Acórdão nº 06P1294 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 31 de Maio de 2006

Magistrado ResponsávelSANTOS MONTEIRO
Data da Resolução31 de Maio de 2006
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam em audiência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça : Em processo comum com intervenção do tribunal colectivo , sob o n.º 92/03 . OIDLSB , do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Vedras , foram submetidos a julgamento : -a AA, L.da, BB e CC , vindo , a final a ser condenados os arguidos : - AA e CC pela prática, em co-autoria material e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no art. 105º n.º 1 , do RGIT, qualificação jurídica para a qual se convolou a constante da acusação, nas penas de, respectivamente, 9 (nove) e 7 (sete) meses de prisão .

-os mesmos arguidos BB e CC pela prática, em co-autoria material e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. no art. 107º n.º 1 , do RGIT, qualificação jurídica para a qual se convola a constante da acusação, nas penas de, respectivamente, 10 (dez) e 8 (oito) meses de prisão.

Em cúmulo jurídico das referidas penas foi condenada a arguida BB na pena única de 14 (catorze) meses de prisão e o arguido CC na pena única de 12 (doze) meses de prisão , suspensa na sua execução pelo período de 4 anos, suspensão condicionada à obrigação de os arguidos procederem, no mesmo prazo, à reposição aos ofendidos das prestações omitidas ; a arguida "AA, L.da" pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, cometido na forma continuada, p. e p. no art. 105º, n.º 1 do RGIT, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de 25 euros.

A arguida "AA, L.da" foi condenada pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, cometido na forma continuada, p. e p. no art. 107º, n.º 1 do RGIT, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de 25 euros; em cúmulo jurídico na pena única de 300 (trezentos) dias de multa à mesma taxa diária de 25 euros.

Solidariamente , todos os arguidos foram condenados pagar ao demandante ISS, IP , a quantia de 241. 048, 13 euros (duzentos e quarenta e um mil e quarenta e oito euros e treze cêntimos), acrescida dos juros vencidos desde Fevereiro de 2005 e vincendos até integral pagamento, calculados de acordo com a legislação especial de que beneficia a Segurança Social, conforme certidão de fls. 641 a 643.

I. Discordando do assim decidido interpuseram recurso para este STJ os arguidos BB e CC , apresentando na motivação as seguintes conclusões , resumidas ao que de relevo importa à decisão da causa : O art.º 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias não é conforme à CRP .

Punindo-se , agora , não a apropriação , mas falta de entrega , a lei nova criou uma descontinuidade normativa face à lei anterior , pois que do antecedente importava a apropriação dolosa , relevando agora a falta de declaração dolosa da entrega das prestações devidas à Segurança Social e à Fazenda Nacional .

É manifesta a distância que a nível normativo , axiológico , teleológico e político-criminal se regista , separando as incriminações , sendo patentes as realidades normativas , não sendo aproximada a incriminação com a prevista para o abuso de confiança definido no CP .

A criminalização de qualquer conduta passa pela sua dignidade penal e carência de tutela penal dos bens jurídicos ofendidos : a primeira definida pela eminência dos bens jurídicos a tutelar e pela danosidade e intolerabilidade sociais , dano ou perigo que ameaçam aqueles bens ; a segunda afere-se pela exigência da eficácia ou idoneidade de tutela da intervenção do direito penal na perspectiva dos bens jurídicos e a sua necessidade porque a sociedade não dispõe de instrumento menos gravoso para assegurar o mesmo nível de tutela .

No contexto do RGIT o mesmo facto , não entrega dolosa , é tratado simultâneamente como crime , nos art.ºs 105.º e 107.º e como contra-ordenação -art.º 114.º- , asserção que em nada é prejudicada pela circunstância de a punibilidade só ocorrer depois de decorridos 90 dias sobre o prazo de pagamento .

O legislador de 2001 atribuiu dignidade criminal a um facto que antes tratara como mera contraordenação .

A mudança drástica do estatuto normativo do facto exigia a representação de razões de mutação da realidade ( frequência , danosidade , resistência criminalística , crescimento , etc ) ou mudanças de valoração , o que era um ónus a que o legislador não podia furtar-se , por força do art.º 18.º n.º 2 , da CRP .

Dentre as alternativas ao direito penal sobressai o direito das contraordenações , ilícito de que o legislador se socorre , normalmente , quando se trata de sancionar condutas a que não reconhece as indispensáveis dignidade e carência de tutela penal .

Há limites à liberdade do legislador impostos em nome de princípios constitucionais , como os da igualdade , proporcionalidade e da justiça , a que se juntam os impostos pela exigência de autocontenção do legislador , além do mais em nome de uma irrenunciável superioridade ética do Estado ( art.ºs 2.º e 13.º , do CP) .

E ainda decorre do princípio lógico da não contradição , impeditivo de um facto ser a um mesmo tempo crime e contraordenação , incorrendo o legislador em inconstitucionalidade material , estando a tratar- se de um facto a que se não reconhece a marca da constitucionalidade exigida de dignidade penal , pois de outro modo não seria tratado como ilícito criminal .

As disposições em causa criam para o Estado um privilégio do Estado -Fisco , que vê os seus créditos garantidos pelo " jus puniendi" de que aquele está armado , sem suficiente justificação ética , pois o Estado não pode movimentar os meios de cobrança dos seus créditos e denegar o mesmo tratamento aos credores privados .

Punindo devedores em mora , o Estado não dispensa igual tutela quando ele próprio se constitui em mora , situações que não são legitimadas à vista dos princípios da igualdade , proporcionalidade e onde falta a " superioridade ética " , em lesão dos art.ºs 2.º e 13.º , da CRP .

A simples confusão do dinheiro no património do agente e mesmo o seu uso para fins próprios , não basta , sem mais , para se poder dar como provada a compreensão e extensão que a expressão colhe na incriminação do abuso de confiança .

Na relação com coisas fungíveis não há apropriação enquanto se verificarem dois pressupostos : um de índole subjectiva , traduzido no reconhecimento da propriedade alheia ou da sua própria dívida e no propósito de posterior pagamento ou entrega e num de natureza objectiva , significando a possibilidade efectiva de realizar a entrega ou o pagamento da dívida .

A esta luz o empresário que não entregasse tempestivamente as importâncias recebidas a título de IVA ou retidas a título de IRS ou de quotizações para a Segurança Social , não incorria , sem mais , em responsabilidade criminal .

E isto se reconhecesse a dívida , tivesse o propósito e a possibilidade objectiva de proceder à sua entrega , empregando previamente as importâncias no pagamento de salários ou matérias primas , como sucedeu .

Quando muito devia ser sancionado a título de contraordenação .

Nesta linha de actuação estaria fora do alcance da incriminação o empresário devedor que acordou com as Finanças um plano de pagamento da dívida - no contexto do Dec.º-Lei n.º 124/96 , de 10/8 .

O próprio acórdão recorrido , questionando que os dinheiros existissem nos cofres da empresa , sendo fácil admitir-se que não , tal porém tinha origem no facto de as quantias geradas pela actividade empresarial serem encaminhadas para satisfação de outra necessidades da sociedade .

A conclusão de apropriação é juridicamente contraditória e insustentável .

Tendo os factos ocorrido entre 1999 e 2002 ( impostos ) e 1997 e Outubro 2001 ( caso da Segurança Social) , configura-se uma situação de crime continuado .

Entendeu a decisão recorrida que a determinação da lei aplicável se faria em função dos últimos actos ( 2002 e 2001) , pois se não estaria em função de uma sucessão de leis penais no tempo , mas de considerar-se que , por se tratar de crime continuado , a lei vigente na data da prática do último acto , ou seja da consumação define a lei aplicável , in casu o RGIT .

Ao caso não pertine a norma do art.º 119.º n.º 2 b) , do CP , que rege para a prescrição do crime continuado , nada dispondo quanto à sua consumação .

O momento da acção do agente , nos termos do art.º 3.º , do CP , define o momento da consumação do crime e reportando-se essa prática a 2001 e 2002 , essa sua acção reparte-se por leis diferentes , vigentes ao longo do tempo.

A melhor doutrina em termos de verificação de qualquer agravação da lei antes do termo da consumação só pode valer para aqueles elementos verificados após o momento da alteração legislativa , o que não foi considerado no acórdão recorrido .

A lei nova só poderia aplicar-se às condutas praticadas sob a sua vigência e não às anteriores sob pena de retroactividade da lei penal menos favorável e da consequente inconstitucionalidade dos art.ºs 119.º n.º 2 b) e 2.º n.º 1 , do CP , 105.º e 107 .º , do RGIT .

A lei nova , menos exigente quanto aos elementos do tipo , logo desfavorável para os arguidos , acabou por servir para valorar as condutas que antecederam a sua entrada em vigor .

A supressão do elemento do tipo -apropriação de quantias - coloca a questão de saber se , com tal supressão , se mantém uma continuidade normativo- típica entre os dois tipos legais de crime ; se se mantiver a punibilidade a lei nova conduz a um alargamento da punibilidade através da supressão de elementos especializadores constantes da lei antiga , a lei antiga é face à lei nova uma " lex specialis " , pelo que em caso de sucessão de leis penais é aplicável a lei mais favorável ou seja a lei antiga .

Se não estamos face a uma descontinuidade normativa , mas perante tipos legais heterogéneos , não se assiste a uma sucessão de leis penais , então assiste-se a uma despenalização dos factos praticados anteriormente , apenas se aplicando a lei nova aos factos ocorridos após a sua entrada em vigor .

Impor-se -ia , pois , a absolvição dos arguidos .

Se se...

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