Acórdão nº 4/06 de Tribunal Constitucional (Port, 03 de Janeiro de 2006

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução03 de Janeiro de 2006
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 4/06

Processo n.º 665/05 2.ª Secção

Relator: Conselheiro Mário Torres

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

1. Relatório

1.1. O Ministério Público deduziu acusação contra A. e mais onze arguidos, por factos relacionados com a exploração económica da prostituição de mulheres, em especial de nacionalidade brasileira, que os arguidos recrutavam, fazendo-o de forma organizada entre si, imputando, em concreto, à aludida arguida um crime de associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 299.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, um crime de auxílio à emigração ilegal, previsto e punido pelo artigo 134.º-A, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 97/99, de 26 de Julho, pelo Decreto-Lei n.º 4/2001, de 10 de Janeiro, e pelo Decreto-Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, e ainda vinte e um crimes de lenocínio, previstos e punidos pelo artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal.

1.2. A referida arguida requereu a abertura de instrução, sustentando a inexistência de indícios da prática, pela sua parte, dos crimes pelos quais foi acusada, e invocando a nulidade das escutas telefónicas e da recolha de imagem e voz. Concretamente, essa arguida alegou:

1) Que o termo inicial das escutas não pode ser cometido ao livre arbítrio da autoridade policial que executa as operações, sendo que, no caso dos autos, apenas o despacho de fls. 780 teria fixado o termo inicial das intercepções;

2) O início da intercepção deve ser registado em auto lavrado imediatamente, que terá de ser levado também de imediato ao conhecimento do juiz, não satisfazendo este requisito o procedimento de lavrar o auto de intercepção e gravação no final do prazo da autorização, ou no decurso da mesma, mas com intervalos de vários dias, semanas ou meses, como terá sido o caso dos autos;

3) A ordem judicial de desmagnetização da parte das gravações e escutas consideradas irrelevantes para o processo tem de ser executada imediatamente, sendo que nos autos tal não teria sucedido;

4) A ordem da M.ma Juiz exarada a fls. 317 dos autos, de acordo com a qual, antes de findarem os 60 dias do prazo fixado para a intercepção, deveria ser-lhe dado conhecimento do auto lavrado com indicação das passagens relevantes para a prova, acompanhadas das respectivas fitas magnéticas de suporte, nunca teria sido cumprida;

5) Também não teria sido cumprida a ordem exarada a fls. 726, nos termos da qual deveria ser dado conhecimento à M.ma JIC, de 20 em 20 dias, do auto lavrado com indicação das passagens consideradas relevantes para a investigação;

6) Só o despacho de fls. 360 teria fixado o termo final das intercepções;

7) As intersecções relativas aos telefones n.ºs 111111111 e 222222222, considerando o despacho de autorização (renovação) das mesmas, por 60 dias, deveriam ter terminado em 12 de Abril de 2003 e continuaram até ao dia 20 do mesmo mês, pelo que as efectuadas após essa data padeceriam de nulidade;

8) O auto de gravação de fls. 352, confrontado com o teor da informação de fls. 334, revelaria uma evidente falsidade, na medida em que nesta se afirma que “em 11 de Março de 2003 foi contactado, via telefone, o Departamento de Telecomunicações de Lisboa, tendo confirmado que as conversas estavam a ser interceptadas desde 2 de Fevereiro de 2003, mas que não estavam a ser gravadas” e naquele mencionam intercepções e gravações efectuadas entre os dias 20 de Fevereiro e 11 de Março de 2003;

9) No item III da informação de fls. 355 dar-se-ia nota de um CD de gravação respeitante ao alvo XXXXX apenas entregue ao instrutor do processo em 23 de Abril de 2004, ou seja, após expirar o prazo da autorização, o que significaria que as escutas estavam a efectuar-se sem o mínimo controlo da M.ma JIC;

10) Relativamente ao telefone n.º 333333333, o segundo auto de gravação teria sido lavrado 86 dias depois e a M.ma JIC apenas teria tomado conhecimento dos suportes magnéticos e seu conteúdo após cessar a intercepção; quanto ao telefone 444444444, a M.ma JIC teria prorrogado a autorização para as intersecções sem ter lido qualquer auto de gravação; por seu turno, o 10.º auto de gravação teria sido lavrado 125 dias depois das intercepções que documenta e refere-se a sessões cujo conteúdo foi considerado sem interesse por despachos anteriores;

11) Quanto ao telefone n.º 555555555, não teria sido lavrado auto de fim de intercepção das intercepções efectuadas a coberto da primeira autorização e a segunda teria sido requerida e concedida como se se tratasse de uma primeira autorização; por seu turno, a ordem de cancelamento proferida em 18 de Dezembro de 2003 não teria sido respeitada pelo órgão de polícia criminal, que nelas prosseguiu até 3 de Janeiro de 2004;

12) No que concerne ao telefone n.º 666666666: teriam sido efectuadas e registadas intercepções e gravações após o dia 29 de Novembro de 2003, ou seja, mais de 60 dias após o início efectivo das escutas; o auto de fls. 1364 seria falso, na medida em que nele se afirma que as escutas terminaram em 29 de Novembro de 2003 e, conforme fluiria dos autos de fls. 1312, tal facto não corresponderia à verdade;

13) Por último, também a recolha de imagem e voz autorizada nos autos a fls. 317 padeceria de nulidade, uma vez que não foi fixado o prazo para o efeito.

1.3. Por despacho de 18 de Março de 2005, o Juiz de Instrução Criminal de Vila Nova de Famalicão indeferiu a arguição de nulidade e pronunciou a arguida pelos crimes por que vinha acusada. Tal decisão assentou na seguinte fundamentação:

“No domínio das provas obtidas através da realização de intercepções telefónicas, importará ponderar, em primeira linha, o artigo 187.º do Código de Processo Penal, o qual faz depender de autorização judicial a realização de intercepções telefónicas.

Rege, nesta matéria, igualmente, o artigo 188.º do Código de Processo Penal, referindo que da intercepção e gravação a que se refere ao artigo 187.º do mesmo Código é lavrado auto, o qual, junto com as fitas gravadas ou elementos análogos, é imediatamente levado ao conhecimento do juiz que tiver ordenado ou autorizado as intercepções.

O conceito de «imediatamente» – consagrado, como muito bem refere o Ministério Público, em ordem a possibilitar o controlo efectivo das intercepções telefónicas por parte do Juiz (face à natureza do meio de prova em causa, necessariamente limitadora dos valores fundamentais inerentes à reserva da vida privada e ao sigilo e inviolabilidade das comunicações – cfr. os artigos 26.º, n.º 1, e 34.º, n.ºs 1 e 2, ambos da Constituição da República Portuguesa) tem que ser entendido em termos hábeis (cfr. os Acórdãos da Relação de Lisboa, de 16 de Agosto de 1996 e 25 de Outubro de 2000, ambos in www.dgsi.pt/jtrl), de modo a serem levadas em conta as dificuldades próprias da tarefa e as disponibilidades dos meios técnicos e humanos existentes para o efeito, sob pena de se tornar de todo inviável o recurso a este meio de prova, não se olvidando as próprias dificuldades do exercício da função jurisdicional, em específico no domínio da instrução criminal, quantas vezes abrangendo mais do que uma comarca, como é o caso da presente.

Não se vislumbra que no caso dos autos se verifique qualquer nulidade susceptível de atingir os elementos de prova integrantes das intercepções telefónicas efectuadas.

Vejamos ponto por ponto, acompanhando, de resto, o raciocínio efectuado na tomada de posição do Ministério Público:

1) Corresponde à verdade que apenas o despacho de fls. 780 fixou o termo inicial das intercepções ordenadas.

Simplesmente, tal omissão nos restantes despachos não implica a nulidade das intercepções realizadas, nem significa sequer que o início das mesmas tenha sido deixado ao livre arbítrio da autoridade policial que executou a intercepções.

Na verdade, tal menção não resulta expressa no regime dos normativos invocados (cfr. os artigos 187.º e 188.º, ambos do CPP), e muito menos, cominada com nulidade pelo artigo 189.º do Código de Processo Penal.

Como bem refere o Ministério Público, podendo, eventualmente, equacionar-se da manutenção dos pressupostos (de necessidade e proporcionalidade) que fundamentaram a autorização de intercepção, se estas tivessem início decorrido largo período de tempo desde a data da autorização, tal não sucedeu no caso concreto.

2) Como também refere o Ministério Público, também não resulta do teor do artigo 188.º do CPP que o auto de início da intercepção tenha que ser elaborado de imediato, mas antes que o mesmo deverá ser imediatamente levado ao conhecimento do Juiz, realidades bem distintas, em nosso entendimento.

Tal como concluímos no ponto anterior, diremos que tal menção não surge expressa no regime dos artigos 187.º e 188.º, ambos do CPP, e muito menos, cominada com nulidade pelo artigo 189.º do mesmo Código.

Em conformidade com o exposto, cumprem os requisitos exigidos pelo artigo 188.º os autos de intercepção elaborados nos autos, reportados à data do efectivo início das mesmas, pese embora lavrados em data posterior, o que sucede, no caso, em virtude de as intercepções em causa estarem a ser efectuadas por órgão de polícia criminal diferente daquele que procedeu à realização da investigação, que não dispunha de meios técnicos para o efeito, como também muito bem refere o Ministério Público.

Ora, estes autos de início de intercepção (vejam-se fls. 333, 489, 686, 761 e 831), indicando o tempo, lugar e o modo da intercepção, a indicação do telefone a que se dirigiu e a identidade de quem à mesma procedeu, satisfazem, assim, plenamente, o objectivo que se pretendeu assegurar com o regime previsto no n.º 1 do artigo 188.º do CPP – o controlo das intercepções por parte de magistrado judicial.

3) Relativamente ao argumento da necessidade de desmagnetização imediata das intercepções consideradas sem interesse para a prova, valem as considerações supra expostas, sendo, em nosso entendimento, inequívoco de que neste ponto, em particular neste ponto...

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