dos registos de cada prédio, em cada uma, é vasta como o centeio.

    A entidade que dispõe de condições técnicas ideais para registar o estatuto físico e jurídico é a Câmara Municipal. Até a ela se destina a contribuição autárquica a sisa e o imposto sucessório. Ela licencia a edificação e a utilização dos imóveis. Porque será que não basta um único registo de cada prédio nessa estação pública, onde aí se cobrariam impostos e contribuições e se entregariam ou fariam os instrumentos de alteração física e jurídica dos prédios e até instrumentos de transmissão ou constituição de direitos?

    Que tempo os interessados poupavam!

    E quantos serviços se extinguiam, que nada de útil prestam!

    E os meios físicos e humanos ocupados a complicar a vida das pessoas eram efectivamente desviados para produzir.

    Este é apenas um exemplo, entre milhares, da péssima administração pública que nos mói o juízo e nos consome o dinheiro.

    O argumento oficial não colhe.

    E por isso, as normas por que o Recorrente foi punido são inconstitucionais pois violam não só o disposto nos artºs. 1º. e 27º. 1 da Constituição, mas também, por força do artº. 8º. 2 desta Lei Fundamental, o disposto nos seguintes diplomas e normas:

    - Decl. Uni. Dtos Hom., 4º. 9º. e 23º.;

    - Pacto Int., Dtos. Econ., Soc. e Cult., 8º.;

    - Pacto Int., Dtos. Liv. e Pol., 8º., 9º. e 11º.;

    - Conv. Europ. Dtos. Hom, 5º. e artº. 1º. do seu Protocolo nº. 4

    Resumindo: os artºs. 24º. e 27º. B e 105º. e 107º. do RGIT são inconstitucionais pois sujeitam a pessoa a trabalho que não escolhem livremente, com a ameaça de prisão, e sujeitam a prisão por dívidas.

    ............................................................................................................................................................................................................................................’

    E, também no que agora interessa, nas «conclusões» formuladas naquela motivação, o arguido disse:

    ‘............................................................................................................................................................................................................................................

  2. Mas também não podia ter sido denunciado, acusado e condenado por factos a cuja prática foi sujeito, nomeadamente, à prática de trabalho imposto, que o obriga a dispender tempo e dinheiro, em favor da Segurança Social, gratuitamente, com a cominação ou ameaça de penas de prisão, e que ainda o sujeitam, bem como à sociedade, à contracção de dívidas de terceiro.

  3. Disto tudo resulta a inconstitucionalidade dos artºs. 24º. e 27º. B do RJIFNA e 105º. e 107º. do RGIT, porque violam:

    1. o disposto nos artºs. 1º., 27º. 1 e 58º. 2 b) e 59º. 1 a) da C.R.P.

    2. Decl. Un. D. Hom., artºs. 4º., 9º. e 23º.;

    3. Pac. In. Dtos., Ec., Soc. e Cult., artº. 8º.;

    4. Pac. In. Dtºs. Liv. e Pol., artsº. 8º., 9º. e 11º.

    5. Con. Eur. Dtos. Hom., artº. 5º. e artº. 1º. do Prot. nº. 4.

      ............................................................................................................................................................................................................................................’

      Tendo o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 24 de Novembro de 2003, negado provimento ao recurso, do mesmo recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça e, não tendo tal recurso sido admitido por despacho lavrado em 26 de Janeiro de 2003 pelo Desembargador Relator daquele tribunal de 2ª instância, o mesmo arguido reclamou para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, vindo o Vice-Presidente deste Alto Tribunal, por despacho de 27 de Fevereiro de 2004, a indeferir a reclamação.

      Notificado desta, o arguido fez juntar aos autos requerimento por intermédio do qual manifestou a sua intenção de recorrer para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, recurso que foi admitido por despacho prolatado em 26 de Março de 2004 pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Guimarães.

      Pode ler-se nesse requerimento:

      ‘............................................................................................................................................................................................................................................

      1.

      O Exmº. Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a reclamação do douto despacho que indeferiu a interposição do recurso para aquele Alto Tribunal (cf. fotocópia anexa), mantendo-se assim as doutas decisões proferidas no Tribunal de 1ª. Instância, e neste Alto Tribunal da Relação de Guimarães.

      O Recorrente, contudo, e como foi dizendo ao longo deste processo, entende que as normas, ao abrigo das quais foi condenado, enfermam de inconstitucionalidade e ilegalidade.

      Por isso, pretende interpor recurso para o Tribunal Constitucional.

      Posto isto:

      2.

      Como se lê do douto ac[ó]rdão proferido no Tribunal de 1ª. Instância, confirmado pelo proferido neste Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, o Recorrente foi criminalmente condenado com base no disposto no artº. 105º. 1 do RGIT, ex vi artº. 107º. deste diploma, que considera uma norma inconstitucional, ou, pelo menos, ilegal.

      3.

      O Recorrente pensa que suscitou aquelas invalidades com argumentos que, pelo menos no seu todo, ainda não foram objecto de apreciação do Tribunal Constitucional (que foram desenvolvidas na contestação e nas motivações de recurso).

      4.

      Esquematicamente, o Recorrente situou assim o problema:

      I)

      A lei impõe à sociedade arguida, cuja vontade é representada pelo seu gerente (o Recorrido) a prática de actos que se consubstanciam no pagamento de dívidas (contribuições) à Segurança Social, estabelecendo assim uma relação jurídica obrigacional complexa, em que os seus sujeitos são o trabalhador, a sociedade ( a entidade patronal) a Segurança Social, e o gerente da sociedade, tendo como objecto o dever do trabalhador pagar à S.S. quantia certa, que se transmite ‘ope legis’ para a sociedade, e o correspectivo poder de exigir aquele pagamento por parte da S.S. O gerente, verificados os pressupostos decorrentes da lei, é o garante subsidiário desse pagamento, gozando do benefício da excussão prévia. Esta relação é predeterminada pelo disposto nos artºs. 5º. e 6º. do Dec. Lei nº. 103/80[,] de 5/5 e artº. 10º. do Dec. Lei nº. 260/93, de 23.7 e 20º. a 24º. da L.G.T.

      Algumas destas normas utilizam palavras, nomeadamente a palavra retenção, que não se compaginam com aquela relação de dever de prestar quantia certa e poder de exigir o pagamento daquela quantia.

      II)

      Paralelamente, o Regime Jurídico das Infracções Tributárias (RGIT), maxime nos seus artºs. 105º. e 107º., pressupõe aquele facto jurídico, predisposto e predeterminado das normas referidas na alínea anterior, como uma relação jurídica ou real, como se tivesse havido a tradição de um ‘quid’ material do trabalhador para a sociedade, de que esta se tivesse apropriado e o estabelecimento de uma relação de confiança.

      A lei ficciona assim factos impossíveis de ocorrer, para acrescer à tutela civil do referido poder de exigir o...

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