Acórdão nº 06P957 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 27 de Abril de 2006

Magistrado ResponsávelCARMONA DA MOTA
Data da Resolução27 de Abril de 2006
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: Recorrentes: Ministério Público e AA 1. OS FACTOS ( 1) O arguido vive há cerca de vinte anos em união de facto com BB que tem sido vítima de agressões frequentes por parte do arguido, desde que passaram a residir juntos. Além de a apelidar frequentemente de "puta, vaca e ordinária", agride-a, deixando-a com marcas em várias partes do corpo. Na sequência deste comportamento agressivo, cerca das 13:30 do dia 30 de Janeiro de 2004, após ter chegado a casa, o arguido agarrou a companheira pelos braços, apertando-lhos e puxando-os com força, de modo a conseguir que aquela entrasse para a casa de ambos. Nesse dia, BB foi para uma casa de abrigo da Santa Casa de Misericórdia de Aveiro e ai permaneceu durante três semanas, na companhia do filho mais novo. Desde pelo menos essa data, o arguido tem-lhe dito diariamente que a mata se a mesma não desistir das queixas apresentadas contra si e que também a matará se voltar a sair de casa, tal como sucedeu no referido dia 30 de Janeiro. Cerca das 22:00 do dia 06 de Março de 2004, o arguido dirigiu-se a BB e, depois de a ter apelidado mais uma vez de "puta e vaca", puxou-lhe os cabelos, desferiu-lhe murros na cabeça e atingiu-a com pontapés na barriga. Ao aperceber-se do que se estava a passar, o filho de ambos, CC, aproximou-se e pediu ao pai para ter calma, tendo-o o arguido, de imediato, empurrado violentamente, o que fez com que o filho caísse ao chão. De seguida, o arguido começou a atirar para o chão as cadeiras e os objectos de loiça que estavam ao seu alcance na divisão da casa em que se encontravam, até que surgiu ali DD, mãe da BB que, ao aproximar-se do arguido para o tentar impedir de prosseguir com tais actos, foi de imediato atingida por uma cadeira que aquele lhe arremessou contra a cabeça. Como consequência dessa conduta, DD sofreu uma ferida fronto-parietal direita que foi suturada, a qual demandou um período de doença de sete dias, sem afectação da capacidade do trabalho. Por seu turno, BB e CC sofreram dores, em consequência das condutas supra descritas. Com tais actuações, o arguido gerou no seio da sua família, concretamente na sua mulher e filhos, um ambiente de intimidação e medo, temendo os mesmos constantemente pelas suas integridades físicas e psíquicas, e até pela vida. Denotando agressividade, carências culturais profundas e personalidade mal adaptada às regras de conduta, o arguido age movido por ciúme infundamentado, proibindo permanentemente a sua companheira de sair de casa, mas acabando por passar as noites com outra mulher, sendo ainda habitual ingerir bebidas alcoólicas em excesso. Agiu sempre voluntária e conscientemente, bem sabendo que ao actuar da forma descrita e de modo reiterado causava a sua mulher dores, permanente medo e perturbação, assim como criava simultaneamente um clima de terror nocivo à sua estabilidade emocional. Agiu também com o propósito concretizado de molestar a integridade física de DD e do filho CC, produzindo-lhes dores e os ferimentos descritos. O arguido sabia que a sua conduta era especialmente proibida. Confessou parcialmente os factos e não mostrou arrependimento. Já foi julgado e condenado, por 3 vezes, por crime de condução sem carta, tendo pago as multas (2).

  1. a condenação Com base nestes factos, o tribunal colectivo do 2.º Juízo Criminal de Oliveira de Azeméis (3), em 05Abr05 (4), condenou AA, como autor de um crime de maus-tratos (art. 152.1.

    a e 2 CP), na pena de 1 ano e 4 meses de prisão; de dois crimes de ofensas à integridade física (art. 143.1 do CP), nas penas de 1 mês de prisão e de 3 meses de prisão; e, em cúmulo jurídico, na pena de 1,5 anos de prisão; Designa-se por "violência doméstica" todo o tipo de agressões que existem no seio de uma relação familiar. Pode tomar a forma de violência psicológica e mental, que inclui agressões verbais, perseguição, clausura, privação de recursos físicos e financeiros, dificultação de contactos com familiares ou amigos. Em muitos casos chega a agressão física, que pode ir das violações, empurrões, beliscões, pontapés, espancamentos, até a morte. A violência doméstica atinge crianças, mulheres, idosas, deficientes ou doentes. No crime de maus-tratos, previsto no art. 152º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal, o bem jurídico protegido é a saúde física e mental do cônjuge (ou do que vive em iguais circunstâncias). É, essencialmente, um crime doloso, por não se conceber a prática de maus-tratos por negligência. De contornos antigos, mas de punição recente, este crime representa uma mancha negra na sociedade portuguesa: são inúmeros os relatos de actos desta natureza, praticados especialmente pelo marido sobre a mulher, a que esta se sujeita umas vezes por mero medo, outras por vergonha, outras ainda por inércia ou falta de informação. Trata-se de actos a mais das vezes cometidos no recesso do lar, longe das vistas e dos ouvidos de outrem, ou então, apenas conhecidos no seio da família, que tem por tendência esconder e apagar, quando não justificar a acção do agente (quiçá por atavismos antigos que dificilmente se diluem e a que não são alheias as carências culturais da sociedade). Recentemente, escrevia-se num conhecido diário que "uma das razões que motivou que este tipo de crimes passasse a ser considerado crime público foi o elevado número de casos de violência doméstica escondidos pelas vítimas; muitos agentes das autoridades acabavam por ter conhecimento desses crimes, mas nada podiam fazer, uma vez que ou as vítimas nem sequer apresentavam queixa ou acabavam por desistir desse procedimento, fosse por medo de represálias do agressor, fosse por vergonha da exposição pública do seu problema; ainda que se verifique um aumento consistente do número de arguidos julgados desde 1997, a lei, aprovada pela Assembleia da República no ano 2000, não representou qualquer salto nessa evolução estatística, pelo que a autonomia das autoridades para investigar crimes de maus-tratos não representou um aumento de eficácia em termos jurídico-penais". E, noutro diário, acrescentava-se, de forma lúcida: "Os psicólogos têm cada vez menos dúvidas: a violência conjugal é sobretudo uma questão de poder; enquanto o tradicional domínio do homem sobre a mulher vai deixando de ser considerado legítimo, o aumento de protagonismo social e profissional da mulher acaba por trazer para as novas gerações outros focos de conflito; o poder, ou a sua perda, é a grande causa da violência doméstica, sobretudo entre marido e mulher; o poder, o "sentimento de posse" e as desigualdades entre homens e mulheres são as grandes causas da violência conjugal, em qualquer extracto social e sob qualquer forma, seja física, psicológica ou emocional" (EE, Faculdade de Psicologia do Porto). É neste contexto que se enquadram os outros factores associados, como as questões sócio-culturais, de mentalidade, anda muito enraizadas na nossa vivência: "Ainda é de alguma forma considerado aceitável o marido exercer violência contra a mulher". Conhecendo-se os pródromos e os sintomas, para alem do papel punitivo e correctivo do Poder Judicial importará fazer campanhas de sensibilização pedagógica. Ainda recentemente, a ONU recomendou uma actuação dos próprios media no sentido de "desafiar as atitudes do público face a violência doméstica". Para conseguir tal objectivo propõe que sejam "confrontadas atitudes que permitem a ocorrência de violência", examinando: a ideologia da culpabilização da vítima; o papel do consumo de álcool na violência domestica; as características e o comportamento da vítima e agressor e as escolhas que enfrentam; conceitos sobre vida em família, privilégios masculinos e privacidade; a exploração da mulher na comunicação social; a glorificação da violência nos media. As notícias ou programas sobre o assunto podem ensinar a vitima formas de se proteger, dado permitirem saber mais sobre a questão, conhecer os serviços de apoio disponíveis e envolverem-se nos esforços da comunidade de combate ao fenómeno. Tenderá a melhorar este estado de coisas, nomeadamente com tais campanhas de esclarecimento nos media e nas instituições vocacionadas para o efeito, começando os tribunais, munidos da sua independência e da sua legitimidade, a enfrentar tais ilícitos e a punir os seus autores de modo pedagógico, equilibrado e adequado. São João Crisóstomo perguntava, com perplexidade: que satisfação haverá, para um marido, quando vive com a sua mulher como uma escrava e não como uma pessoa livre? Previsto no art. 152º do Código Penal, tal crime não exige uma conduta plúrima e repetitiva, ou a reiteração da conduta agressiva: a punição sempre ocorrerá quando a gravidade inerente das agressões se assumir como suficiente para poder ser enquadrada na figura de maus-tratos físicos ou psíquicos, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana, com afectação da sua saúde (física ou psíquica). A criminalização das condutas inseridas na chamada "violência doméstica" e consequente responsabilização penal dos seus agentes resulta da progressiva consciencialização da sua gravidade individual e social, sendo imperioso prevenir as condutas de quem, a coberto de uma pretensa impunidade resultante da ausência de testemunhas...

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