Acórdão nº 06P547 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 23 de Março de 2006
Magistrado Responsável | SANTOS CARVALHO |
Data da Resolução | 23 de Março de 2006 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1.
AA foi submetido a julgamento perante o tribunal colectivo do Círculo Judicial de Ponta Delgada e, finda a audiência, foi proferido acórdão que considerou provada a maioria dos factos constantes da acusação e que, em consequência, o condenou pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo art.º 21.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 15/93 de 22.1 e de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelos art.ºs 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, g) e i), do C. Penal, respectivamente nas penas de 5 anos de prisão e 20 anos de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena unitária de 23 anos de prisão.
Desse acórdão foi interposto recurso pelo arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa, no qual contestou exclusivamente a matéria de facto, quer impugnando-os nos termos do art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, quer pela invocação dos vícios do art.º 410.º, n.º 2, desse diploma.
A Relação de Lisboa, por Acórdão de 7 de Dezembro de 2005, decidiu julgar procedente o recurso interposto e, por força da não comprovação da matéria de facto consubstanciadora dos crimes de tráfico de estupefacientes e de homicídio voluntário, decretou a absolvição do então recorrente.
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Inconformado, o Ministério Público junto da Relação de Lisboa recorre agora para este Supremo Tribunal de Justiça e, da sua motivação, extrai as seguintes conclusões: 1. Vem o presente recurso interposto pelo MP, sobre a questão de direito que, diz respeito à impugnação do errado uso que o esta Relação fez, dos seus poderes cognitivos em matéria do julgamento da questão de facto, tendo modificado totalmente a decisão da primeira instância, sem que se mostrem preenchidos nenhum dos requisitos impostos pelo art. 431.° alíneas a),b) e c) do CPP.
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O Tribunal " a quo" deliberou erradamente absolver o arguido dos crimes de tráfico de droga e de homicídio por que vinha condenado, na pena única de 23 anos de prisão, por errada procedência da impugnação da matéria de facto documentada, e errada avaliação sobre a não comprovação da autoria do arguido, nesses crimes - uma vez que a simples documentação da prova impugnada não permite neste caso, a modificação da decisão, por se interporem outros vícios da matéria de facto; 3. O Tribunal da Relação estava impedido de modificar a condenação imposta, e estava impedido de fazer a aplicação do princípio da presunção da inocência, por obstáculo criado pela verificação dos vícios do art. 410.° nº 2 b) e a) do CPP - ou seja, a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (que se verifica manifestamente mas, não obteve procedência) e a insuficiência da matéria de facto provada para a condenação (igualmente não procedente) impedem a decisão sobre a questão de mérito e o funcionamento pleno das regras da produção de prova em julgamento.
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O Tribunal recorrido deliberou modificar a condenação recorrida, em função da dúvida probatória razoável suscitada, quando devia em nosso entender, conhecer dos vícios da contradição insanável e da insuficiência factual que, obrigam ao reenvio dos autos à origem para necessário enriquecimento das provas, nos termos dos art.ºs 410 n.º 2 a), b) e 426.°.
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O tribunal conheceu da questão de facto " a mais", isto é, com desrespeito pelo princípio do duplo grau de jurisdição em matéria de facto e dos seus poderes cognitivos, pois extravasou os limites factuais permitidos pela impugnação das provas documentadas e pelo disposto nos art.ºs 428.°, 431.° e 410.° nº 2 a), b) do CPP.
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Sobre a factualidade fixada no crime de tráfico de droga, as provas impugnadas e documentadas, impõem o reenvio do processo para novo julgamento, uma vez que nos segmentos probatórios impugnados se configura o vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. O vício situa-se na factualidade sobre a assinalada "conclusão de sinal contrário" a respeito da dívida existente entre o arguido e a vítima e sobre quem é que devia a quem e porquê.
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O mesmo erro de direito, é cometido afigura-se-nos, quando se consideram procedentes todas as dúvidas acerca da prova pessoal produzida sobre a autoria do arguido, no crime de tráfico de droga, confundindo-se por vezes, factos instrumentais com factos típicos e invalidando-se em consequência, a força probatória dos depoimentos.
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Também na apreciação das provas impugnadas e gravadas sobre o crime de homicídio, o Tribunal "a quo" fez errada aplicação dos poderes de cognição em matéria de facto -uma vez que, partindo dum errado desdobramento entre o que designou de "vícios sentenciais" e "deficiências de julgamento", situando rigidamente os primeiros, no texto da decisão recorrida e os segundos, na documentação da prova (gravações e transcrições), se considerou habilitado a modificar a decisão exclusivamente com base na documentação.
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A possibilidade de modificação da decisão de facto impugnada e documentada, sobre o crime de homicídio, não é livre nem ilimitada e neste caso nem era possível, por verificação nesta parte também, dos vícios do nº 2 do art. 410.° do CPP e por inexistência de renovação da prova nesta segunda instância.
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No caso da determinação da responsabilidade do arguido no crime de homicídio, questão crucial deste recurso, não constam do processo todos os elementos para a decisão de mérito, não obstante a documentação das provas - neste segmento factual, se as provas pessoais são incompletas (como se resulta do douto acórdão recorrido) a decisão a adoptar será a do reenvio e não a da absolvição em consequência do mencionado "impasse probatório" - dado que as provas não se nos afiguram esgotadas num quadro de reenvio necessário.
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A questão fulcral deste recurso, diz pois respeito ao modo como a Relação usou os poderes cognitivos na questão de facto, num quadro de recurso com impugnação das provas documentadas e com vícios na mesma questão de facto, sem que se tenha procedido à renovação da prova - ou seja, o princípio da livre convicção ou prova moral sofre limitações impostas pela disciplina do nº 2 do art. 410.° do CPP, limitações que não foram reconhecidas no douto acórdão recorrido.
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Sendo o recurso um remédio jurídico e não um novo julgamento, a teleologia deste mesmo recurso obrigava à determinação do reenvio do processo, uma vez que não era possível extrair todas as consequências do erro de julgamento porventura existente.
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Assim sendo deliberou-se erradamente, pela existência do condicionalismo previsto no art. 431° a, b, c do CPP, quando do processo não constavam todos os elementos necessários à decisão e quando se verificam os vícios da matéria de facto; 14. Os vícios da matéria de facto constituem um obstáculo à modificação da decisão na segunda instância e inviabilizam a correcta aplicação do princípio constitucional da presunção da inocência.
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Em consequência afiguram-se-nos errada aplicação do disposto nos art.ºs 428°. e 431.° a, b, c do CPP e errada desaplicação dos art.ºs 410.° nº 2, a, b e 426°. todos do CPP, pelo que é de decretar a anulação do douto acórdão recorrido, a substituir por um outro que ordene o reenvio dos autos para a primeira instância, para novo julgamento da totalidade do objecto do processo.
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O arguido respondeu ao recurso e defendeu o seu não provimento.
Neste Supremo Tribunal de Justiça, a Excm.ª PGA promoveu a audiência.
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Colhidos os vistos e realizada a audiência com o formalismo legal, cumpre decidir.
As principais questões a decidir são as seguintes: 1ª- A Relação modificou os factos provados, num quadro de recurso com impugnação das provas documentadas e com vícios na mesma questão de facto, sem que se tenha procedido à renovação da prova, mas sendo o recurso um remédio jurídico e não um novo julgamento, a teleologia deste mesmo recurso obrigava à determinação do reenvio do processo, uma vez que não era possível extrair todas as consequências do erro de julgamento porventura existente? 2ª- Assim sendo deliberou-se erradamente, pela existência do condicionalismo previsto no art. 431°, als. a), b) e c), do CPP, quando do processo não constavam todos os elementos necessários à decisão e quando se verificam os vícios da matéria de facto? 3ª- Os vícios da matéria de facto constituem um obstáculo à modificação da decisão na segunda instância e inviabilizam a correcta aplicação do princípio constitucional da presunção da inocência? 4ª- Fez-se errada aplicação do disposto nos art.ºs 428.° e 431.°, als. a), b) e c) do CPP e errada desaplicação dos art.ºs 410.° n.º 2, als. a) e b) e 426.°, todos do CPP, pelo que é de decretar a anulação do douto acórdão recorrido, a substituir por um outro que ordene o reenvio dos autos para a primeira instância, para novo julgamento da totalidade do objecto do processo? FACTOS PROVADOS NA 1ª INSTÂNCIA
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O arguido era conhecido e amigo de BB e com este mantinha, desde 1997 até 11 de Dezembro de 1998, uma relação comercial, mediante a qual adquiria haxixe no território português do continente, fazia-o entrar nesta ilha, onde o BB o vendia a terceiros consumidores, dividindo ambos o lucro entre si.
Por vezes os sabonetes de haxixe eram remetidos de Lisboa via postal para Ponta Delgada; e noutras o arguido transportava-os consigo por via aérea desde Lisboa até esta ilha.
Um sabonete de haxixe pesa cerca de 250 gramas.
Em várias ocasiões, naquele período, o BB procedeu directamente ou através de terceiros, a depósitos de quantias na conta bancária do arguido (conta nº ......, no Banco Totta e Açores), de molde a pagar fornecimento feitos ou a provisioná-la para serem adquiridos novas quantidades daquele produto.
Por essa razão e daquele modo foram feitos pelo menos os seguintes depósitos: a 20/5/1998: 125 000$00; a 8/6/1998: 65 000$00; a 25/6/1998: 105 000$00; a 10/11/1998: 17 000$00; a 16/11/1998: 10 000$00.
Desde o dia 19/11/1998 até 11/12/1998 o arguido residiu na mesma casa em que morava o BB, sita na Rua dos.... , nº ...., Fajã de Baixo, Ponta Delgada.
Nessa casa, para além do BB morava ainda a mulher deste e um filho menor do casal e...
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