Acórdão nº 306/05 de Tribunal Constitucional (Port, 08 de Junho de 2005

Magistrado ResponsávelCons. Vitor Gomes
Data da Resolução08 de Junho de 2005
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 306/05

Processo n.º 238/04

  1. Secção

Relator: Conselheiro Vítor Gomes

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

1. O Ministério Público interpôs recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º e com a legitimidade conferida pela alínea a) do n.º 1 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82, de 25 de Novembro (LTC), da decisão do Tribunal Judicial da Comarca das Caldas da Rainha que desaplicou, por considerá-la inconstitucional, a norma constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 189.º da Organização Tutelar de Menores (OTM), aprovada pelo Decreto-Lei 314/78, de 27 de Outubro (diploma alterado, por último, pelas Leis n.ºs 133/99, de 28 de Agosto, 147/99, de 1 de Setembro, 166/99, de 14 de Setembro e 31/2003, de 22 de Agosto).

A decisão recorrida foi proferida num processo por incumprimento do acordo de regulação do exercício do poder paternal, em que é requerente A. e requerido B.. O Ministério Público promoveu que se procedesse à adjudicação da quantia de €100 na pensão social recebida pelo requerido, para pagamento das mensalidades de alimentos vencidas e vincendas (sendo €25 mensais para imputação nas primeiras e €75 no mais), o que foi indeferido pela decisão recorrida, com a seguinte fundamentação:

“Analisados os elementos documentais juntos, as declarações da progenitora e o processado da acção principal, importa reter os seguintes factos com interesse para a decisão do incidente:

1) Por sentença homologatória proferida em 21 de Outubro de 1998 o exercício do poder paternal das menores C. e D. foi atribuído à respectiva mãe.

2) Nos termos da mesma sentença, o progenitor ficou obrigado ao pagamento da quantia de Esc. 15.000$00 mensais a título de alimentos para as menores.

3) O requerido nunca cumpriu essa obrigação, encontrando-se em dívida a quantia de Euros 4.190.

4) O requerido é toxicodependente e o seu paradeiro é desconhecido.

5) Não exerce qualquer actividade remunerada.

6) Tem como único rendimento conhecido uma pensão por invalidez atribuída pelo Centro Nacional de Pensões no valor de Euros 189,54 mensais.

7) As menores integram o agregado familiar da mãe, composto, além desta, pelo actual marido da mesma.

[ ...]

No caso, o requerido aufere uma pensão de invalidez no valor mensal de Euros 189,54. Tal significa que, uma vez operada a adjudicação pretendida – que visa, a um tempo, a cobrança das prestações vencidas e o pagamento das vincendas esse rendimento reduzir-se-á a Euros 89,54.

O requerido não tem outros proventos conhecidos e a natureza da pensão que lhe é atribuída inculca, razoavelmente, a conclusão de que na base dessa concessão estão motivos de estrita necessidade económica,

Essas considerações remetem-nos directamente para o princípio da dignidade da pessoa, estruturante da nossa ordem constitucional (art.º 1º, da Constituição da República Portuguesa).

[ … ]

Na situação vertente, o conflito de direitos para que remete este raciocínio [ a decisão refere-se ao acórdão n.º 177/02 deste Tribunal] dá-se entre direitos de igual valia. Com efeito, a dignidade da pessoa do requerido enfrenta a não menos importante dignidade da pessoa das suas filhas, com a agravante de que a condição de crianças destas lhes confere uma tutela especial, desde logo, com consagração constitucional [art.º 69°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa].

Pese embora essa asserção (a da especial protecção das crianças) não se crê que, no caso concreto, a solução seja a adjudicação das pensões requerida.

De igual modo, não será, sequer, possível fazer ceder ambos os direitos em confronto por aplicação da previsão do art.º 335°, n° 1, do Código Civil.

Com efeito, a pensão social recebida pelo requerido é por tal forma escassa (representa 53,15% do salário mínimo nacional) que mesmo a adjudicação do necessário ao pagamento das prestações de alimentos vincendas colocaria em iminente risco a sua subsistência.

Aliás, nem se crê que no actual sistema de protecção dos alimentos devidos a menores seja necessário fazer actuar, de forma tão violenta, os princípios da prioridade e intangibilidade do crédito alimentício,

Referimo-nos à tutela especial dispensada pela Lei n° 75/98, de 19 de Novembro, a permitir que o Estado, através de fundo especificamente vocacionado para o efeito, assegure, como garante, aquilo que o progenitor obrigado a alimentos não pode assegurar.

Tal equivale a concluir que numa visão integrada do art.º 189°, da Organização Tutelar de Menores, dos princípios constitucionais acima referidos e do referido sistema de garantia, aquela primeira norma, por não definir qualquer base mínima da pensão social que possa ser afectada, afronta directamente a dignidade da pessoa humana.

Noutra formulação – quando o art.º 189°, da Organização Tutelar de Menores permite, sem qualquer limite, que uma pensão social seja afecta ao pagamento da obrigação de alimentos, põe em causa a ordem constitucional portuguesa, o que não pode passar sem adequada decisão do julgador do caso concreto.

Tais as razões pelas quais, nos termos das disposições citadas e do preceituado no art.º 280°, n° 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa, se recusa a aplicação ao caso sub judice do disposto na alínea c), do n.º 1, do art.º 189°, da Organização Tutelar de Menores e, nessa conformidade, se indefere o requerido pelo Ministério Público”.

2. No Tribunal Constitucional (artigo 79.º da LTC), o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto alegou e conclui nos seguintes termos:

“1- A doutrina formulada no Acórdão n.º 177/02 deve ser transporta do âmbito dos limites à penhorabilidade de pensões ou prestações sociais para o plano do eventual limite à adjudicação de rendimentos, com vista à satisfação de obrigação alimentar – não podendo tal adjudicação privar o devedor de alimentos da disponibilidade da quantia – inferior ao salário mínimo nacional – essencial à sua própria sobrevivência.

2- É inconstitucional, por violação do princípio da dignidade humana, a interpretação normativa do artigo 189º, n.º 1, alínea c), da Organização Tutelar de Menores que legitima a adjudicação, para satisfação de alimentos a filho menor, de uma parcela equivalente a mais de metade de uma pensão social de invalidez, auferida pelo progenitor, que não é titular de outros bens ou rendimentos, e cujo valor global representa 53,15% do salário mínimo nacional.

3- Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.”

Não houve contra-alegações.

3. O preceito em que se insere a norma impugnada dispõe o seguinte:

“Artigo 189.º

( Meios de tornar efectiva a prestação de alimentos)

1 – Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida dentro de dez dias depois do vencimento, observar-se-á o seguinte:

  1. ...

  2. ...

  3. Se for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução será feita nesses prestações, quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de fiéis depositários

    2 – As quantias deduzidas abrangerão também os alimentos quer se forem vencendo e serão directamente entregues a quem deva recebê-las.”

    Agrupam-se nesta alínea c) rendimentos de várias proveniências e títulos de atribuição. O que no processo está em causa é o segmento respeitante à dedução em pensões sociais, mais rigorosamente, na pensão de invalidez.

    A decisão recorrida recusou aplicação a esta norma, com fundamento em inconstitucionalidade por violação do princípio da dignidade da pessoa humana,por não definir qualquer base mínima da pensão social que possa ser afectada ou, noutra formulação,quando … permite, sem qualquer limite, que uma pensão social seja afecta ao pagamento da obrigação de alimentos. Inserindo esta formulação no contexto aplicativo e de fundamentação de que emerge, conclui-se que a norma foi considerada inconstitucional na interpretação de que obriga sempre à adjudicação de uma parcela da pensão social auferida pelo progenitor à satisfação dos alimentos devidos ao filho menor, não permitindo a isenção, ainda que o montante da pensão seja de tal forma reduzido que a...

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